Vaelin
Dahrena retornou ao seu corpo com um grito, dobrando-se para a frente com o rosto tenso de aflição. Vaelin a abraçou e a segurou até que parasse de tremer. Ela voara apenas por um curto período de tempo por insistência própria, uma vez que os montanheses ainda não haviam aparecido, de modo que Vaelin deduziu que a sua aflição não se devia aos estragos causados pelo seu dom.
— Eles agora estão nas montanhas — disse ela, erguendo o olhar para ele com uma intensidade pálida. — Matando todos que conseguem encontrar. Ele sabia, Vaelin. Ele sabia que eu estava vendo, e gargalhou.
Vaelin reuniu os anciões do Povo Lobo para ouvir o relato dela e observou o último vestígio de esperança desaparecer de cada rosto; a Sombra do Corvo havia de fato sido lançada e o sofrimento prometido havia tanto tempo chegara.
— Há muitos Varitai entre eles — disse Dahrena —, e também Kuritai. Os Espadas Livres não são tão numerosos, a maioria é da cavalaria, e suas almas estão perturbadas, brilhando vermelhas de desconfiança e medo. Entraram nas montanhas há dois dias. Vi evidências de uma batalha e o que restava de um povoado. Todos estavam mortos, jovens e velhos. Não fizeram prisioneiros. Eles não vieram pelos escravos. — Ela fez uma pausa, mantendo os olhos fechados enquanto se forçava a lembrar. — Foram feitas coisas aos que eles capturaram vivos. Foram muitos e prolongados os seus tormentos. — Ela encontrou o olhar de Vaelin. — Ele queria que eu visse.
— Onde eles estão agora? — perguntou Vaelin.
— Movendo-se para nordeste. Estão mantendo uma formação compacta, fazendo poucas patrulhas. Vi muitas almas se reunindo para confrontá-los, mas em grupos pequenos, nenhum com a capacidade de deter o seu avanço.
— Então eles precisarão da nossa ajuda — disse Vaelin.
— Não. — O homem encapuzado era o único presente que estava sentado junto a uma fogueira, que cutucava com um cajado grosso.
— Tem algum conselho a dar, Mestre Erlin? — perguntou Vaelin.
— Somente fatos óbvios, irmão. — Erlin suspirou e jogou o capuz para trás, sorrindo para Dahrena com solidariedade. — Eles têm mais do que o dobro do nosso número, não é, minha senhora?
Ela lançou um olhar cauteloso a Vaelin e assentiu.
— As tribos teriam de se unir para terem uma chance contra eles — disse Erlin, virando-se para Vaelin. — E não farão isso. Tentei alertar os chefes, mas eles não me deram ouvidos, achando que era apenas outra campanha por escravos. Os volarianos aparecem de tantos em tantos anos, às vezes podem ser comprados com minério e prisioneiros de outras tribos, às vezes os enfrentam para que os guerreiros jovens possam conseguir as suas primeiras cicatrizes. Isso vem ocorrendo há mais de duzentos anos e agora é quase um ritual. Eles não compreendem o que estão enfrentando. Quando você for se juntar à batalha, eles já estarão derrotados e espalhados.
Erlin virou-se de novo para a fogueira e Vaelin notou a brancura dos nós dos dedos no cajado enquanto cutucava as brasas. Ele está com medo, compreendeu. O que poderia assustar um homem que não pode morrer?
— As tribos o conhecem — disse ele. — Pode nos guiar até elas? Falar por nós?
— Elas não falam como uma só. Quando as tribos não estão lutando umas com as outras, elas lutam internamente. Quando conseguíssemos negociar com todas, já seria tarde demais. De qualquer forma, eles verão vocês e essa gente apenas como mais inimigos a serem enfrentados.
— Espera que eu fique sentado aqui e ignore um massacre?
— A criatura do Aliado está tentando atraí-lo. Você percebe isso, sem dúvida. E não veio aqui para guerrear, veio pelo conhecimento que imagina que possuo. A chave para derrotar o Aliado.
Vaelin franziu o cenho ao ouvir a nota sardônica na voz de Erlin, o tom de um homem diante de um desfecho bastante previsível.
— Isso já aconteceu antes?
— Houve alguns ao longo dos séculos. Estudiosos, reis — ele lançou um olhar breve e pesaroso a Vaelin —, guerreiros. Todos diante da desagradável verdade da existência do Aliado, guiados até mim por conhecimentos antigos ou poderes de dotados. Embora ninguém tenha me encontrado numa época tão turbulenta quanto esta.
— O Aliado quer compor um final. Desta vez será diferente.
Erlin suspirou e levantou-se.
— Então é melhor eu lhe mostrar o que mostrei a eles, irmão. — Ele apontou o cajado para leste, onde as nuvens negras pendiam baixas sobre os picos. — Embora eu duvide que essa gente achará o clima agradável.
As colinas permaneceram resolutamente desertas enquanto eles marchavam para leste, atravessando vales desprovidos de vida, com exceção de alguns alces que fugiam ao primeiro sinal do cheiro deles no vento.
— Os montanheses são mineradores — explicou Erlin. — Mineram cobre e estanho das montanhas e negociam com os volarianos, apesar de suas dificuldades perenes. Há poucos veios aqui tão ao norte, e os batedores estarão ocupados com esta última incursão.
— Você vive aqui há muito tempo? — perguntou Vaelin.
— Seis anos desta vez, embora eu já tenha ficado por quase três décadas. Isso foi há dois séculos, quando o povo daqui não era tão feroz.
— O que o manteve aqui?
— Uma viúva com vários filhos. Ela tinha uma língua ferina, mas um coração bondoso e pareceu não se importar que eu ficasse e fizesse o papel de marido. Quando morreu, os filhos haviam crescido e os volarianos estavam fazendo as primeiras operações para conseguir escravos. Achei melhor seguir em frente. Apesar de sempre ser atraído de volta.
— Pelo quê?
A expressão de Erlin se anuviou quando parou para olhar as montanhas de fogo ao longe, seu brilho flamejante mais intenso agora, e o céu acima cada vez mais escuro.
— Tudo no seu devido tempo, irmão.
Ao anoitecer, Lorkan, Cara e Marken reuniram-se em volta de Erlin, ansiosos por histórias de suas viagens. Cara era a que menos se lembrava dele, mas ainda assim se recordava das histórias ouvidas no período que passara na Cidade Caída durante a infância.
— Você voltou para o Extremo Ocidente? — perguntou ela. — Para o templo acima das nuvens?
— Voltei. — Ele ergueu os olhos para os Senthar que haviam se aproximado. Pareciam ser um dos poucos povos com os quais ele tivera mínimo contato, e Erlin achava o desejo incessante deles por uma história um contraste surpreendente com a sua reputação de ferocidade. — Mas fiquei apenas uma noite.
— Ela estava lá? — insistiu Cara. — A Princesa de Jade?
— Estava, e encantadora como sempre. Intocada pela idade e ainda cantando a sua bela canção. Fiquei feliz por ter feito o esforço de ouvi-la de novo, apesar de a jornada ter sido mais difícil do que antes. Nem mesmo a terra dos Reis Mercadores é imune a conflitos.
— Princesa de Jade? — perguntou Vaelin.
— A única alma que já encontrei que viveu mais tempo do que eu. Consignada ao templo acima das nuvens quinhentos anos atrás pelos Reis Mercadores, que ainda fazem peregrinações em busca de seus conselhos, imaginando que ela mantém contato com o Céu. Creio que ela os ache bastante divertidos, embora seja difícil dizer. Seu temperamento costuma ser tão inescrutável quanto as suas palavras. Mas a canção… — Ele fechou os olhos, lembrando-se de algo jubilante. — Anos incontáveis passados praticando o canto e a harpa. Somente eu tive a felicidade de ouvi-la mais de uma vez na vida.
Vaelin viu Kiral se remexer pouco à vontade e soube o que a sua canção estava lhe dizendo: aquele era um homem que esperava nunca mais ouvir a Princesa de Jade. Nós causaremos a sua perdição. É isso que ele teme.
— Uma vez ouvi uma história — disse ele a Erlin. — Sobre um cavaleiro renfaelino que teve a vida salva por um garoto com o poder de curar, que viajava na companhia de um homem que não podia morrer. O cavaleiro contou como esse homem tentava preservar os dotados na esperança de que nasceria um no Reino com o poder para matá-lo, pois ele estava cansado de sua vida eterna.
— Cansado? — Erlin reclinou-se um pouco, apertando os lábios em contemplação. — A vida é feita de infindáveis sensações, mudanças intermináveis e variedade ilimitada. Não fomos feitos para nos cansarmos dela, e eu não me cansei. Porém, eu sempre soube que acabaria. Por mais anos que tivesse, eu não poderia durar para sempre, tampouco deveria. A Princesa de Jade soube disso na primeira vez que a procurei buscando uma resposta, uma razão para eu permanecer jovem enquanto outros envelheciam, enquanto aqueles ao meu redor morriam de pestes e doenças e eu não. Ela não respondeu, como de costume. Muitos que sobem o caminho traiçoeiro até o templo com frequência são mandados embora desapontados, e mesmo aqueles com quem ela escolhe falar acham suas palavras obscuras, geralmente além de suas capacidades de decifrá-las. Contudo, apesar de não me responder, ela permitiu que eu ouvisse a sua canção, e isso foi resposta suficiente. Vejam bem, há uma imperfeição na canção. Pequena, quase imperceptível ao ouvido destreinado, mas, para alguém que viveu tanto quanto eu, tão dissonante quanto um aprendiz de menestrel atrapalhando-se com os primeiros acordes. É apenas uma sequência breve de notas, tão complexa a ponto de talvez estar além das habilidades de todos que já seguraram uma harpa, inclusive ela. A canção dela não é perfeita. Ela não a terminou, e talvez nunca termine.
Após três dias de marcha, eles avistaram o único povoado que haviam encontrado até então, um pequeno aglomerado de casas de pedra no sopé de uma montanha de topo achatado. Havia um leve traço de enxofre no ar e o céu continuava encoberto por nuvens cinzentas que se tornavam negras a leste, onde as montanhas de fogo ardiam com cada vez mais intensidade. Erlin os fez parar a menos de dois quilômetros do povoado, de onde foi possível ver algumas figuras correndo das casas, talvez uma centena, todas armadas.
— Os laretha não recebem muitos visitantes — disse Erlin. — Há poucos deles e viver tão perto das montanhas de fogo lhes fornece certa segurança. — Ele se virou para Vaelin, gesticulando na direção do povoado. — Eles vão querer parlamentar com o chefe desta nova tribo.
Vaelin pediu que Astorek se juntasse a eles e seguiram Erlin até o povoado, onde os guerreiros estavam dispostos numa fileira esparsa porém firme. Eram na maioria homens, todos armados com um machado ou uma lança longa de lâmina estreita. Todos vestiam saiotes de couro que lhes chegavam às panturrilhas, decorados com vários símbolos pintados, e peitorais de bronze que brilhavam um pouco à meia-luz. No centro da fileira havia um homem robusto de meia-idade, com um machado em cada mão, o longo cabelo grisalho preso para trás em tranças grossas. Sua postura rígida pareceu relaxar um pouco ao avistar Erlin, mas o seu semblante permaneceu carregado de desconfiança ao passar os olhos por Vaelin e então ficou furioso ao avistar Astorek. Ele ergueu os dois machados quando se aproximaram e a sua gente adotou de imediato uma postura de combate.
— Pertak! — gritou Erlin ao homem robusto, dando um sorriso de boas-vindas e então gesticulando para Vaelin e Astorek quando continuou a falar.
— Ele disse que trouxe muitos aliados para os laretha — informou Astorek. Vaelin notou a grande inquietação na fronte do xamã. — Isso é uma tolice, Sombra do Corvo. Essa gente oferece apenas morte a forasteiros.
Com a cabeça Vaelin indicou Erlin, que agora se aproximava do chefe de braços abertos.
— Mas não a ele.
Erlin parou a alguns metros do chefe, suas palavras baixas e inaudíveis para eles, embora o semblante do homem robusto tivesse perdido um pouco da ferocidade, mas nada da desconfiança. Após alguns momentos, Erlin virou-se e fez sinal para que se aproximassem.
— Pertak, chefe dos laretha, exige um tributo se vocês forem poluir as terras dele com a sua presença — disse Erlin, embora Vaelin ainda não tivesse visto o homem robusto falar.
— Tributo?
— Apenas uma oferenda simbólica — explicou Erlin. — Se permitir que vocês passem sem um, ele parecerá fraco e um dos homens mais jovens irá desafiá-lo.
O chefe falou, apontando um de seus machados para as fileiras reunidas do povo do gelo, e fez uma exigência gutural. Vaelin olhou para onde o machado apontava e se deparou com Dahrena, que estava de pé ao lado de Cicatriz, segurando as rédeas do cavalo.
— Ele quer o meu cavalo?
— Ah, não. — Erlin deu um leve sorriso. — Ele quer a sua mulher.
— Isso é inaceitável. — Vaelin levou a mão a uma algibeira no cinto, desamarrou-a e tirou de dentro uma pedra, um rubi belamente lapidado de peso mediano que lhe fora dado pelo Governador Aruan nas docas de Linesh cerca de dois anos antes, embora agora parecesse que havia sido há muito mais tempo. Houve momentos em que ele ficara tentado a vendê-lo, em particular quando estava na estrada, com Reva constantemente tão faminta, mas a canção do sangue ressoara em alerta sempre que considerava fazê-lo. Vaelin esperava que aquela ocasião fosse o motivo.
O chefe largou um dos machados para pegar a pedra preciosa quando Vaelin a jogou para ele, arregalando os olhos com uma fascinação instantânea. Os guerreiros ao seu lado esqueceram a disciplina e se aglomeraram em volta, cada rosto iluminado por um arroubo de cobiça. Pertak rosnou algo e ergueu o outro machado como aviso, fazendo com que recuassem, embora os guerreiros voltassem continuamente os olhos para o rubi.
Pertak tornou a falar, fazendo uma pergunta a Vaelin ao erguer o rubi contra a luz.
— Ele quer saber qual é o poder da pedra — traduziu Astorek, com uma leve nota de desprezo na voz.
— As montanhas são ricas em minério, mas não em pedras preciosas — disse Erlin. — Os laretha têm certa estima irracional por elas.
— Diga-lhe que tem o poder de capturar a alma dos homens — disse Vaelin. — Ele não deve olhar para a pedra por muito tempo.
Um breve lampejo de medo iluminou os olhos do chefe quando Erlin relatou o aviso, cerrando o punho com força sobre a pedra antes de erguer o olhar para Vaelin, estreitando os olhos em contemplação. Ele grunhiu uma resposta brusca e, com considerável determinação, deu meia-volta e caminhou na direção do povoado, seguido de perto pelo seu pequeno exército, e toda a preocupação com a chegada de um número tão grande de intrusos parecia ter desaparecido.
— Vocês podem ficar um dia e uma noite — disse Erlin. — Devo dizer que é uma concessão bastante generosa.
— É o suficiente? — perguntou Vaelin. — Para os nossos propósitos?
Erlin ergueu os olhos para a montanha que assomava sobre o povoado, o topo achatado parcialmente encoberto por uma névoa tênue.
— Você perceberá que o tempo perde o seu significado aqui, irmão.
Ele proibiu que qualquer um além de Vaelin o acompanhasse, embora Dahrena e os outros dotados tivessem protestado com veemência.
— Viemos de tão longe — disse Cara — para que o conhecimento nos fosse negado agora…
— Eu procuro preservar — interrompeu Erlin —, não negar. Acredite, você não me agradeceria por esse conhecimento.
Erlin conduziu Vaelin por um caminho que dava a volta no povoado laretha e ia até o sopé da montanha, parando entre um aglomerado de ruínas. Vaelin examinou os blocos de granito e as paredes parcialmente desmoronadas, notando uma familiaridade no modo como haviam sido modelados, a elegância das linhas e das imagens desgastadas pelo vento que haviam sido entalhadas nas pedras.
— A Cidade Caída — disse ele. — Este lugar foi construído pelas mesmas mãos.
— Não exatamente — retorquiu Erlin. — Apesar de falarem a mesma língua. — Ele apontou para uma escadaria que subia das ruínas e unia-se à encosta da montanha, e os olhos de Vaelin discerniram mais degraus entalhados na pedra, subindo num caminho sinuoso até o topo. — E terem os mesmos deuses.
— Então — disse Erlin enquanto subiam, os degraus úmidos devido à neblina perene e o ar cada vez mais frio ao seu redor — você não segue mais a Fé.
— Um homem não pode seguir uma mentira.
— A Fé nunca foi uma mentira. Confusa em certos aspectos, presa demais a dogmas em outros. Porém, tendo visto o que o resto do mundo tem a oferecer no que diz respeito ao divino, ela me agrada o suficiente.
— Quando nos encontramos pela primeira vez, você disse que não tinha escolha a não ser seguir a Fé. Quando compreendi quem você era, pensei que queria dizer que a lenda era verdadeira, que os Finados o haviam amaldiçoado por negar a Fé.
— Amaldiçoado? Durante muito tempo achei que fosse isso, quando fui expulso de minha aldeia natal, ainda aparentando ser um homem de trinta anos enquanto aqueles com quem eu cresci ficavam cada vez mais curvados e enrugados. Minha esposa era quem mais me perseguia, amargurada pela inveja diante da minha contínua juventude, odiando-me pelos fios grisalhos em seu cabelo e pela falta de desejo no meu olhar. Eu nunca fui um praticante muito assíduo da Fé, dizia os catecismos sem pensar de fato no significado, de vez em quando murmurava palavras mordazes contra os irmãos e sua moralização entediante. “Negador!”, a minha esposa me chamava, desesperada para encontrar uma razão nesse mistério. “Os Finados o amaldiçoaram”. Imagino que tenha sido aí que tudo começou. O insulto de uma velha amargurada deu origem a uma lenda.
— Então você nunca ouviu as vozes deles? O Além não lhe foi negado? Erlin parou, sua respiração saindo como fumaça e o rosto ficando sombrio.
— Ah, eu ouvi, mas só muitos anos mais tarde. Apesar das aparências, irmão, não sou de fato imune à morte. Não envelheço e não adoeço. Mas sem comida eu passo fome e, se for cortado, sangro como qualquer homem. Eu posso morrer e uma vez, há muito tempo, morri. Ou pelo menos cheguei tão perto de morrer que não faz muita diferença.
“Viajei muito depois que os aldeões me expulsaram, de uma ponta a outra dos quatro feudos, pois o Reino não existia naquela época. Suponho que estivesse procurando por algo, uma resposta para o enigma da vida interminável, mas eu não fazia muita ideia de como encontrá-la. Místicos e charlatães não eram difíceis de achar, todos prometiam sabedoria em troca de ouro, e com o tempo todos provaram ser loucos ou desonestos. Um dia parei numa taverna nilsaelina e ouvi um menestrel cantar sobre os costumes estranhos dos seordah, sobre como preservavam o seu lar na floresta com encantamentos das Trevas. Pareceu um bom lugar para procurar respostas. Afinal, eu era apenas um homem e sem dúvida nenhum guerreiro. Que ameaça poderiam ver em mim? Creio que andei durante meio dia entre as árvores até um seordah acertar uma flecha na minha barriga.
“Ele se aproximou para me ver sangrar, um sujeito alto com rosto aquilino que não mostrou muita reação quando implorei por ajuda. Depois de algum tempo o rosto dele desapareceu e a escuridão fria da morte surgiu para me buscar. Foi então que as ouvi, as vozes, sussurrando, gritando, implorando… Havia muitas. ‘O Além é isso?’, pensei. ‘Apenas um vazio ecoando com as vozes dos mortos?’ Nada de serenidade e sabedoria infinitas. Nada de uma eternidade tranquila. Devo dizer que fiquei bastante desapontado.
“Notei que as vozes haviam desaparecido, prendendo a respiração ao mesmo tempo, como se tivessem se calado numa expectativa temerosa. Então uma falou, e não era como as outras. Elas eram baixas, como os últimos ecos de uma canção sussurrada. Aquela era a voz plena e poderosa de uma alma completa, mas antiga, muito antiga.”
— O Aliado — disse Vaelin, lembrando-se do frio ancestral na voz que ouviu quando Dahrena o trouxe de volta do Além.
— Um nome que só fui escutar muito tempo depois. Mas, sim, era ele. E ele tinha uma oferta a fazer. “Irei mandá-lo de volta”, disse ele, “se você for o meu receptáculo”. Fui tomado pelo terror, não apenas dele, mas também da perspectiva de uma eternidade naquele vazio terrível. Meu medo era tamanho que poderia ter concordado num instante se não fosse por algo que ouvi em sua voz: uma ânsia desmedida e desesperada, uma necessidade do que ele sentia em mim. Era esmagadora, nauseante, e eu soube então que havia destinos piores do que a morte.
“Ele sentiu a minha recusa, a minha repulsa, e eu senti a sua vontade. O Além é um lugar que não é um lugar, um lugar de almas, mas também um lugar de dor, se souber como infligi-la, e ele sabia. Pude senti-lo me atacando, arrancando partes do meu ser à medida que eu era atingido pela sua vontade, não com ódio, mas em rompantes precisos e agonizantes. ‘Sirva-me’, disse ele de novo, ‘enquanto você ainda tem uma alma capaz de servir’. Não havia ódio naquela voz, pois acho que ele já não era capaz de sentir ódio, transformado pelas eras num ser de puro propósito.
“Eu me debati, gritei, chorei… implorei. Mas, ainda assim, recusei. Foi quando senti outra vontade que não a dele. Era algo diferente, algo não tão antigo, mas tão poderoso quanto, ao seu próprio modo, poderoso o suficiente para me arrancar das garras dele. Pude sentir então a minha alma se refazer, embora muito já tivesse sido tirado de mim, e memórias de infância e amizade se perderam para sempre. Até hoje não consigo me lembrar do rosto de minha mãe ou do nome da esposa que veio a me odiar.
“Minha salvadora falou comigo, a voz de uma mulher, a sua vontade tão diferente da dele. Confortando enquanto ele havia ferido, afastando o terror que ele tentara incutir. ‘Você não está acabado’, ela me disse. ‘Eu vi seu fim, homem de muitas vidas, e não é este. Procure aqueles como você, preserve todos os que puder, pois, quando retornar, será a força deles que irá sustentá-lo e trará o fim pelo qual você passará a ansiar.’ Ela então me disse mais três palavras antes de me tirar do vazio e me colocar de volta no meu corpo. O seordah ainda estava lá e teve um sobressalto quando os meus olhos se abriram de repente. Pelo sangue que escorria por entre os meus dedos, calculei que me ausentara por apenas alguns segundos. O seordah disse algo, parecendo levemente irritado, e sacou uma faca do cinto… e então a largou quando falei as palavras que ouvira no Além: ‘Nersus Sil Nin.’”
— A cega o mandou de volta — murmurou Vaelin. — Ela está lá, no Além. Enfrentando-o.
— Ela o enfrentou naquela época, mas agora… — Erlin sacudiu a cabeça. — Agora parece que o poder dele cresce sem oposição.
Vaelin deixou de lado as inúmeras perguntas, acostumado havia muito tempo com o fato de que quaisquer respostas demorariam a ser dadas.
— O seordah o curou — disse ele.
— Sim. Ele trouxe outros e me levaram para o seu acampamento. Meu ferimento era grave e passaram-se muitos meses até eu poder viajar de novo. Aprendi a língua deles, suas lendas, a verdade de como o nosso povo havia tomado as suas terras. Também aprendi que não havia encantamentos das Trevas protegendo a sua floresta, apenas grandes habilidades e uma coragem indomável que causavam medo suficiente para nos manter afastados. Com o tempo, eu me despedi e parti para cumprir a missão que ela me dera. Nem sempre tenho sido assíduo com os meus deveres. Sou dado a distrações e às vezes me canso dos erros repetidos com frequência e da crueldade que assola a humanidade. Porém, acho que no fim — ele ergueu o olhar para os degraus enevoados acima — fiz o que pude.
* * *
O topo da montanha estava envolto num silêncio tão pesado quanto a névoa que o cobria, e era possível ver apenas formas vagas quando venceram o último degrau. Erlin curvou-se um pouco pelo esforço, apoiando-se no seu bastão e olhando para as formas sombrias adiante com óbvio receio.
— Odeio este lugar — sussurrou ele, a voz baixa ao se empertigar e seguir em frente. — Porém, acho que aqueles que o construíram também odiavam.
Eles avançaram para dentro da névoa, as sombras transformando-se num aglomerado de construções, todas exibindo sinais de terem sido erigidas pelas mesmas mãos que haviam construído as ruínas no sopé da montanha. Eram na maioria moradas térreas e estruturas menores que Vaelin supôs serem depósitos, formando uma cópia em miniatura da Cidade Caída. Mas estas construções não estavam em ruínas. O silêncio tornou-se cada vez mais opressor conforme andavam por entre os prédios, cada porta e janela vazia uma testemunha indiferente à passagem deles. Apesar da ausência de estragos, Vaelin sabia que aquele era um lugar antigo; os cantos das construções haviam sido alisados e arredondados pelas intempéries. Além disso, ao contrário da Cidade Caída, não havia estátuas ali, e as únicas decorações eram imagens entalhadas acima de portas ou janelas, que séculos de vento e chuva haviam despojado de significado. Quem quer que tivesse construído aquele lugar aparentemente não tinha muito tempo ou inclinação para arte.
Levaram apenas alguns momentos para vasculhar as construções e terminaram na borda de um amplo círculo plano, em cujo centro havia um único pedestal achatado no topo.
— Pedra da memória — disse Vaelin.
Erlin assentiu e Vaelin ouviu o leve tremor em sua voz quando falou:
— A última a ser entalhada, pela mão de um deus, ainda por cima.
A boca de Vaelin se crispou com um divertimento indesejado e ele se virou para Erlin com um sorriso.
— Um deus é uma mentira.
Riram juntos, apenas por um momento, o som de seu júbilo logo se perdendo entre a névoa e a pedra ancestral.
— Bem. — Erlin apertou o cajado com mais força e deu um passo adiante. — Vamos?
Tal como as construções ao redor, os cantos do pedestal haviam sido arredondados pelas eras de exposição às intempéries, o topo plano era liso e sem marcas, a mossa no centro um círculo perfeito.
— Já tocou numa dessas antes? — perguntou Vaelin a Erlin.
— Quatro vezes até agora. Com frequência procuro lugares antigos, guiado pelos mitos e lendas que escuto em minhas viagens. Uma delas falava de uma cidade esquecida de imponente majestade escondida nas montanhas e protegida por tribos selvagens. Não fiquei muito surpreso ao descobrir que a realidade não correspondia à lenda. É raro corresponder.
Ele estendeu a mão, deixando-a erguida sobre a pedra, e olhou nos olhos de Vaelin.
— Pronto, irmão?
— Já toquei duas vezes nessas pedras — disse Vaelin, notando o tremor nos dedos de Erlin. — Elas possuem conhecimento, mas não são perigosas.
Erlin soltou outra risada, mais grave desta vez.
— Todo conhecimento é um perigo para alguém.
Vaelin estendeu a mão e Erlin a pegou, entrelaçando seus dedos nos dele. Fechando os olhos, ele respirou fundo e colocou as suas mãos na pedra.