CAPÍTULO NOVE

Frentis

— Volar possui o porto mais fortificado do mundo — disse o Lorde Almirante, abrangendo o mapa com a mão enluvada. Era um mapa antigo, com as bordas puídas e o pergaminho encerado amarelado pelo tempo, mas também extremamente detalhado. — Há torres dos dois lados da entrada do porto e muralhas altas nos molhes que o cercam. As docas em si possuem seis baluartes diferentes, cada um com um batalhão de Varitai.

O mapa tremulou um pouco ao vento, obrigando-o a colocar uma adaga em cima para segurá-lo. O dia amanhecera com um céu ominoso e um frio fora de época no ar. Frentis podia ver o receio no rosto de muitos meldeneanos que cuidavam do cordame do Falcão Vermelho, ciente de que temiam a chegada de outra tempestade causada pelas Trevas, embora o próprio Ell-Nurin escarnecesse de tal ideia.

— Naveguei pelo Estreito umas cinquenta vezes. O lugar sempre foi propenso a ventanias de verão. Não há nada das Trevas nisso.

— Como propõe que ataquemos tal lugar? — perguntou Karavek ao Lorde Almirante. — A não ser que você pretenda envolver a minha gente em alguma empreitada suicida.

— Certamente não pretendo. — Ell-Nurin levou um dedo até uma pequena baía a oito quilômetros a leste da cidade. — Este é o Desfiladeiro de Brokev, um lugar frequentado por contrabandistas desde que existiu um império.

Um dos outros capitães, um asraelino, pelo traje, deu um passo adiante e olhou para o mapa com um olhar desconfiado.

— O canal não é largo o bastante para que três navios consigam avançar tanto lado a lado. — Ell-Nurin não disse nada e o encarou em silêncio até que o capitão rangeu os dentes e acrescentou “Meu senhor”.

— Iremos nos revezar para desembarcar — disse Ell-Nurin. — Entraremos em formação na praia e marcharemos para Volar do leste, a direção menos esperada.

— A Imperatriz é louca, mas não é tola — disse Frentis. — Ela pode muito bem ter antecipado essa manobra. Podemos nos deparar com uma costa fortificada.

— E é por isso que um terço de nossos navios, os que não estiverem carregados de tropas, permanecerá do lado de fora do porto ao amanhecer, dando toda a impressão de estarmos prestes a atacar. Com sorte, a Imperatriz concentrará as suas forças lá.

— Eles podem fazer sortidas — observou o capitão asraelino. — Tentar dividir a nossa frota em duas antes que desembarquemos.

— Graças aos engenhos maravilhosos da Senhora Alornis e à nossa considerável vantagem numérica, tenho certeza de que podemos conter quaisquer sortidas que eles possam tentar — retorquiu Ell-Nurin. Ele se virou para Frentis. — Irmão, fique à vontade para decidir a ordem de desembarque.

Frentis assentiu.

— Minha própria gente primeiro. Depois os Politai. A gente de Mestre Karavek por último.

— Quer a glória toda para você, hein, irmão? — perguntou Karavek, mas não sem um tom de alívio na voz.

Ell-Nurin empertigou-se, ergueu o queixo e olhou para leste.

— Meus senhores, Capitães de Frota e honoráveis aliados, quando o novo dia raiar teremos dado um golpe mortal neste império tão abominável. Pois viemos com justiça em nossos corações e liberdade em nossas almas. Que todos os que navegam conosco saibam que o destino aguarda e não nos será negado.

Ell-Nurin manteve a pose, aparentemente à espera de alguma resposta, talvez alguma aclamação estrondosa. Após um momento, como o silêncio se estendia e ficava mais pesado, ele tossiu.

— Meus senhores, ao trabalho.

— Que cretino — murmurou Draker enquanto ele e Frentis desciam do convés. — Temos mesmo que receber ordens dele, irmão?

— Ele pode ser cretino, mas não é tolo. O plano é bom. Certifique-se de que os outros saibam disso.

Draker assentiu e começou a se afastar, mas então parou.

— Eu sempre quis saber, irmão. Qual é a minha patente?

— Patente?

— É. Você é um irmão, Illian é uma irmã, o cretino é um Lorde Almirante. O que eu sou?

— Você pode ser um sargento, se quiser.

Draker franziu as sobrancelhas grossas em desapontamento.

— Tenho mais gente sob o meu comando do que qualquer sargento que já vi. Mais de duzentos dos desgraçados, na última contagem.

— Capitão, então. Capitão Draker da Companhia Livre da Rainha. O que acha?

— Acho que valeria uma pensão.

Frentis deu uma risada.

— Imagino que valerá.

Draker sorriu, mas havia um tom sombrio em sua voz quando tornou a falar.

— Desculpe pelas surras, irmão. Caso eu nunca tenha dito isso antes. Eu estava bêbado o tempo todo, sabia? Não acho que fiquei um dia sóbrio até Varinshold cair.

— Foi há muito tempo, capitão. Veja como está a sua companhia, por favor.

Ele procurou a Irmã Merial e a encontrou acompanhada por um cachimbo perto da popa, a fumaça adocicada escapando por uma fenda estreita no casco.

— Sempre é possível contar com os meldeneanos para um pouco de erva de cinco folhas alpirana de primeira — disse ela, oferecendo-lhe o cachimbo. — Faz mais de um ano desde que traguei algo tão bom assim.

Frentis recusou erguendo a mão.

— Alguma notícia de seu marido?

— De fato. — Merial deu outra baforada no cachimbo, piscou com olhos marejados e o seu olhar perdeu o foco. — Acho que fui um pouco generosa demais comigo mesma, irmão.

— Alguma notícia? — repetiu Frentis enquanto ela batia no peito e tossia um pouco.

— A Rainha conquistou outra vitória — respondeu ela com a voz um pouco rouca. — Está se tornando um hábito dela. Estão chamando de Batalha das Flores, não sei por quê. De qualquer forma, a estrada para Volar foi aberta esta manhã. Eles devem chegar lá dentro de dois dias.

Ele assentiu, seus pensamentos anuviados com visões da Senhora Reva na arena, e muito mais.

Traga o curandeiro…

Frentis voltara a tomar o sonífero do Irmão Kehlan em Nova Kethia, ansioso para evitar mais sonhos compartilhados, receoso do que poderiam revelar a ela, embora isso também o privasse de quaisquer pistas a respeito de suas intenções. Não se importa se eu levar um exército. Parece indiferente à aproximação da Rainha. O que ela está tramando agora?

— Imagino que vamos desembarcar primeiro — disse a Irmã Merial.

— Minha companhia vai. Você permanecerá no navio.

— Uma ova. Viajei metade do mundo para isso, e o Aspecto Caenis merece um ajuste de contas.

— Você possui habilidade com armas?

A irmã deu uma risada curta e voltou ao cachimbo, girando os polegares com um sorriso no rosto.

— Você verá com o que tenho habilidade, irmão. Só não fique muito perto na hora.

O Desfiladeiro de Brokev era formado por uma pequena baía flanqueada por falésias escarpadas. O terreno subia depois da praia numa elevação íngreme até os campos de flores rubras mais além. O sol estava apenas começando a reluzir no horizonte e a promessa de um tempo ruim se manifestara como uma leve garoa matutina.

— Basta só um punhado de inimigos naquelas alturas, Irmão Vermelho — disse Lekran com uma careta —, e esta baía se tornará um matadouro.

Frentis nada disse, mantendo o olhar no topo das falésias à medida que o barco se aproximava da praia. A maré estava baixa e as ondas fracas, os remadores trabalhavam num ritmo intenso, sem se importar com o barulho; a velocidade era mais importante do que a furtividade agora. Ele não conseguia ver qualquer movimento nas falésias, nem no terreno depois da praia.

— Lembre-se — disse Frentis a Lekran —, não se demore por um segundo sequer, independentemente das baixas.

Ele colocara os Garisai nos barcos que iam à frente junto com todos os seus arqueiros, seguidos pela gente de Draker e Illian com ordens para capturar as falésias. Mestre Rensial decidira acompanhá-lo, provavelmente com a esperança de encontrar um cavalo o mais rápido possível.

Frentis saltou para fora do barco ao ouvir o barulho do casco raspando na areia, afundando na água até os joelhos e avançando com esforço em direção à praia. De acordo com as suas ordens, os arqueiros se espalharam com flechas já preparadas e os arcos erguidos, esquadrinhando sem cessar as falésias por qualquer sinal de um inimigo. Os Garisai ergueram uma espuma branca nas águas ao correrem com Frentis, todos chegando até a areia sem serem molestados pelo zunido revelador de uma chuva de flechas ou por gritos de alarme.

Frentis não permitiu que parassem na praia e correu até a encosta relvada, parando somente quando chegou ao topo. Os Garisai assumiram de pronto uma formação defensiva, embora não houvesse qualquer sinal de oposição. Os campos, que tinham um tom escarlate escuro na penumbra matutina, estendiam-se silenciosos e desertos. A oeste Frentis podia ver o sol nascente caindo sobre torres que se erguiam das flores rubras como alfinetes de prata num vasto cobertor vermelho.

— Volar — disse Lekran num tom estranhamente reverente. — Todos aqueles anos como escravo deste império e esta é a primeira vez que coloco os olhos nela.

E talvez a última, ponderou Frentis. É possível que não reste nada quando a Rainha tiver terminado. O pensamento despertou lembranças da garota de cinza e de sua mãe, e ele voltou o olhar para a praia à procura de alguma distração. A gente de Draker e de Illian já se encontrava em terra e se dividia para rumar até as falésias. Os Politai aproximavam-se depressa da praia, a figura de cabelos encaracolados de Artesão visível no barco que vinha à frente.

Traga o curandeiro…

— Isso não está cheirando bem — disse Ivelda, esquadrinhando os campos de papoula com olhos apertados. — Nem um único batedor para nos receber. Onde estão?

Frentis observou conforme os extensos bairros residenciais de Volar eram revelados ao sol que despontava. Nenhuma muralha para atravessarmos, mas é bastante fácil transformar uma casa numa fortaleza.

— Desconfio que teremos resposta dentro de uma hora.

Encontraram o primeiro corpo a três quilômetros da baía, um garoto de cerca de quinze anos, caído entre as flores, vestido de cinza e morto havia apenas umas duas horas, pelos cálculos de Frentis. Fora morto com uma única estocada nas costas, provavelmente a cavalo, a julgar pelo ângulo.

— Mais três aqui — disse Ivelda perto dali. — Homem, mulher e criança. Alguém matou uma família.

Eles seguiram em direção aos bairros residenciais numa formação cerrada, os Garisai numa de escaramuça na frente, a companhia de Draker à direita e a de Illian à esquerda. A gente de Karavek seguia numa massa compacta com os Politai agindo como a retaguarda. Frentis manteve um ritmo pesado; deslocar-se por campo aberto sem uma cavalaria para proteger os flancos instilava uma forte sensação de vulnerabilidade. Mais corpos foram descobertos na marcha, pessoas de cinza e alguns escravos com ocasionais homens de preto. A maioria tinha ferimentos nas costas, indicando que haviam sido mortos enquanto corriam. Frentis havia contado mais de cem quando chegaram às primeiras casas, quando então parou de contar.

O que ela está fazendo?

Jaziam em cada entrada, cada esquina, as sarjetas vermelhas evidência de que a matança ocorrera fazia pouco tempo. Não havia sinais de tortura nos corpos, poucos tinham mais do que dois ferimentos, a maioria apenas um. Fora um massacre eficiente, realizado sem levar em consideração idade, sexo ou posição social. Crianças estavam caídas ao lado de idosos, escravos estavam entrelaçados com capatazes. Pessoas de preto, de cinza e escravizadas, todas unidas na morte.

— A Rainha? — perguntou Draker a Frentis, pálido debaixo da barba. — Sei que ela queria justiça, mas isso…

— Não foi a Rainha que fez isso — disse Frentis. — A Imperatriz colocou os Arisai para trabalhar.

— Aqueles desgraçados vermelhos? Achei que a gente tinha matado todos.

Mais nove mil… Ele suspirou com a própria estupidez. Todos devem ter recebido a mesma mentira para contar caso fossem capturados.

— Varitai e Espadas Livres são uma coisa, irmão — disse Karavek. — Até mesmo Kuritai. Mas a minha gente não é páreo para os homens vermelhos…

— Então voltem para a praia e implorem a Lorde Ell-Nurin que os leve para casa. — Frentis virou-se de novo para Draker. — Escolha o seu corredor mais rápido e mande-o para o Estreito com um pedido para que o Lorde Almirante desembarque com todos os marinheiros que puderem empunhar uma lâmina. — Ele se virou e olhou para as ruas repletas de morte à sua frente. — Ele nos encontrará na arena.

Foram atraídos pelos gritos, um coro estridente de terror e dor que ecoava pelas ruas ensanguentadas. Frentis conduziu os Garisai na direção do som, ordenando a Illian e a Draker que dessem a volta pelos flancos e mandassem os arqueiros para os telhados. A oitenta metros, as ruas se abriam numa praça, que exibia a típica organização volariana com os seus gramados elaborados, salpicados com estátuas e cortados por caminhos de pedra. E, no centro, uma multidão de volarianos sendo sistematicamente massacrada por cerca de duzentos Arisai. As pessoas haviam sido cercadas por todos os lados, amontoando-se num terror instintivo enquanto os homens vermelhos abriam caminho de forma metódica a golpes de espada, e a multidão diminuía visivelmente a cada segundo em meio a um círculo crescente de cadáveres.

— Não espero que você lute por eles — disse Frentis a Lekran, erguendo a espada para os arqueiros nos telhados.

— Vou lutar com você, Irmão Vermelho — disse o homem, girando brevemente o machado. — Até que isso acabe. Você sabe disso.

Frentis assentiu e abaixou a espada. Os arqueiros dispararam a sua saraivada, as flechas zunindo e matando pelo menos uma dúzia de Arisai enquanto ele disparava em frente, seguido pelos Garisai com um grito coletivo.

Até que isto acabe. Por bem ou por mal, isso acabará hoje.

O Arisai ricocheteou na mão estendida da Irmã Merial e colidiu com uma parede, filetes de fumaça cinzenta subindo da marca de mão enegrecida que havia sido queimada em seu peitoral, e o homem escorregou para o chão, as feições petrificadas desprovidas de qualquer sinal de vida. A irmã se virou para Frentis com um sorriso cansado e dobrou os dedos.

— Sou boa de se ter à mão num aperto, não acha, irmão?

— Abaixe-se! — Frentis agarrou o ombro dela e a empurrou para o lado quando um Arisai investiu de uma entrada sombreada, de espada curta estendida e com um sorriso feliz nos lábios. Frentis desviou a lâmina com a sua e rodopiou, girando a espada e cortando através dos olhos do soldado, dando cabo dele com uma estocada na garganta quando o homem cambaleou, rindo de alegre surpresa.

Frentis parou para respirar fundo e passou os olhos pela rua, apinhada de cadáveres de uma ponta à outra. Avistou Ivelda entre eles, morta sobre o Arisai que matara, sua adaga ainda cravada no pescoço do homem. Estavam lutando de rua a rua há quase uma hora, forçando os Arisai a abandonarem a matança da população para enfrentá-los. O combate foi ficando cada vez mais caótico quanto mais avançavam cidade adentro, à medida que as ruas ficavam mais estreitas e os Arisai revelavam um talento diabólico para emboscadas. Atacavam sozinhos ou em duplas, lançando-se sem aviso de becos, entradas de casas ou janelas, e caindo sobre os seus combatentes num frenesi de carnificina jubilante antes de serem abatidos pela desvantagem numérica ou por uma flecha bem disparada de um dos arqueiros que se encontravam nos telhados. Eles haviam aprendido bem a lição em Nova Kethia, e o seu avanço foi possível graças aos arqueiros, que continuavam a saltar de telhado em telhado, matando qualquer Arisai que viam nas ruas abaixo.

Frentis avistou Lekran com meia dúzia de Garisai na extremidade norte da rua e correu para o seu lado, seguido por Merial, ainda trôpega. Ele já a vira matar três Arisai e sabia que a irmã estava se arriscando a desmaiar cada vez que usava o seu dom.

— Os últimos dos covardes de Nova Kethia se mijaram e fugiram — relatou Lekran com uma careta enojada. — Vou matar Karavek com as minhas próprias mãos.

— Você teria uma tarefa difícil — gemeu Merial, encostando-se no batente de uma porta, o rosto pálido e abatido. — Eu o vi morrer duas ruas para trás.

Frentis ergueu a cabeça ao ouvir chamarem o seu nome, e encontrou a silhueta esguia de Illian no alto de uma construção de dois andares a vinte metros dali, agitando o arco acima da cabeça.

— Artesão! — gritou ela para Frentis quando ele se aproximou correndo, indicando um ponto onde as ruas estreitas davam no que parecia ser uma praça de mercado. — E Mestre Rensial!

Frentis fez sinal para que os Garisai o seguissem e disparou para a praça, encontrando-a devastada, carroças e barracas derrubadas em meio às formas caídas de escravos e pessoas livres assassinados. Cerca de cinquenta Politai haviam formado uma cunha compacta na extremidade norte da praça, avançando de forma constante contra uma muralha frenética e duas vezes maior de Arisai. Os Politai se moviam com toda a precisão resultante de seus anos de disciplina enraizada, as lanças de lâminas largas saltando como os espinhos de um porco-espinho enquanto avançavam, os cabelos louros de Artesão visíveis no centro. Curiosamente, os Arisai pareciam ter perdido boa parte do seu humor enlouquecedor ao serem confrontados pelos ex-soldados-escravos. Frentis viu pura fúria em muitos rostos ao se lançarem contra as fileiras organizadas, a maioria morrendo na irredutível sebe de lanças, embora alguns conseguissem perfurar a formação a golpes de espada, matando um ou dois Politai.

A princípio Frentis ficou intrigado com a determinação do avanço dos Politai, pois parecia não restar ninguém para ser salvo naquela praça; então ele o avistou, um cavaleiro solitário entre os Arisai, manobrando a montaria com uma graciosidade incomparável, a espada movendo-se em arcos elegantes, fazendo os homens vermelhos tombarem à sua volta. Porém, ele era apenas um, e os Arisai, muitos.

Frentis abandonou toda a cautela e jogou-se sobre os homens vermelhos, segurando a espada com as duas mãos enquanto abria um caminho sangrento, rodopiando e matando, os Garisai investindo em seu encalço. Ouviu um grito indistinto dos Politai, não de exultação, pois tais emoções ainda pareciam estar além de suas capacidades, mas de reconhecimento a uma ordem. A formação acelerou o passo à medida que as fileiras de Arisai diminuíam em volta deles, aproximando-se do cavaleiro à força.

Frentis agachou-se sob o golpe lateral de uma espada e atravessou com a sua lâmina o peitoral do Arisai que a empunhava. No entanto, o homem recusou-se a morrer, agarrando-se ao braço da espada dele e segurando Frentis no lugar, os dentes vermelhos arreganhados num sorriso largo e afetuoso.

— Olá, pai — disse ele numa voz áspera, suas mãos como um torno no braço de Frentis.

Um de seus compatriotas atacou com a espada apontada para o pescoço de Frentis, e então parou de repente quando algo desceu do alto e atravessou a sua testa. Por um segundo ele revirou os olhos para cima para ver o virote de besta, imóvel e babando, antes que o machado de Lekran lhe cortasse fora as pernas. O selvagem girou e o machado subiu, decepando o braço do Arisai ainda agarrado a Frentis. Ele arrancou o seu braço da mão que restava do Arisai quando o machado de Lekran desceu para dar cabo dele, virou-se e viu Illian de pé num telhado ali perto. Frentis ergueu a mão em sinal de reconhecimento da ajuda dela, mas a atenção da garota estava em outro lugar, segurando um virote entre os dentes ao sair a toda a velocidade e saltar para o telhado seguinte, o olhar fixo no cavaleiro solitário adiante.

Mestre Rensial!

Flechas caíam cada vez mais rápido enquanto ele lutava para abrir caminho, com Lekran ao seu lado e os Garisai atrás, cada vez mais arqueiros surgindo nos telhados ao redor. As fileiras de Arisai diminuíram diante de Frentis e ele viu três caírem mortos um atrás do outro, abatidos por arqueiros, livrou-se do emaranhado de combates e partiu na direção de Mestre Rensial, soltando um grito de fúria e frustração ao ver um Arisai avançar e cravar a espada no flanco do cavalo do mestre. O animal empinou, boquiaberto, como se gritasse, e tombou, estrebuchando. Os Arisai que se encontravam ao redor se aproximaram de espadas erguidas e rindo. A formação de Politai soltou outro grito e disparou numa investida, empurrando de lado os Arisai remanescentes e rumando para o aglomerado que cercava o cavaleiro caído. Frentis perdeu o cavalo de vista quando os Politai atingiram o alvo, matando os Arisai e então formando um círculo defensivo com sua rapidez típica e natural. Ele abriu caminho à força e parou de repente ao avistar o cavalo que ainda se contorcia, notando pela primeira vez que era um belo garanhão cinzento. Frentis só podia imaginar onde o mestre o encontrara. Ele saltou por cima do animal moribundo, soltando um imenso suspiro de alívio ao ver Mestre Rensial preso debaixo do cavalo, franzindo o cenho irritado ao tentar arrancar a espada do corpo de um Arisai que jazia morto ao seu lado.

— Precisamos encontrar outro estábulo — disse ele a Frentis, grunhindo quando a lâmina escorregou para fora do cadáver.

— É claro, mestre. — Frentis agachou-se e apoiou o ombro no corpo do cavalo, empurrando-o até que o mestre conseguiu puxar a perna para fora. Pelo estado retorcido e lacerado do membro, ele podia ver que Rensial não cavalgaria ou caminharia de novo durante algum tempo.

— Irmão Vermelho!

Frentis levantou-se com o grito de Lekran, percebendo que agora estavam cercados de Arisai por todos os lados, depois que mais haviam se materializado das casas ao redor, cada um aparentemente o encarando com uma mistura de fascinação e deleite. Flechas continuavam a cair dos telhados, mas eles pareciam não se importar, mal olhando quando seus irmãos tombavam ao seu lado. Atraídos até mim, concluiu Frentis, vendo algo mais no olhar coletivo. Loucura. Ela os soltou, e todos eles anseiam pela alegria de matar o seu pai.

— Isso pode terminar aqui! — gritou para eles, indo se posicionar com os Politai que os cercavam. — Estou vendo que ela os libertou. Agora, libertem a si mesmos. Deixem a loucura de lado.

Eles riram, é claro. Gargalhadas estrondosas de júbilo percorreram as suas fileiras, e alguns ainda riam quando as flechas os abateram.

— Como quiserem — suspirou Frentis, erguendo a espada. — Venham, recebam a sua cura!

Um novo som foi ouvido acima das gargalhadas incessantes, um estrondo que ecoava das ruas em volta, logo se erguendo num brado, o brado de muitos homens furiosos.

Os meldeneanos surgiram correndo de todas as ruas e vielas, os sabres reluzindo ao caírem sobre a multidão de armadura vermelha. Os Arisai lutaram, como foram criados para lutar, matando com uma alegre despreocupação; contudo, apesar de toda a habilidade e ferocidade, não eram páreo para a onda de piratas que passou por cima deles, e ilhas de vermelho afundaram e desapareceram em poucos momentos. Os meldeneanos gritaram a vitória aos céus, erguendo os sabres e jogando as cabeças para trás num triunfo bestial.

— Demoraram bastante — resmungou Lekran quando a carnificina terminou.

Frentis virou-se e encontrou Artesão parado sobre Mestre Rensial, a cabeça inclinada enquanto lançava um olhar crítico à perna do mestre.

— Pode ajudá-lo?

— Sinto muito, irmão. — O curandeiro sacudiu a cabeça com uma careta, voltando então o olhar para uma imensa estrutura curva que se erguia acima dos telhados a oeste. — Tenho a sensação de que logo precisarei de todas as minhas forças.

Ele deixou Mestre Rensial aos cuidados dos meldeneanos, a maioria dos quais parecia satisfeita em ficar e pilhar as muitas casas vazias, mostrando-se surda aos apelos para que rumassem juntos até a arena. Frentis não conseguia ver qualquer sinal do Lorde Almirante Ell-Nurin ou de qualquer outro meldeneano com patente maior do que a de segundo imediato, de modo que foi obrigado a deixá-los às suas recompensas e seguir em frente. Encontraram Trinta e Quatro dando pontos num corte no braço de Draker algumas ruas adiante, a dúzia de sobreviventes da companhia do capitão recém-designado aglomerada em volta deles em meio aos corpos de cerca de trinta Arisai.

— Não consegue terminar uma batalha sem um ferimento? — perguntou Illian a Draker, seu tom mordaz suavizado um pouco pela mão afetuosa que passou pelos cabelos desgrenhados dele.

— Gosto das minhas lembrancinhas — retorquiu ele, rangendo os dentes quando Trinta e Quatro deu um nó nos pontos. Ele ergueu um olhar de desculpas a Frentis e indicou com a cabeça algo caído ali perto. — Sinto muito, irmão.

Retalhador estava caído de lado, com Dente Negro ganindo ao cutucar a cabeça do cão com o focinho. Havia uma espada curta enfiada no peito do animal e um Arisai morto e escorado numa parede perto dali, com o rosto mastigado e transformado numa massa sangrenta.

— Não podemos demorar — disse Frentis, desviando o olhar e percorrendo o rosto cansado e pálido de todos os presentes. Havia talvez um terço do número que o havia seguido desde Nova Kethia. Tantos perdidos salvando aqueles que os escravizaram, ponderou, lutando contra a mistura de pesar e admiração que ameaçava umedecer os seus olhos. — Capitão — disse a Draker —, posicione a sua gente na retaguarda. Irmã, pegue os arqueiros e faça o reconhecimento das vias de acesso à arena.

— Sem dúvida não pode ter restado nenhum depois disso — disse a Irmã Merial. Sua aparência havia melhorado um pouco, embora as manchas vermelhas em volta dos olhos e do nariz evidenciassem uma tentativa de ocultar a sua exaustão.

— Pensamos o mesmo em Eskethia — disse Frentis. — Fique perto de mim e não use o seu dom de novo, a não ser que seja extremamente necessário.

O denso labirinto de ruas logo deu lugar a avenidas e parques largos, também apinhados de cadáveres. Havia principalmente pessoas vestidas de preto ali, além de alguns escravos que foram mortos enquanto cortavam a grama ou poliam as estátuas de bronze. Porém, não havia sinal dos Arisai. Uns cem metros adiante as ruas acabavam na arena, e cada combatente e Politai parou ao avistá-la, os níveis dourado-avermelhados de curvas suaves vívidos à luz do sol. Podiam ouvir uma grande comoção do lado de dentro, milhares de vozes erguidas em adulação, sem dúvida devido a algum espetáculo terrível orquestrado pela Imperatriz. Balindo feito ovelhas enquanto a sua cidade morre em volta deles, pensou Frentis, incapaz de conter o ressentimento de que aquelas pessoas não valiam o sangue derramado por elas.

— Nenhum guarda — relatou Illian. — Parece estar completamente desprotegida.

Frentis olhou para Artesão, notando pela primeira vez a ruga de preocupação em sua testa ao encarar a arena, e até mesmo um tremor de medo nos lábios.

Traga o curandeiro…

— Você não precisa fazer isso — disse-lhe Frentis. — Fique aqui com os Politai. Mandarei avisar quando estiver seguro.

Artesão parou de franzir a testa e se virou para ele, afastando o medo com um leve sorriso.

— Não acredito que haja algum lugar seguro hoje, irmão.

Frentis assentiu, deu um passo adiante e virou-se para se dirigir a todos eles, sentindo a voz rouca e tendo que forçar as palavras a saírem.

— Vocês todos já fizeram mais do que eu poderia pedir. Esperem aqui, Artesão e eu seguiremos sozinhos.

Não houve resposta, nem qualquer mudança de expressão quando todos deram um passo à frente ao mesmo tempo.

— Não sei o que nos espera lá dentro — comentou Frentis, ouvindo a nota de desespero na voz. — Mas sei que muitos de nós não irão sobreviver…

— Está perdendo tempo, irmão — disse Draker. Ao lado dele, Illian ergueu a besta, olhando-o nos olhos com expectativa.

Frentis virou-se para a arena quando se ouviu outro brado vindo de dentro; pelo volume e duração, parecia que o espetáculo da Imperatriz havia atingido alguma forma de clímax.

— Nosso objetivo é resgatar a Senhora Reva e matar a Imperatriz! — gritou ele, erguendo a espada e partindo em disparada. — Não mostrem misericórdia, pois ela não terá nenhuma com vocês!