CAPÍTULO DOIS

Lyrna

O rosto do Aspecto Arlyn não revelou qualquer traço de reconhecimento quando ele encarou Nortah, nem qualquer emoção ao voltar o olhar para Lyrna, embora seus olhos tivessem se estreitado ligeiramente. Dominado, compreendeu Lyrna. Como o Irmão Frentis ou os Kuritai. O Aspecto passou a mão sobre o ombro para sacar uma espada de padrão asraelino, o aço exibindo as marcas semelhantes a chamas características de uma lâmina da Ordem.

— Aspecto! — disse Nortah mais uma vez, dando um passo adiante, o braço da espada agora abaixado ao lado do corpo. — Sabe quem sou?

O Aspecto voltou a olhar para Nortah, a lembrança causando uma leve contração no rosto comprido.

— Sei quem você é, irmão — disse ele num tom calmo e reflexivo. — Você morreu.

Ele ergueu a mão livre, parou por um momento de reflexão inexpressiva, então fez um movimento quase imperceptível com o pulso e os Arisai avançaram, um júbilo maníaco em cada rosto, espadas movendo-se num borrão de carnificina habilidosa. A princípio as Adagas da Rainha recuaram diante do ataque, e Lyrna se viu prensada entre Davoka e Iltis quando as fileiras ao redor se comprimiram, mas a pressão diminuiu quando soltaram outro brado selvagem, recuperaram-se e revidaram.

Ela lutou para se virar e teve um vislumbre de Nortah enfrentando o Aspecto, o rosto tomado pela relutância enquanto bloqueava os golpes de Arlyn.

— Irmã! — gritou Lyrna a Davoka, que segurava a lança acima das fileiras que se entrechocavam, os olhos atentos para uma oportunidade de usá-la. — Os frascos! — Lyrna abriu caminho à força até parar ao lado da lonak e agarrou o seu braço. — Você ainda tem os frascos?

Davoka piscou para ela, aturdida por um momento, e então assentiu, dando um tapinha numa pequena bolsa que levava pendurada ao lado do corpo.

— Apenas dois.

— Fique perto de mim.

Lyrna bateu no ombro de Iltis para lhe chamar a atenção e apontou para Nortah, que agora recuava diante do ataque furioso do Aspecto, ao mesmo tempo que se esquivava das estocadas dos Arisai que os cercavam. Iltis assentiu e começou a abrir caminho pelas fileiras de soldados. Ao se aproximarem da extremidade da formação, o Lorde Protetor foi obrigado a se desviar de uma estocada dada por um Arisai, a mão de manopla vermelha que segurava a espada surgindo de repente no espaço entre ele e Lyrna. Ela golpeou com a machadinha, a lâmina atravessou o avambraço e quase decepou a mão do homem. O Arisai caiu aos seus pés e olhou para cima com um sorriso cheio de desejo e admiração. A machadinha de Lyrna tornou a descer, abrindo o crânio do volariano acima dos olhos.

Iltis deixou o círculo externo de soldados e forçou os Arisai a recuarem com golpes amplos de espada. Lyrna estendeu uma mão a Davoka, que a preencheu de pronto com um frasco já com a rolha removida. Outro Arisai passou por Iltis, a espada erguida junto à cabeça para desferir uma estocada curta e precisa na garganta de Lyrna. Ela moveu a mão num reflexo, lançando um jato de líquido negro do frasco direto nos olhos do volariano. A reação foi instantânea: a espada do Arisai caiu quando ele arqueou as costas e urrou, batendo com as mãos no rosto, enfiando os dedos na carne. Ao vê-lo cair e contorcer-se no chão do templo, Lyrna teve a satisfação de notar que qualquer vestígio de um sorriso havia desaparecido do rosto do homem.

Nortah estava a poucos metros agora, forçado a se agachar pelo peso dos golpes do Aspecto Arlyn, todos desferidos com tamanha fúria que mal era possível enxergá-los enquanto o seu rosto permanecia uma máscara pálida. Um trio de Arisai colocou-se no caminho de Iltis e o ataque combinado o forçou a parar; cortes começaram a aparecer no seu braço da espada e na testa. Lyrna foi para o seu lado e agitou o frasco da esquerda para a direita num arco amplo, fazendo a mistura da Mahlessa jorrar e atingir os Arisai; a maior parte do líquido caiu nas armaduras, mas o suficiente encontrou carnes expostas, levando-os para o chão de pedra aos gritos.

Para além deles, Nortah agora estava caído de costas, arrastando-se para longe enquanto o Aspecto se aproximava, a lâmina ainda em movimento. O Lorde Comandante aparou dois golpes com a típica eficácia, mas Lyrna notou como ele ainda estava se contendo, deixando de golpear as aberturas deixadas pelo ataque impiedoso do Aspecto.

— Aspecto Arlyn!

Ele parou ao ouvir o grito de Lyrna, a espada erguida, lançando-lhe apenas um olhar breve e indiferente, mas foi o suficiente. O frasco estava vazio, a não ser por algumas gotas no bocal. Lyrna colocou todas as forças no arremesso, o frasco rodopiou no ar e acertou o rosto do Aspecto. Por um momento ela achou que não havia funcionado, que toda a mistura havia sido usada, mas então viu uma gota brilhando na face do Aspecto, seu rosto transformado num grito paralisado de olhos arregalados. Ele caiu de quatro no chão, a espada chocou-se com estrépito nas pedras, estremecendo enquanto lutava para controlar as convulsões.

Um dos Arisai soltou uma risada pesarosa e avançou depressa com a espada preparada para golpear as costas do Aspecto, e então se curvou quando a espada de Nortah subiu numa estocada e lhe perfurou o peitoral. O Lorde Comandante levantou-se de um pulo e sua espada moveu-se num borrão prateado à medida que mais Arisai se aproximavam.

— Ao Lorde Nortah! — gritou Lyrna para as Adagas sobreviventes. Havia menos de trinta agora, mas todos ainda lutavam e estavam dispostos a seguir as ordens da Rainha. Ela estendeu a mão a Davoka, pegando o segundo frasco e arremessando o conteúdo contra os Arisai quando tornaram a investir, derrubando uma dúzia ou mais deles e fazendo os outros recuarem. Ver os companheiros convulsionando aos gritos pareceu ter acabado com o seu humor, muitos sorrisos vacilaram e as risadas cessaram. A dor os torna humanos, concluiu Lyrna, indo se posicionar junto às Adagas, que agora formavam um círculo bem reduzido, com apenas uma fileira. Nortah estava no centro, agachado ao lado do Aspecto, o rosto lívido de preocupação.

— Meu senhor! — gritou Lyrna, ríspida. — Ao trabalho, por favor!

Nortah lhe lançou um olhar de ressentimento malcontido e então se levantou, indo colocar-se ao seu lado.

— Se Vossa Alteza tem algum estratagema brilhante para estas circunstâncias, sou todo ouvidos.

— Matar o inimigo — disse ela, jogando o frasco de lado e erguendo a machadinha.

Um traço de um sorriso surgiu em seus lábios por um segundo e ele assentiu.

— Pouco sutil e mais do que direto, Alteza.

Os Arisai chegavam mais perto, mantendo os olhos fixos em Lyrna, atentos para qualquer sinal de outro frasco. Os companheiros caídos haviam parado de se contorcer e jaziam numa imobilidade rígida, cada rosto uma máscara petrificada de agonia, paralisada na morte. Pelo menos os ensinei a ter medo.

O olhar de Lyrna foi atraído de súbito para o quadrante sul do templo pelo brilho crescente de chamas alaranjadas, acompanhado do tumulto indistinto de combate e, curiosamente, do latido de cães enraivecidos. Porém, qualquer alegria que estivesse sentindo com a visão foi anulada pela quantidade de Arisai que se encontrava em seu caminho; a Imperatriz tivera a sensatez de enviar um amplo suprimento.

Outra explosão de chamas surgiu atrás dos Arisai, seguida por alguma espécie de comoção, distante demais para ser identificada, mas Lyrna percebeu certa discórdia na retaguarda das fileiras deles. Ela viu um dos Arisai que estava se aproximando parar de repente com a espada erguida diante do rosto, virando a lâmina em aparente perplexidade. Ele piscou, franziu o cenho, confuso, e então, sem uma pausa sequer, virou-se para o Arisai à sua esquerda e passou a lâmina pela garganta dele. Um de seus companheiros o matou de pronto, apenas para se conter um segundo depois, o rosto também assumindo a mesma expressão perplexa. Esse novo Arisai aturdido lançou-se de súbito no meio dos companheiros, desferindo golpes tresloucados com a espada, matando três antes de também ser abatido.

— O que é isso? — sussurrou Nortah. — É o seu elixir lonak, Alteza?

— Não. — Lyrna voltou o olhar para a retaguarda do exército Arisai e viu as fileiras inimigas se abrindo como se estivessem sendo cortadas por uma lâmina invisível, permitindo que uma figura esguia caminhasse entre elas, ignorada pelos Arisai ao redor, que pareciam estar todos com a mesma expressão de total perplexidade. O Aspecto Caenis passou pelo meio dos Arisai, fez uma mesura rígida para Lyrna, o sangue escorrendo de seu nariz, olhos, ouvidos e boca, e então voltou toda a sua atenção para os inimigos.

À direita, outro Arisai cravou a espada na barriga do homem ao seu lado, depois outro fez o mesmo, seguido por mais um. A discórdia percorreu as fileiras vermelhas como uma onda causada por uma pedrinha jogada num lago, mas provocando uma tempestade em vez de uma leve ondulação. Logo parecia que cada Arisai que podia ser visto estava lutando com aquele ao seu lado, golpeando-se com uma ferocidade que não correspondia com suas expressões aturdidas.

Caenis ficou de lado e gesticulou para o caminho que havia aberto pelas fileiras inimigas.

— Vão! — ordenou Lyrna às Adagas sobreviventes. — Fujam deste lugar.

Mas eles ficaram, não querendo partir sem a Rainha. Ela foi para o lado de Caenis e viu como ele tremia, o sangue escorrendo em abundância e a pele branca como neve.

— Venha, Aspecto — disse ela, segurando as suas mãos.

— Eu… receio que precise… permanecer aqui por algum tempo… Alteza — retorquiu ele, uma torrente vermelha escapando de sua boca e lhe cobrindo o queixo.

— Irmão! — Nortah correu até ele e tentou agarrar os braços de Caenis, mas o Aspecto cambaleou para longe, entrando na massa rodopiante de Arisai enlouquecidos, desaparecendo de vista em meio à fúria deles, que agora alcançava uma intensidade ainda maior de autodestruição. Nortah tentou ir atrás dele e foi contido somente por Iltis e Davoka, obedecendo a uma ordem gritada por Lyrna. Ela ordenou que as Adagas carregassem o ainda inconsciente Aspecto Arlyn e os conduziu pela batalha até os degraus do templo, com Nortah gritando irado enquanto Iltis e Davoka o arrastavam em seu encalço.

Do lado de fora havia mais corpos apinhando os degraus e o solo mais além, Arisai e Guardas do Reino, além de alguns com a vestimenta sem armadura da Sétima Ordem. Uma jovem de cabelos cor de mel estava ajoelhada ao lado de uma irmã gorda, as lágrimas escorrendo pelo rosto, um punhado de dardos ensanguentados presos entre os nós dos dedos. A mulher gorda estava nitidamente morta, os degraus abaixo dela cobertos de sangue, apesar de seu corpo não mostrar sinais de ferimentos. Estavam cercadas por uma dúzia de cães de caça, todos agachados no chão e ganindo tristemente. Perto dali, Trella Al Oren estava de pé em meio a uma dúzia de corpos enegrecidos, seu rosto coberto de sangue e fuligem. Uma nuvem de poeira cada vez maior subia a leste, as formas escuras de muitos cavaleiros visíveis ao pé dela, mantos azuis e verdes: a Sexta Ordem e a Guarda do Norte correndo em auxílio da Rainha.

Nortah ainda se debatia contra Iltis e Davoka, xingando-os enraivecido enquanto lutava para retornar ao templo. Lyrna virou-se e viu como a fúria dos Arisai continuou com a mesma intensidade por alguns minutos e então cessou de repente, fazendo com que se afastassem uns dos outros como que em resposta a alguma ordem silenciosa, olhando para o tapete de cadáveres que cobria o templo de uma ponta a outra.

— Basta! — gritou Lyrna, indo até Nortah e lhe dando uma bofetada forte no maxilar. Ele parou de se debater e olhou para Lyrna boquiaberto, seus olhos por um momento tão desprovidos de razão que ela se perguntou se Nortah não havia enlouquecido. — Ele se foi — disse ela, tentando abrandar o tom. — Veja como está o seu regimento, meu senhor.

O Lorde Comandante se curvou, afastou-se de Davoka e Iltis e passou os olhos pelos remanescentes das Adagas da Rainha, que agora mal chegavam a duas dúzias de almas.

— É claro, Alteza — murmurou ele num tom ao mesmo tempo mordaz e cansado. — Minha poderosa força está às suas ordens.

Ele se retirou e começou a organizar os sobreviventes de alguma forma. Lyrna virou-se quando o Irmão Sollis parou o cavalo ali perto, saltou da sela e correu até onde o Aspecto Arlyn jazia entre Murel e Alornis, seu rosto revelando choque e alívio.

— Alteza! — O Irmão Ivern parou ao lado e olhou para ela com uma preocupação horrorizada que a fez considerar a própria aparência, coberta de sangue da cabeça aos pés e segurando uma machadinha avermelhada. — Precisa de um curandeiro?

— Não, obrigada, irmão. — Lyrna voltou o olhar para a Guarda do Norte, que galopava para formar um cordão entre ela e o templo. A leste, mais poeira se erguia sobre uma massa compacta de infantaria que vinha correndo, o estandarte da Companhia Morta de Al Hestian visível em meio à nuvem.

— Onde está o Senhor da Batalha? — perguntou ela a Ivern.

A expressão do jovem irmão tornou-se sombria.

— Ferido, Alteza. É grave. Havia Kuritai escondidos entre os Espadas Livres, pelo menos mil dos desgraçados. — Lyrna notou a bandagem ensanguentada que cobria a mão de Ivern. — Devo dizer que demoraram para serem mortos.

Ela assentiu e virou-se para o templo, vendo os Arisai remanescentes mais uma vez entrando em formação em fileiras organizadas. Não conseguia ver os rostos, mas o som de suas risadas era nítido o bastante. Metade obrigada a matar a outra e é tudo apenas uma bela piada.

— Encontre Lorde Al Hestian — disse ela a Ivern. — Ele deve cercar o templo para evitar que o inimigo escape. Peça aos seus irmãos para que transmitam a ordem aos outros regimentos para fazerem o mesmo. Então me traga Lorde Antesh.

Eles tentaram romper o cerco antes que a Guarda do Reino estivesse completamente a postos, uma cunha compacta de quinhentos Arisai lançando-se sobre o regimento de Al Hestian enquanto o restante dividia-se em grupos menores e tentava escapar para o sul. Contudo, os mortos de Al Hestian se mantiveram firmes; a linha deles vacilou com o impacto da investida, mas não se desfez, e seu Lorde Comandante posicionou-se no centro da primeira fileira. Mais tarde Lyrna ouviu como ele usara o seu cravo para empalar um de seus homens que dera as costas ao inimigo. Após quinze minutos de combate selvagem, com a Guarda do Reino movendo-se para flanqueá-los, os Arisai recuaram de forma ordenada, tendo perdido cerca de metade de seus homens. Os grupos menores eram atacados sem cessar pela Guarda do Norte e pela Sexta Ordem, abatidos às dezenas, até que também começaram a recuar. Os Arisai formaram um compacto quadrado defensivo enquanto recuavam, movendo-se como uma só besta gargalhante ao subirem os degraus para espalharem-se dentro do templo.

— Dê a ordem, Alteza — disse Lorde Adal, suas feições geralmente belas distorcidas por uma sede de vingança. Os Arisai aparentemente não possuíam qualquer noção de rendição e ele havia perdido muitos Guardas do Norte contendo a fuga deles. — Limparemos o lugar para a senhora.

— Se me permite, Alteza? — Lyrna virou-se e se deparou com Al Hestian apontando o cravo ensanguentado para o rio. — Nossa cavalaria deveria cobrir o passadiço oculto e a margem norte. É a única linha de retirada que lhes resta.

Ela assentiu.

— Lorde Adal, junte-se à cavalaria nilsaelina. Vocês protegerão o passadiço enquanto os lanceiros bloqueiam a margem norte.

O comandante da Guarda do Norte assentiu, relutante.

— E o ataque, Alteza? Peço para ter a honra de liderá-lo.

Lyrna passou os olhos pelo exército: a Guarda do Reino e a infantaria nilsaelina estavam numa formação ordenada e os arqueiros de Antesh se posicionavam atrás deles. A cavalaria patrulhava os flancos num arco amplo que chegava até o rio, para bloquear todas as rotas de fuga. Tudo feito apenas com poucas ordens e nenhum plano formal. Que instrumento mortal construímos, pensou ela. Marcado e massacrado o suficiente por um dia.

— Isso não será necessário, meu senhor — disse ela a Adal antes de se virar para Al Hestian. — O exército permanecerá no lugar. Transmita a ordem para trazerem as balistas.

Os Arisai continuaram a fazer pequenas surtidas enquanto as balistas eram posicionadas; alguns ainda tinham cavalos suficientes para fazer uma investida a oeste, tentando romper as fileiras da cavalaria e conseguindo apenas se depararem com cavaleiros renfaelinos e serem aniquilados. Lyrna também recebeu relatos de outros que tentavam nadar para o outro lado do rio, os poucos que chegavam à margem oposta fornecendo um exercício bem-vindo aos lanceiros nilsaelinos que se encontravam à espera.

Alornis informou que as balistas estavam prontas ao final da tarde. Como sempre, trabalhar em seus engenhos parecia deixá-la mais animada, e ela ficou de lado, observando com uma expressão levemente orgulhosa, enquanto a última das máquinas era colocada ao lado de suas companheiras. O pequeno contingente de artesãos que cuidava das balistas manuseou as várias alavancas e molinetes até que cada uma estivesse armada e pronta, os braços cruzados dos arcos puxados para trás, à espera.

— Quando quiser, meu senhor — disse Lyrna a Antesh.

O Lorde dos Arqueiros assentiu e ergueu o seu arco acima da cabeça. Os arqueiros, perfilados imediatamente atrás da linha das balistas, ergueram bastante os arcos e puxaram as cordas até atrás das orelhas para que tivessem o máximo de alcance. Antesh abaixou o braço e a chuva de flechas teve início. O céu ainda estava claro o suficiente para que fosse possível acompanhar a massa escura de flechas ao subirem e caírem sobre o templo, uma chuva negra que continuou no mesmo ritmo, uma vez que Lyrna ordenara que todas as setas possíveis fossem recolhidas do campo de batalha. Ela podia ver o sangue ainda reluzindo em muitas pontas de flechas disparadas pelos arcos longos. Os arqueiros pareciam incansáveis, muitos grunhindo com o esforço de puxar a corda e disparar a tal velocidade, mas os seus rostos estavam tomados por um ódio determinado. Ao que parecia, matar tantos Espadas Livres não havia sido suficiente para saciar a sua sede de vingança.

Lyrna usou a sua luneta para examinar o templo e viu um Arisai tombar ao tentar correr para uma das casas de deuses piramidais, atravessado por três flechas a trinta centímetros do abrigo, e dois de seus companheiros caíram sobre o seu corpo no momento seguinte. Eles já são loucos, pensou ela, a luneta detendo-se num Arisai que sacudiu a cabeça com uma resignação divertida ao olhar para as duas flechas cravadas em seu peitoral. Podem ser enlouquecidos ainda mais?

A resposta não tardou a ser dada: um grito retumbante de despreocupação foi ouvido do templo antes que saíssem correndo. Toda coesão havia sido esquecida agora e eles simplesmente investiram contra a linha de balistas numa onda vermelha e desordenada. Lyrna aguardou até que os que vinham à frente tivessem deixado os degraus antes de dar a ordem para que as balistas fossem disparadas, a distância tendo sido encurtada para menos de quarenta metros. O efeito foi impressionante: os Arisai da linha de frente foram abatidos por uma foice invisível e os que vinham atrás tropeçaram sobre os corpos ou foram jogados longe pelo impacto da segunda saraivada. Em alguns casos, um virote perfurava um Arisai com força suficiente para atravessá-lo e matar mais um de seus companheiros. No entanto, apesar das baixas, a investida dos Arisai manteve ímpeto suficiente para chegar a quinze metros das balistas, e foi nesse momento que os arqueiros de Antesh avançaram, miraram mais baixo e dispararam outra chuva de flechas que deteve de vez o exército vermelho.

— Alteza — disse Al Hestian —, creio que está na hora.

Lyrna assentiu e gesticulou para o grupo de corneteiros ali perto, mandando-os correndo para os flancos opostos do exército, e foi ouvido o toque para uma investida da cavalaria. Antesh andou pela linha de arqueiros berrando ordens para que cessassem os disparos, embora alguns continuassem com uma desconsideração frenética pelas ordens e tivessem de ser contidos à força. Felizmente, tanto os arqueiros quanto as balistas haviam parado quando o Senhor Feudal Arendil conduziu os seus cavaleiros do flanco esquerdo e o Irmão Sollis levou a Sexta Ordem e a cavalaria da Guarda do Reino do direito. Os Arisai sobreviventes morreram com o que só podia ser descrito como uma bravura incomparável, saltando para derrubar cavaleiros das selas, cortando patas de cavalos, lutando até o último homem, dando voz ao seu júbilo até o fim.

O Conde Marven perdia e recobrava a consciência enquanto ela permanecia sentada ao seu lado, segurando um pano úmido contra a testa ardente dele quando a sua aflição transformava-se num pânico choroso. O Irmão Kehlan tratara do Senhor da Batalha com grandes doses de flor rubra e seu rosto ficou sombrio quando Lyrna lhe perguntou se era sensato usar tanta.

— A coluna dele está quebrada abaixo do pescoço, Alteza — informou o curandeiro. — Se vivesse, ele não tornaria a andar. E ele não viverá.

— Eu… — começou Marven, os olhos arregalados de súbito ao encontrar o rosto de Lyrna. — Eu matei um Kuritai, Kerisha. Eles lhe contaram?

Kerisha, ela sabia, era o nome da Condessa Marven.

— Sim, meu amado — disse ela, passando o pano pela testa e descendo pelo rosto. — Eles me contaram.

— Qual é o problema? — perguntou Marven, subitamente cauteloso. — Por que está zangada?

— Não estou zangada. Estou orgulhosa. Muito orgulhosa.

— Você… só é gentil quando está zangada — murmurou ele, acalmando-se um pouco. — Uma língua que podia cortar seda, o Senhor Feudal sempre dizia… Mas a Rainha… — Ele fez uma pausa para sorrir com afeto enquanto refletia. — Você pode ter encontrado alguém à sua altura com ela. Mas acho que ela estará mais receptível agora… Aquele castelo que você sempre quis…

— Sim — assegurou-lhe Lyrna. — Tenho certeza de que ela estará.

— Os meninos… — Sua voz ficou mais baixa, os olhos turvando-se ao afundar ainda mais a cabeça no travesseiro. — Você tinha razão… Nada de serviço militar para eles… Há ouro nos Confins, muito… Vamos man-dá-los para lá…

Ele dormiu durante algum tempo, sem se incomodar com os choros e gritos dos feridos que apinhavam a tenda. Mensageiros e capitães vieram vê-la no decorrer da noite, todos dispensados por Murel e Iltis. Lyrna permaneceu e velou o Conde Marven até que seu peito parasse de subir e seu rosto perdesse toda a cor.

— Murel — disse ela, e a dama foi agachar-se ao seu lado. A carne ao redor de seu olho esquerdo estava com um tom púrpura escuro e ela tinha uma fileira de sete centímetros de pontos na face. — Tome nota. Uma concessão de terra para a Condessa Kerisha Marven de Nilsael e fundos suficientes para a construção de um castelo.

— Sim, Alteza. — Murel hesitou, olhando fixamente para o rosto de Lyrna. — A senhora devia dormir, minha Rainha.

Lyrna sacudiu a cabeça. Dormir significava sonhar, e ela sabia o que os sonhos lhe mostrariam.

— Peça ao Irmão Kehlan algo para me manter acordada. E diga ao Irmão Hollun que preciso de um relatório completo de nossas baixas.

A irmã loura apresentou-se como Cresia e estava de pé com a cabeça baixa enquanto o corpo do Aspecto queimava atrás dela. Lyrna os observara dizerem as suas palavras, aqueles poucos sobreviventes de uma Ordem muito reduzida, cada um dando um passo à frente com uma história de bondade, sabedoria ou coragem. Lorde Nortah também estava ali, assim como o Irmão Sollis e muitos da Sexta Ordem. O Lorde Comandante vacilara durante as suas palavras, uma história da época que passaram na Floresta Martishe, deixada inacabada quando ele se calou, olhando para o corpo na pira como se não compreendesse o que estava acontecendo.

— Ele não chegou a conhecer os seus sobrinhos — disse ele por fim, a voz fraca e sem emoção. — Pois ele era meu irmão, e sei que eles o teriam amado.

— Indiscutivelmente, o Aspecto Caenis foi um grande homem — disse Lyrna. — Uma grandeza que só foi revelada recentemente, mas brilhante o bastante para ofuscar a todos nós. Será sabido para todo o sempre que este homem jamais vacilou no caminho que tomou, jamais se esquivou dos mais árduos deveres e deu tudo a serviço do Reino e da Fé.

Houve mais fogos a serem acesos, mais palavras a serem ditas. Murel, Iltis e Davoka estavam junto à pira de Benten e a planície estava repleta de outras. De acordo com a tradição, soldados do mesmo regimento estavam sendo entregues juntos às chamas, de modo que havia dezenas de piras em vez de milhares.

— Sua Ordem fez a sua escolha, então? — perguntou Lyrna à Irmã Cresia.

A jovem abraçou-se com força, o cabelo lhe cobrindo o rosto como um véu.

— Sim, Alteza. Embora eu tenha implorado para que escolhessem outra pessoa. — O cabelo dela se dividiu quando ergueu o rosto para encarar a pira, o Aspecto Caenis agora apenas uma forma escura entre as chamas. — Nunca poderei ser ele. Ele era… grande, como a senhora disse.

— A guerra tem uma tendência a nos privar de escolhas, Aspecto. Descanse um pouco. Amanhã precisarei de um relatório de quantos vocês são.

— Restam 23 de nós, Alteza — disse Cresia. — A Sétima Ordem nunca foi muito numerosa. Talvez o máximo que já teve foi quatrocentos membros.

— Vocês a reerguerão, com o tempo.

Cresia tornou a baixar o olhar e Lyrna não teve muita dificuldade em adivinhar o que ela pensava. Outra batalha como essa e não haverá nada para ser reerguido.

O sol do início da manhã caía sobre a correnteza agitada do rio, levantando uma névoa fina das águas. O Aspecto Arlyn estava sozinho na margem, agora sem a armadura vermelha, uma figura alta com um manto azul sem dúvida tirado do corpo de um irmão morto. O Irmão Ivern encontrava-se ali perto, e curvou-se com um sorriso cansado quando Lyrna se aproximou. Ela se perguntou se ele estava ali como guarda ou carcereiro.

— Ele falou? — perguntou ela.

— Um pouco, Alteza. Perguntou sobre o Aspecto Grealin e Lorde Vaelin.

— O que você contou a ele?

Ivern pareceu intrigado pela pergunta.

— Tudo. Ele é o nosso Aspecto.

Lyrna assentiu e foi para o lado do Aspecto, o Irmão Verin mantendo-se a menos de três metros dela, como ordenado. Arlyn virou-se para a Rainha, abaixando a cabeça na mesura curta que ele sempre fizera ao seu pai e ao seu irmão. Sua expressão era pesarosa, como era de se esperar, mas Lyrna também percebeu que ele a encarava com um olhar de julgamento, um olhar que ela sabia que o Aspecto nunca hesitara em mostrar a Janus.

— Alteza — disse ele. — Por favor, aceite as minhas condolências pela perda do Rei Malcius.

— Obrigada, Aspecto. Apesar de todos nós termos sofrido perdas.

Ele olhou rapidamente para o Irmão Verin. O jovem dotado vira muito desde que embarcara no navio com ela e estava menos inclinado a demonstrações de nervosismo, embora ainda se remexesse um pouco sob o olhar do Aspecto.

— Aprendi a ser cautelosa ao lidar com aqueles que encontraram a Imperatriz — disse Lyrna.

O Aspecto assentiu numa aceitação plácida e virou-se de novo para o rio. Eles se encontravam paralelos ao ponto onde os Arisai haviam atravessado, a correnteza mais turbulenta ali do que nos outros lugares, deixando a água branca onde se encontrava com a margem.

— Como foi feito? — perguntou Lyrna. — O passadiço. A Senhora Alornis o considera um feito notável de engenharia.

— Com tijolos, ossos e sangue — respondeu Arlyn. — Três mil escravos trabalhando durante dez dias sob o meu comando. O rio é veloz, como a senhora pode ver, e os Arisai divertiam-se muito com o chicote. No fim, restavam apenas quinhentos escravos.

— Parece que os estratagemas da Imperatriz são astutos, mas custosos.

O Aspecto sacudiu lentamente a cabeça.

— Este estratagema foi meu, Alteza. Concebido por ordem dela, naturalmente. Mas a ideia toda de atacar vocês aqui foi minha.

— Eu sei que o senhor não era responsável por suas ações. Nosso inimigo emprega muitos artifícios ignóbeis.

— De fato. Principalmente uma compulsão para que vinganças inconsequentes sejam executadas.

— Não peço desculpas por assegurar o futuro do Reino.

— É essa a sua intenção, Alteza? Se for, a Imperatriz ficaria muito surpresa.

Lyrna enfiou as mãos no vestido, relutante em deixar que ele visse como as cerrava numa raiva contida.

— Se o senhor possui informações sobre os planos do inimigo, eu gostaria de ouvi-las.

— Ela descia para me ver às vezes, naquela caverna de horrores onde gravaram o domínio na minha carne. Na maior parte do tempo ela fazia perguntas, testando o meu conhecimento da História, a minha experiência de comando. Eu esperava que ela fosse arrancar de mim cada segredo que eu tinha sobre a Fé e o Reino, mas logo ficou claro que ela sabia mais do que eu. Também ficou claro que ela é totalmente louca, uma consequência inevitável de séculos passados a serviço do Aliado. — Arlyn abaixou a cabeça por um momento, de olhos fechados e com a respiração subitamente fraca. — Até mesmo uma breve exposição é a mais árdua das provações.

— O que ela fará agora?

— Formulará outro plano para matá-la, imagino. Ela parece achá-la bastante incômoda. “Criei milhares de almas vingativas, mas nenhuma tão importuna quanto essa vadia cuspidora de fogo.”

— Quantos Arisai ela ainda tem?

— Talvez sete mil. Mais outros oitenta mil Varitai e Espadas Livres.

Lyrna olhou para as mãos de Verin, confirmando que ele fizera o sinal para verdade. Embora ela tenha ocultado a verdade antes, e eu não fui capaz de perceber.

— Eu imaginava que haveria mais — disse ela.

— A guerra no Reino consumiu o grosso das melhores tropas deles e a discórdia aumenta em todos os cantos do império. Nova Kethia caiu com uma rebelião de escravos, inspirando revoltas pelas províncias. Ela também parecia preocupada com alguma missão ao norte. Ela me fez executar um general graduado que questionara a sensatez de enviar mais tropas para lá.

Uma missão ao norte… Vaelin. Ele conseguiu atravessar o gelo. Um leve sorriso surgiu em seus lábios. É claro que conseguiu.

— Fale-me mais sobre essa discórdia.