Vaelin
O nome do homem parecia ser Hirkran ou Machado Vermelho; pareciam ser intercambiáveis, dada a frequência com que Erlin os usava.
— Ele perdeu três filhos para os volarianos — relatou ele. — Um foi levado como escravo anos atrás, os outros dois na semana passada.
— Ele é o chefe desses… othra? — perguntou Vaelin.
Erlin sacudiu a cabeça.
— Machado Vermelho é um título honorífico, dado ao principal guerreiro da tribo. “Campeão” seria uma tradução melhor. E os othra são apenas uma das seis tribos abrigadas aqui. Todos os chefes morreram lutando. Ele não fala por todos.
— Ele sabe se os outros lutarão conosco?
Erlin transmitiu a pergunta a Hirkran, que lançou um olhar severo para a caverna, onde os membros das tribos espreitavam nas sombras, todos os olhos aparentemente voltados para aquele encontro.
— Ele não tem certeza — traduziu Erlin. — Alguns não irão apenas porque os othra irão. Alguns vão ficar aqui e irão se mijar para sempre.
— Ele pode nos guiar até os volarianos?
Hirkran fez uma longa pausa antes de responder, o olhar fixo em Vaelin.
— Ele vai nos guiar, mas primeiro insiste que seja nomeado líder do exército.
Lorkan, que se encontrava ali perto com o seu gato, soltou uma bufada de escárnio, fazendo o othra rosnar e avançar com um machado erguido. Vaelin se colocou entre eles quando o gato se agachou e arreganhou os dentes. Ele notara que a coragem de Lorkan aumentara de forma considerável desde que adquirira o animal.
— Suponho que ele tenha uma razão para pedir isso? — perguntou ele a Erlin enquanto Hirkran continuava a olhar furioso para o dotado.
— Essas pessoas respeitam somente a força. Se ele não for nomeado líder, elas o verão como um mero vassalo de um estrangeiro, o que significa que ele enfrentará um desafio instantâneo de um rival mais jovem. Pode chamar de título cerimonial, se quiser. Estas são as terras deles, Vaelin. Diminuídos como estão, ainda merecem o seu respeito.
Vaelin olhou para as figuras esfarrapadas que se moviam na penumbra da caverna, gente mais jovem agarrando armas enquanto as crianças se reuniam em volta dos idosos. Cada rosto parcialmente sombreado estava coberto pela sujeira de dias passados lutando pela vida; muitas estavam visivelmente exaustas e curvadas pela dor de ferimentos recentes. Contudo, ele viu que ainda havia uma atitude desafiadora em seus olhos, até mesmo nos mais jovens. Eles podiam ter perdido a batalha, mas ainda não estavam derrotados.
— Diga-me o que dizer — pediu ele a Erlin.
Hirkran os conduziu por um caminho sinuoso ao longo de uma cadeia de colinas altas, com seis de seus guerreiros fazendo o reconhecimento do terreno adiante. Vaelin seguia com Erlin, Kiral e Astorek. A missão de reconhecimento poderia ter sido evitada se ele tivesse concordado em deixar que Dahrena voasse mais uma vez, mas uma olhadela nas feições ainda pálidas dela o fez recusar de modo veemente.
— Eu gostaria de lhe lembrar, meu senhor — disse ela por entre os dentes —, que não possuo posição formal neste exército e, na verdade, sou livre para agir como quiser.
— E eu sou livre para empregar qualquer um dos diversos métodos à minha disposição para deixá-la inconsciente sem machucá-la — retorquiu Vaelin. — Ficará aqui e descansará, minha senhora.
Ela franziu o cenho e se afastou, e Mishara forneceu uma ideia nítida dos sentimentos dela sibilando brevemente antes de acompanhá-la aos pulos.
Haviam percorrido cerca de treze quilômetros quando Hirkran mandou pararem, e Vaelin notou como os lobos de Astorek haviam passado a andar com mais cautela, mantendo-se agachados entre o topo escarpado das colinas e parando com frequência para farejar o ar. Os animais eram claramente uma presença desconcertante para Hirkran e a sua gente, apesar de que, pela indiferença que tinham o cuidado de manter, ele tivesse deduzido que demonstrações aparentes de medo eram consideradas uma grande vergonha.
Hirkran agachou-se e foi até a beira da encosta, e Vaelin esgueirou-se ao seu lado. Abaixo deles a cadeia descia num penhasco escarpado, fornecendo uma bela visão do vale adiante. Era vasto e com uma planície no centro de talvez um quilômetro de largura, dividida por um rio raso. O exército volariano estava acampado num perímetro circular de vários piquetes e tendas bem alinhadas. Parecia que o Bastardo da Bruxa era um general eficiente.
Hirkran disse algo num murmúrio brusco que Erlin traduziu como uma praga obscena que envolvia a invocação de várias entidades etéreas, assim como uma forma engenhosa e canibalesca de mutilação genital.
— Por que comeriam isso? — perguntou Kiral com uma careta de desagrado.
— Para absorver a força de um inimigo — respondeu Erlin. — E simbolizar o fim de sua linhagem. Ter filhos é muito importante para as tribos. Um homem ou uma mulher infértil são vistos como uma maldição e ficam sujeitos a ser exilados, ou a coisa pior, caso sejam insensatos o suficiente para não deixarem a tribo.
A caçadora lançou um olhar enojado para os guerreiros ao redor e murmurou “Selvagens”.
Hirkran tornou a falar e gesticulou na direção do acampamento volariano.
— Nosso líder exige que o exército seja trazido aqui para um ataque imediato — disse Erlin. — Ataque esse que ele liderará pessoalmente. Isso precisa ser feito depressa, ou os espíritos nos acharão fracos e se recusarão a ajudar.
— Eles esperam que os seus deuses ajudem? — perguntou Vaelin.
— Eles não possuem deuses propriamente ditos. Acreditam que estas montanhas possuem almas próprias, bondosas ou vingativas de acordo com os seus caprichos. Quando ocorrem tempestades, elas estão bravas, quando o inverno é ameno, estão satisfeitas. Mas elas nunca veem a covardia com bons olhos.
— E iremos honrá-las de bom grado com a nossa coragem. Mas primeiro preciso perguntar o que ele viu desses invasores. Em particular dos que os lideram.
O rosto de Hirkran se fechou e ele desviou o olhar antes de dar uma série de respostas curtas e grunhidas.
— Quando chegaram, pensamos que seria como antes — relatou Erlin. — Eles chegam, nós os enfrentamos, roubam crianças, partem. Às vezes as crianças podem ser compradas de volta por cobre ou metal de fogo. Geralmente não. Desta vez eles pegaram as crianças e as mataram. Mataram tudo, até mesmo as cabras e alces selvagens. Nós lutamos… — O rosto de Hirkran assumiu o aspecto de uma máscara, como se os horrores que testemunhara estivessem além de sua capacidade de expressão. — Lutamos com todas as nossas forças… Mas eles eram tantos, muitos mais do que antes. Não vimos quem os lidera, embora os rotha tenham falado de sete homens vermelhos com poderes que rivalizavam com os espíritos, mas eles são mentirosos notórios.
Poderes que rivalizavam com os espíritos.
— Há algum rotha aqui? — perguntou Vaelin, gesticulando para os outros guerreiros.
Hirkran cuspiu e fez um barulho de nojo.
— Na caverna. O fedor deles nos desonra.
Vaelin assentiu e afastou-se da encosta, fazendo com que Hirkran berrasse uma pergunta a Erlin.
— Onde você vai?
— Reunir o exército para o ataque do nosso poderoso líder. Onde mais?
Os rotha eram liderados por uma mulher robusta de meia-idade com uma matriz funda de cicatrizes decorativas gravadas na carne em volta dos olhos.
— Mirvald — disse ela quando Erlin perguntou o seu nome, acrescentando alguns outros títulos que aparentemente indicavam a sua posição.
— Ela é uma mistura de conselheira e xamã, e dizem que tem a capacidade de ouvir as palavras dos espíritos — disse Erlin.
— Ela viu os sete homens vermelhos? — perguntou Vaelin.
Mirvald olhou atentamente para Vaelin por um segundo antes de responder.
— Os rotha foram os primeiros a sentir a ira deles. Os Sete foram sozinhos até o povoado. Por serem forasteiros, os guerreiros tentaram matá-los, mas acabaram mortos. Os Sete não são como outros homens. Eles se movem e lutam como se fossem um, como se cada um deles ouvisse os pensamentos dos outros. Ainda assim, os rotha teriam vencido se eles não tivessem outros poderes. Um podia matar com um único toque, outro tinha o poder de congelar o coração de um homem com o medo. Eles mataram muitos rotha, e então o exército chegou e matou muitos mais.
— Agradeça a ela pelas informações — disse Vaelin.
A mulher inclinou a cabeça ao ouvir as palavras de Erlin e então fez uma pergunta:
— Como você pretende derrotar os Sete quando outros não conseguiram?
Vaelin olhou para onde Urso Sábio conversava com os outros dotados, todos reunidos enquanto ele dava outra lição tirada de seu poço de conhecimento inesgotável.
— Diga a ela que temos os nossos poderes. Se quiser vê-los, ela deveria vir conosco.
Erlin escutou a resposta da mulher e forçou um sorriso plácido.
— Ela irá, mas só se você nomeá-la líder do exército. O povo dela não irá de outra forma.
— Já temos um líder.
— Desconfio que não fará diferença se você nomear dois. As tribos raramente falam umas com as outras, a não ser para trocar insultos. Admito que estou surpreso que elas tenham conseguido passar mais de um dia sem terminar o que os volarianos começaram.
— Muito bem. — Cansado, Vaelin assentiu e curvou-se para Mirvald, e então se virou para Urso Sábio. — Aguardo as ordens sensatas dela e, com a sua permissão, irei agora consultar os meus capitães.
— Como os encontramos? — perguntou Marken. — Escondidos num exército desses?
— A rotha disse que eles se movem como um — disse Vaelin. — Desconfio que, se encontrarmos um, encontraremos todos. Ainda assim, não será fácil no meio da batalha.
— Minha canção pode nos guiar — disse Kiral. — Mas a melodia está tão irregular agora…
— Não. — Vaelin sacudiu a cabeça para afastar as lembranças tingidas de vermelho de Alltor. — É melhor evitar cantar durante uma batalha. — Ele se virou para Astorek. — Os falcões-lanceiros de sua mãe poderiam encontrá-los?
— Fica difícil controlar um animal quando a matança começa — respondeu ele. — Os sons, o cheiro de sangue, tudo isso os deixa temerosos ou sedentos. É necessária uma grande concentração para garantir que ataquem o inimigo e não a nossa própria gente. Manter foco suficiente para procurar uma presa específica seria difícil, talvez impossível.
— Eu posso encontrá-los — disse Dahrena, num tom baixo, mas determinado. — As almas deles são como pérolas negras num mar vermelho.
— A senhora já voou o suficiente durante esta empreitada — disse Vaelin.
— Não há outro modo, como desconfio que saiba, meu senhor. Além do mais — ela estendeu a mão e pegou a de Cara —, tenho amigos para dividir o fardo.
— Mais de um — acrescentou Marken, indo para o seu lado. — Duvido que os meus velhos ossos sirvam para lutar, de qualquer forma.
— Então, como pode ver, meu senhor — Dahrena o olhou nos olhos com um sorriso radiante —, o nosso curso está traçado.
— Lembre-se, eles precisam ser capturados vivos — disse Vaelin a Astorek. — Até que Urso Sábio possa tocá-los, eles não devem ser mortos.
O volariano assentiu enquanto os seus lobos se posicionavam ao lado de Vaelin e Cicatriz. O exército havia se reunido ao norte da cadeia de colinas, marchando durante a noite para chegar antes do amanhecer. Dahrena ficaria no topo da elevação com Cara e Marken, seus gatos andando pelas encostas com vinte dos guerreiros mais confiáveis do Povo Lobo.
Vaelin foi até Dahrena e os outros recuaram a uma distância respeitosa. A raiva dela parecia ter se dissipado e ela apertou sem hesitar as mãos que Vaelin estendeu, retribuindo o beijo e demorando-se um pouco.
Ele recuou depois de um momento e falou em voz baixa:
— Eu pedi tanto de você…
Ela levou a mão aos lábios dele.
— Não mais do que pede de si mesmo. Viemos para pôr um fim nisto, e estou ansiosa para fazê-lo. Eu quero ir para casa, Vaelin. Eu quero ir para casa com você, o que não acontecerá até que isto acabe.
Vaelin encostou a testa na dela e apertou mais uma vez as mãos de Dahrena antes de se afastar e ir até Cicatriz e os lobos.
O Bastardo da Bruxa escolhera bem o lugar para o acampamento; a única proteção era fornecida pelo rio raso que corria pelo fundo do vale. Vaelin conduziu Cicatriz pelas rédeas através da água, as margens altas o suficiente para ocultar o cavalo. Os lobos iam adiante, mantendo-se nos flancos. A penumbra antes do amanhecer desaparecia depressa quando ele parou a um quilômetro e meio do acampamento e pediu que Alturk pegasse os seus Senthar e atacasse os volarianos pelos flancos.
— Lorkan irá com você — disse ele ao Tahlessa. — Abra um buraco na linha de piquetes deles.
— Mal posso esperar — comentou Lorkan, forçando um sorriso, sua coragem recém-descoberta agora vacilando visivelmente, apesar da presença de seu gato.
— Ao raiar do dia — disse Vaelin a Alturk, estendendo a mão. — Não antes.
Alturk olhou para a mão dele por um momento e então apertou rapidamente o seu antebraço.
— O nome do meu filho era Oskith — falou. — Significa Faca Negra. Um nome apropriado. — Ele olhou para onde Kiral estava agachada na correnteza, passando a mão no pelo molhado de seu gato. — Assim como o da minha filha. Eu gostaria que ela soubesse disso.
— Então viva e diga você mesmo a ela.
— Isso faria de mim um mentiroso. Cantei a minha canção de morte para os deuses na noite passada.
Alturk levantou-se da água e subiu agachado a margem antes de desaparecer de vista, seguido pelas formas curvadas e sombrias dos Senthar. Vaelin viu Kiral observando-os partir, notando a compreensão em seus olhos e percebendo que não teria nada para contar a ela se Alturk morresse. Poucos segredos podem ser escondidos da canção.
Um pouco mais adiante, ele mandou as tribos pararem e, tal como Alturk, atacarem ao raiar do dia, tendo como alvo a extremidade norte do acampamento. Eles estavam reunidos em seus agrupamentos tribais, o que o obrigou a visitar cada um com Erlin. Todos os seis novos chefes tinham agora a impressão de que detinham o comando absoluto daquele exército e Vaelin lhes agradeceu pela honra de permitirem que ele fizesse o primeiro ataque.
Ele conduziu o Povo Lobo adiante pela correnteza gelada, parando ao ficarem paralelos com a parte principal do acampamento. Matador de Baleia parou ao seu lado com um sorriso afável ante de seguir na frente dos guerreiros. Dariam a volta pelo perímetro sul do acampamento e, tal como Alturk, atacariam ao primeiro sinal do sol acima das montanhas a leste.
Vaelin olhou ao longo do rio, agora repleto de lobos, Astorek e os outros xamãs agachados entre eles, cada rosto concentrado indicando o esforço necessário para evitar uma explosão de rosnados reveladores com a proximidade de tantas alcateias diferentes. Os lobos se remexiam, mas a maioria estava imóvel, principalmente os de Astorek. Eles haviam permanecido perto de Vaelin durante a viagem inteira, raramente tirando os olhos dele.
Ele se virou para Erlin e Urso Sábio, que estavam agachados ali perto.
— Você não tomará parte nisto — disse ele a Erlin, notando a machadinha que o outro segurava.
— Já lutei em muitas ocasiões, irmão — retorquiu Erlin. — É possível que eu tenha visto mais batalhas do que você.
— Mesmo assim, permaneça na retaguarda. Se a maré virar contra nós, vá embora, dê talvez mais uma volta no mundo.
— E vê-lo ser destruído enquanto isso? — Erlin sacudiu a cabeça. — Acho que não.
— Precisaremos de você. — Vaelin o olhou nos olhos, sentindo uma nova pontada de culpa. Não farei isso… — Fique na retaguarda.
Ele se virou para Urso Sábio antes que Erlin pudesse dizer mais alguma coisa.
— Está preparado?
O xamã olhou para leste, onde os picos começavam a exibir a tonalidade dourada que anunciava um novo dia. O céu estava límpido, o ar com um frescor agradável, com um leve traço de odor floral que vinha das urzes que cobriam o fundo do vale.
— O fogo verde não visto aqui — ponderou o xamã num leve tom de pesar, e então chapinhou pelo rio até onde Garra de Ferro esperava. O grande urso soltou um rosnado baixo quando Urso Sábio subiu em seu dorso e o virou na direção da margem.
Vaelin fez sinal para Lorde Orven se aproximar e montou em Cicatriz.
— Se tudo ocorrer bem, deverá haver uma brecha decente nas fileiras deles — disse ele ao guarda. — Concentre-se nos Varitai, se possível.
— Farei isso, meu senhor. — Orven bateu continência, empertigado enquanto o rio corria à sua volta. — Nesse momento, eu daria tudo o que tenho por um cavalo.
Vaelin sorriu e passou a mão sobre o ombro para sacar a espada.
— Desconfio que haverá cavalos de sobra para escolher quando terminarmos.
Ele esporeou Cicatriz, saindo do rio e esperando enquanto os lobos de Astorek se posicionavam na frente, as outras alcateias subindo a margem e aproximando-se de ambos os lados. Mishara atravessou a multidão e sentou-se ao seu lado. Vaelin olhou para baixo e encontrou o olhar dela, imaginando se Dahrena o via pelos olhos da gata. Mishara apenas piscou e lambeu as presas antes de voltar a atenção para os volarianos.
O acampamento estava a 230 metros, silencioso sob a cortina de fumaça causada pelas fogueiras da noite anterior, agora apagadas. Vaelin podia ver, através da neblina matutina, os piquetes se movendo num passo descontraído e sem nenhum sinal de alarme. Ele aguardou à medida que o sol esquentava sua nuca e sua sombra estendia-se no solo adiante, uma longa seta escura apontada para o exército volariano.
Lembrou-se das palavras de Nortah ao apertar com mais força as rédeas de Cicatriz: Você não vai fazer nada estúpido hoje, vai?
Vaelin deu uma risada baixa e bateu com os calcanhares nos flancos de Cicatriz, e o cavalo soltou um relincho estridente e jubilante ao disparar num galope. Os lobos avançaram com eles, acompanhando-os com facilidade e soltando um rosnado coletivo, sem dúvida causado pela excitação de seus xamãs. Vaelin viu os piquetes começarem a reagir, correndo para formar uma fileira desorganizada enquanto toques dissonantes de corneta ressoavam pelo acampamento, homens saíam aos tropeços das tendas e corriam para pegar armas e armaduras.
Naturalmente foram os Varitai que reagiram primeiro, dois batalhões inteiros, provavelmente mantidos acordados para se protegerem contra um ataque surpresa; eles entraram em formação para bloquear o seu caminho com a eficiência de costume. Posicionaram-se em duas fileiras, a primeira ajoelhada e apontando uma cerca de lanças. Entretanto, apesar de toda a disciplina inconsciente, nem mesmo eles eram imunes ao sol. Vaelin viu muitos baixarem a cabeça quando o sol saiu de trás das montanhas. Aquilo causou certa agitação em suas fileiras, mas não suficiente para desorganizá-las; para isso, ele precisava de algo mais.
O primeiro falcão-lanceiro passou como um raio pela sua orelha, perto o bastante para ele sentir a ponta da asa raspar sua pele, seguido por mais dezenas de ambos os lados um momento depois. As aves atingiram o centro da linha Varitai numa nuvem negra e compacta, surgindo do sol cegante rápido demais para que os volarianos pudessem se esquivar ou se abaixar. O centro da linha Varitai transformou-se numa massa confusa de pássaros e homens que se digladiavam; os falcões subiam da refrega deixando rastros de sangue e com carne pendurada nas garras de aço. Eles pairavam por um breve segundo e então tornavam a mergulhar. Quando os lobos se juntaram ao combate, as fileiras volarianas já haviam sido desfeitas.
Vaelin guiou Cicatriz através do caos, vendo um oficial volariano ser derrubado por um trio de lobos e sua garganta ser estraçalhada num piscar de olhos. Os volarianos haviam formado mais batalhões atrás dos Varitai, mas os Espadas Livres estavam dispostos em fileiras muito menos organizadas. Pareciam mais jovens do que os soldados volarianos que Vaelin enfrentara antes, muitos rostos novos demonstrando choque e puro terror com a visão da horda de feras que causava destruição diante de seus olhos. A maioria dos lobos se chocou com eles sem parar, e o batalhão mais próximo foi feito em pedaços com o ataque em questão de poucos segundos. O contingente ao lado teve mais sorte, formando um círculo defensivo compacto e conseguindo matar muitos dos lobos que o atacavam. Contudo, eles não tinham como responder aos falcões-lanceiros. Após lidar com os Varitai, os seus xamãs reagruparam os bandos de aves e os enviaram contra os Espadas Livres, descendo numa chuva negra enquanto os lobos continuavam a atacar, avançando aos pares, cravando as mandíbulas nas pernas dos volarianos e os arrastando para longe das fileiras.
Vaelin avistou um comandante de batalhão montado perto dali, a espada erguida enquanto reunia os seus homens, sargentos veteranos correndo para o seu lado e berrando ordens. Ele virou Cicatriz na direção do comandante, os lobos de Astorek pularam na frente e derrubaram o cavalo do volariano. O homem saltou para longe enquanto o cavalo gritava em meio a uma fonte de sangue, ficando de pé a tempo de se virar e receber a espada de Vaelin em cheio no rosto. Ele seguiu galopando para espalhar os homens que haviam se reunido, matando um sargento que tivera a insensatez de permanecer no lugar.
Vaelin puxou as rédeas e parou Cicatriz, olhou ao redor e encontrou Garra de Ferro espancando um infeliz volariano até a morte com as suas patas enormes, Urso Sábio parecendo quase cômico balançando nas suas costas. Para além dele, Vaelin tinha vislumbres de uma luta violenta, com os membros das tribos atacando com fúria o perímetro norte. O tumulto que vinha do sul e oeste indicava que o plano havia funcionado, pelo menos a princípio. Os volarianos estavam agora sendo atacados por todos os lados e suas fileiras haviam sido desfeitas a leste. Porém, o acampamento não havia sido invadido e eles continuavam lutando; muitos regimentos eram formados e moviam-se com o ritmo automático típico dos Varitai. Aquela batalha estava longe de ser vencida.
Vaelin olhou para Mishara e a encontrou imóvel, agachada até o chão e com o focinho apontado para o centro do acampamento, onde era possível ver a massa mais compacta de Varitai. Ele virou Cicatriz e saiu em disparada, ouvindo o rosnado ávido de Garra de Ferro que o seguia, os lobos logo tomando a dianteira, ignorando os Espadas Livres feridos ou atordoados que andavam a esmo por ali.
Os falcões-lanceiros tinham sido mais uma vez reagrupados e voavam ao redor do centro volariano num aglomerado de asas. Havia menos pássaros agora, mas a sua ferocidade parecia inabalada ao subirem e descerem numa espiral mortal incessante, fazendo chover sangue enquanto homens sem olhos cambaleavam para longe das fileiras. Espadas Livres gritavam e Varitai golpeavam o ar numa obediência silenciosa ao seu condicionamento.
Foi então que Vaelin os viu, um grupo de homens no centro das fileiras volarianas, vislumbres de vermelho em meio ao mar negro. Ele virou Cicatriz na direção deles e os lobos se aglomeraram à sua volta, abrindo um buraco na muralha de Varitai. Vaelin lutou pelo caminho, aparando lâminas de lança e matando qualquer um que chegasse perto demais.
Os dois primeiros homens vermelhos surgiram à sua frente quando ele conseguiu sair do meio da multidão, ambos montados em cavalos de guerra altos e girando num círculo compacto, as espadas movendo-se num borrão enquanto abatiam falcões-lanceiros no ar. Vaelin investiu diretamente contra eles e o mais próximo se virou na sua direção, o rosto lívido com um reconhecimento repleto de ódio. Ele esporeou o cavalo para a esquerda ao mesmo tempo que o seu companheiro foi para a direita num ataque coordenado. Vaelin agachou-se e ficou com metade do corpo para fora da sela quando eles se aproximaram, aparando o golpe da esquerda enquanto o outro o errava por centímetros. Endireitou-se na sela e girou, fazendo Cicatriz parar quando os dois homens vermelhos se viraram para outra investida. Eles se detiveram, aparentemente intrigados por sua imobilidade, e observaram enquanto Vaelin permanecia parado, devolvendo o olhar deles sem desviar os olhos.
Garra de Ferro levantou-se com um urro, as garras erguidas no alto. Os homens vermelhos tentaram jogar os cavalos para o lado, mas tarde demais, e as garras desceram e cravaram-se na coluna dos dois animais. Os cavalos gritaram e se debateram enquanto o sangue jorrava, os homens vermelhos rolaram para longe da carnificina e levantaram-se depressa, sendo em seguida derrubados pelos lobos de Astorek. Eles lutavam em silêncio, cada um segurado com firmeza por quatro lobos, as mandíbulas presas em cada membro. Encararam Vaelin com toda a malícia de que ele se lembrava, malícia que se transformou em puro terror quando Urso Sábio desceu do dorso de Garra de Ferro.
Eles imploraram e gritaram em uníssono, ambos fazendo as mesmas súplicas e sons guturais quando o xamã ajoelhou-se e pressionou as mãos contra as suas testas. O estremecimento cessou num instante, os dois homens vermelhos se calaram e então piscaram, confusos, quando Urso Sábio removeu as mãos e se afastou. Olharam boquiabertos um para o outro e depois para Vaelin… e então para os lobos.
— Irmão… — disse um, olhando para ele com um rosto lívido e suplicante.
Vaelin virou Cicatriz para o outro lado enquanto os lobos faziam o seu serviço, alheio aos gritos breves que puderam ser ouvidos acima do coro de rosnados. Mishara estava mais uma vez ao seu lado, o focinho apontado para uma massa compacta de figuras que lutavam na extremidade oeste do que restava do acampamento. Uma breve inspeção lhe confirmou que a maior parte do campo estava agora em suas mãos. O flanco sul fora destruído por completo sob o peso da quantidade de membros do Povo Lobo. Ele podia ver os guerreiros movendo-se em meio à névoa, lanças longas apontadas, de vez em quando se juntando para lidar com pequenos grupos de resistência. Ao norte, os membros das tribos haviam cercado o que pareciam ser os remanescentes da cavalaria volariana, algumas centenas de homens montados que tentavam em vão escapar. Ele observou cavaleiro após cavaleiro tombar sob os machados dos montanheses, a sua desunião arraigada aparentemente esquecida por ora.
— Meu senhor!
Vaelin agachou-se por instinto ao ouvir o aviso de Orven, e algo passou voando acima de sua cabeça, rápido demais para se ver. Ele girou Cicatriz e se deparou com três homens correndo na sua direção através da névoa, cada um trajando uma armadura leve e empunhando uma espada em cada mão. Kuritai.
Orven bloqueou o ataque do que vinha na frente, agachando-se e golpeando com a espada as pernas do escravo de elite. O Kuritai saltou com facilidade sobre a lâmina e rodopiou no ar, sua espada mirando o pescoço de Orven. Porém, o capitão não era um novato e aparou o golpe, desferindo a própria espada contra o rosto do Kuritai, e então erguendo e girando a lâmina num contragolpe rápido e quase perfeito que deixou o escravo cambaleando com um corte aberto na garganta.
Ele se virou para confrontar outro quando o terceiro passou por eles e atacou Vaelin, saltando com as duas espadas erguidas. Mishara encontrou-se com ele em pleno ar, cravou as presas em sua cabeça e o derrubou no chão, sacudindo-o até que o seu pescoço deu um estalo audível.
Vaelin tocou Cicatriz adiante, vendo Orven pressionado pelo Kuritai que restara, as espadas duplas desferindo uma série complexa de golpes rápidos que forçaram o guarda a ficar de joelhos. Vaelin ainda estava a três metros deles quando o Kuritai fez a espada de Orven sair rodopiando de sua mão e ergueu as lâminas para o golpe final, mas então se enrijeceu de repente, jogando a cabeça para trás no momento em que Lorkan surgiu do nada, o braço estendido para enfiar uma adaga na base do crânio do escravo de elite.
O dotado removeu a lâmina com uma careta enojada e ergueu os olhos para Vaelin, que se aproximava a trote. Seu rosto estava coberto com o sangue de um corte em algum lugar na cabeleira escura, obrigando-o a limpá-lo continuamente dos olhos.
— Você precisa vir — disse ele, balançando um pouco ao apontar a adaga ensanguentada para o combate em andamento perto dali. — É Alturk.
Os lobos foram na frente, despedaçando a linha volariana já fragilizada de Varitai feridos e parcialmente cegos, permitindo que Vaelin atravessasse correndo, seguido de perto por Urso Sábio e Garra de Ferro. Avistou Alturk vinte metros adiante, o porrete de guerra rodopiando enquanto o lonak girava e se esquivava em meio a um círculo de homens vermelhos. Os Senthar tentavam se juntar a ele, mas estavam sendo repelidos por uma companhia de Kuritai, lonaks e escravos de elite engalfinhados numa luta feroz enquanto o Tahlessa enfrentava uma situação sem saída. Porém, ele ainda estava vivo, com cortes nos braços, no rosto e nas pernas, mas de pé, enquanto os homens vermelhos dançavam.
Vaelin tentou fazer Cicatriz ir mais rápido, mas o cavalo de guerra estava se cansando, tinha os flancos e a boca cobertos de espuma, as passadas custosas, e estremecia com o esforço. Vaelin viu quando Alturk esquivou-se de uma espada e girou o porrete de encontro ao flanco de seu atacante, evitando de forma deliberada um golpe mortal na cabeça, conforme Vaelin instruíra. No entanto, os homens vermelhos claramente haviam permitido que Alturk acertasse o golpe para fazê-lo avançar, dois deles dançando para mais perto e desferindo ataques contra suas pernas. O lonak desviou da primeira espadada, mas não da segunda, e a lâmina entrou fundo em sua coxa, fazendo-o colocar um joelho no chão e arreganhar os dentes numa careta.
Outro homem vermelho pulou e chutou Alturk no maxilar, derrubando-o. O homem vermelho aterrissou com destreza sobre a forma prostrada do Tahlessa, e tinha um sorriso largo no rosto quando ergueu a espada. Alturk cuspiu sangue em seu rosto e o homem vermelho recuou, o sorriso transformando-se numa máscara de malícia.
Cicatriz colidiu com um Kuritai, arrancando-o do caminho, Vaelin ergueu-se alto na sela quando o homem vermelho avançou sobre Alturk, caindo em seguida quando uma flecha cravou-se em sua perna. Outra figura de armadura vermelha disparou na direção do lonak, mas parou quando Vaelin chegou perto, erguendo tarde demais a espada para bloquear os coices de Cicatriz, que o atingiu no peito, arremessando-o para trás.
Os homens vermelhos remanescentes foram para cima de Vaelin, movendo-se com uma velocidade espantosa. Outra flecha surgiu zunindo do tumulto ao redor e atingiu a perna do volariano mais adiantado. Os outros pararam e se agacharam, os olhos à procura de inimigos. Kiral apareceu, andando num passo quase descontraído enquanto disparava flechas do arco de vara plana, e cada um dos homens vermelhos caiu quando suas pernas foram atingidas pelas setas.
Os lobos avançaram quando Vaelin desmontou e correu para o lado de Alturk, onde Kiral já se encontrava agachada. Os homens vermelhos gritaram e xingaram quando os lobos abocanharam os seus membros e Urso Sábio desceu do dorso de Garra de Ferro. O xamã foi até cada um deles, agachando-se e encostando a palma da mão em suas cabeças, os gritos cessando um a um. Ele parou no último, recuando com uma confusão estampada no rosto.
— Você não… — grunhiu Alturk, colocando a mão sobre o ferimento na perna. — Você não me permite nem mesmo uma morte decente?
Kiral o esbofeteou em cheio no rosto, repreendendo-o severamente na própria língua. Vaelin não sabia muito lonak, mas ouviu a palavra “pai” em meio à torrente irritada. A raiva de Alturk desapareceu à medida que ela continuava a gritar com ele, rasgando uma tira da calça do lonak e enfaixando a ferida.
Vaelin levantou-se e foi até onde Urso Sábio se encontrava de pé sobre o homem vermelho remanescente; os dentes dos lobos já haviam silenciado os outros. O xamã franziu o cenho, sacudindo a cabeça confuso enquanto o homem vermelho o encarava, os membros esticados e presos pelos lobos, o suor lhe cobrindo o rosto, o sangue escorrendo em profusão do nariz e dos cantos dos olhos. Foi então que Vaelin sentiu, um aumento súbito nas batidas de seu coração, um tremor tomando conta de seus membros.
O poder de congelar o coração de um homem com o medo, lembrou-se e se pegou rindo.
— Medo — disse ele, agachando-se ao lado do homem vermelho e atraindo o seu olhar. — Na verdade, é algo insignificante, e um velho amigo. — Ele bateu com o punho da espada na têmpora do homem, deixando-o flácido e quase inconsciente. Urso Sábio sacudiu a cabeça e murmurou uma praga na própria língua, então se agachou e colocou a mão na testa do homem vermelho. O volariano se enrijeceu por um momento, soltou um grito abafado de medo e então ficou imóvel.
Vaelin deu as costas ao homem enquanto os lobos terminavam o serviço e viu os últimos Kuritai serem mortos pelos Senthar. Em algum lutar às suas costas os membros das tribos cantavam algum tipo de canção de vitória; a melodia era dissonante, mas todos pareciam conhecer as palavras.
— Meu senhor — disse Lorkan, aparecendo ao seu lado com um trapo ensanguentado pressionado na cabeça. — Sinto que este é um momento oportuno para pedir demissão. Pois essa é uma experiência que eu não gostaria de repetir, não importam quais sejam as opiniões de Cara.
— Aceito a sua demissão, caro senhor — disse Vaelin. — E agradeço pelo seu serviço.
Ele se virou quando Mishara sibilou de repente, seu pelo se eriçando ao se virar e sair em disparada na direção do topo da cadeia de colinas, onde haviam deixado a sua dona.
O olhar de Vaelin percorreu os corpos dos homens vermelhos. Quatro, e os outros dois. Seis. Mas Mirvald disse sete…
Ele correu até Cicatriz e saltou para a sela, batendo com força os calcanhares nos flancos do cavalo ao disparar num galope.
A cadeia de colinas estava encoberta por nuvens e pela chuva quando Vaelin parou o já quase exausto Cicatriz no sopé dela. Vira as nuvens descerem enquanto cavalgavam até as colinas, rápidas demais para que pudessem ser outra coisa que não o trabalho de Cara. Mishara estava vários metros adiante e desapareceu de vista depressa na cortina de chuva quando um relâmpago reluziu em algum lugar mais acima.
Vaelin subiu correndo a cadeia de colinas, vendo corpos caídos entre as rochas, os guerreiros do Povo Lobo, todos aparentemente mortos em questão de segundos. Encontrou o gato de Marken a seguir, morto, e o próprio dotado estava caído alguns metros adiante, as feições barbadas flácidas e inertes debaixo da chuva.
Vaelin desviou o olhar e forçou-se a seguir em frente. Sentiu primeiro o cheiro, queimado, acre, nauseante. O fedor de carne recém-carbonizada. Avistou Cara ao chegar ao topo da colina, uma forma pequena e imóvel sentada à chuva, o rosto pálido encarando com olhos arregalados algo ali perto, algo enegrecido e carbonizado, mas que de algum modo ainda se movia, o rosto parcialmente derretido de uma armadura vermelha grudando-se à carne torrada ao se mexer.
— Eu não vi — disse Cara num sussurro. — Dividimos o poder… Não consegui ver… Aconteceu tão depressa…
Vaelin agachou-se ao seu lado, vendo o sangue escorrer do nariz da garota, tornar-se rosado e se dissolver na torrente. Tocou nas mãos dela.
— Basta — disse ele. — Está feito.
Cara piscou para ele e então se curvou, a chuva diminuindo até se transformar numa garoa quando ele a amparou.
— Raio — murmurou ela. — Eu não sabia que podia.
— Cara. — Vaelin ergueu o queixo dela. — Onde está a Senhora Dahrena?
Ele ouviu Mishara soltar um chamado desolado em algum lugar adiante.
— Sinto muito — disse Cara, a voz baixa e embargada. — Aconteceu tão depressa…
Vaelin a encostou numa rocha e levantou-se, afastou-se e seguiu o som do choro pesaroso de Mishara.
Ela estava caída para o lado junto aos restos encharcados de chuva da fogueira que Vaelin acendera para ela na noite anterior, ainda enrolada em peles. Não havia sangue, nenhum sinal de ferimentos.
Um que podia matar com um único toque…
Ele se sentou ao lado dela e puxou o corpo pequeno e flácido para os seus braços, afastando o cabelo sedoso da testa gelada.
— Eu quero ir para casa — disse ele. — Quero ir para casa com você.