Vaelin
Eles foram obrigados a abrir caminho à força por uma horda de volarianos em fuga, todos em pânico e lívidos demais de terror para até mesmo reconhecer um grupo de invasores estrangeiros. Muitos disparavam através das flores rubras dos dois lados da estrada, sem levar qualquer bagagem ao fugir, os horrores recentes estampados nos rostos pálidos. Em comparação, as famílias se moviam em grupos compactos e cautelosos, segurando os seus poucos fardos e mantendo as crianças perto, os rostos pequenos chorosos ou paralisados de medo.
Astorek abaixou-se e puxou um homem da multidão, um calvo de meia-idade vestido de cinza com um menininho agarrado ao seu lado. Ele respondeu às perguntas do xamã num tom seco, o servilismo habitual superando o seu pavor.
— A Imperatriz soltou os seus Arisai na cidade — informou Astorek, largando o homem de cinza, que cambaleou em frente sem parar. — Eles estão matando todo mundo. O homem parecia achar que era uma punição por não comparecer à arena, apesar do fato de que o lugar jamais poderia comportar todos eles.
Vaelin virou-se para o Aliado, que encarava os refugiados apenas com um vago interesse.
— Isso é obra sua? — perguntou ele.
O Aliado encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.
— Ela era louca mesmo antes de eu capturá-la. E essa gente sempre instigou o seu ódio.
Eles seguiram em frente, livrando-se da turba em fuga após mais um quilômetro e meio, e entraram na cidade. O distrito leste parecia ser o quadrante dos mercadores, repleto de armazéns e canais, cujas águas escuras estavam apinhadas de cadáveres boiando. De vez em quando pessoas aturdidas entravam em seu caminho, feridas ou anestesiadas pelo choque. Eram recebidos por horrores a cada esquina; mulheres choravam sobre filhos assassinados e crianças perplexas cutucavam pais mortos. Vaelin fechou o coração a tudo aquilo e fez Cicatriz trotar mais rápido, mantendo o olhar fixo na forma arqueada da arena que se erguia do centro da cidade. Ele lançava olhares indagadores a Kiral sem parar, e a garota apenas confirmava a melodia urgente de sua canção.
Após uma cavalgada tortuosa de uma hora, eles adentraram o parque que cercava a arena e lá Vaelin forçou Cicatriz a disparar a todo galope, ouvindo uma cacofonia cada vez mais alta ao se aproximarem da grande construção dourado-avermelhada. Avistou algo pelo canto do olho e ao se virar viu uma fila de pessoas correndo na direção da parede sul da arena, talvez quinhentas, todas armadas. Vaelin encarou a figura que ia à frente, discernindo o manto azul-escuro e o modo preciso e familiar com que corria. Virou Cicatriz para a esquerda, saltando sobre cadáveres e disparando sobre mármore e grama, indo se colocar no caminho dos combatentes, quando então parou o cavalo e ergueu a mão.
Eles começaram a parar lentamente quando Frentis ergueu a espada. Eram um bando estranho, homens e mulheres de armaduras mistas e com as marcas de uma batalha recente; algumas de cores volarianas, outras de origem claramente alpirana ou do Reino. Vaelin soltou um suspiro de alívio ao ver Artesão entre eles, no meio do único grupo daquela companhia que tinha uma aparência de fato militar.
— Irmão! — cumprimentou-o Frentis, correndo para o seu lado. Vaelin ficou espantado com a sua aparência, sujo de sangue e fuligem da cabeça aos pés, a lâmina da espada manchada de vermelho de uma ponta à outra. No entanto, ficou aliviado pelo olhar dele, envelhecido desde que o vira pela última vez, mas firme e desprovido da loucura que parecia ter tomado conta daquela cidade.
Vaelin acenou com a cabeça para Artesão e os volarianos dispostos de forma ordenada em volta dele.
— Eles são Varitai?
— Eles se chamam Politai agora — disse Frentis. — Significa “desacorrentados” em volariano antigo.
Vaelin olhou por sobre o ombro quando os guardas de Orven e os Senthar surgiram com o Aliado entre eles, sua postura agora consideravelmente mais alerta ao passar os olhos pela arena. Vaelin notou o sorriso que ele tinha nos lábios. Agora não vê mais necessidade de esconder a sua expectativa.
— Desacorrentados — repetiu ele, virando-se de novo para Frentis. — Tal como você foi, irmão.
Frentis assentiu, franzindo um pouco a testa, intrigado.
— A Senhora Reva — disse ele, apontando a espada para a arena. — Tenho informações seguras…
— Eu sei. — Vaelin desmontou de Cicatriz e desembainhou a espada, seguindo a passos largos para a arena, e fez sinal para que Frentis o seguisse, falando em voz baixa: — Não temos muito tempo, então escute bem…
Todos os sons de batalha haviam cessado quando entraram na arena. Tinham sido atrasados por alguns Kuritai que encontraram no labirinto de corredores que os levara até ali, mas os Senthar e os guardas eram numerosos e habilidosos o suficiente para matá-los sem dificuldade. O olhar de Vaelin percorreu as arquibancadas ao redor quando pisou na areia, encontrando apenas um terço delas ocupado, onde aglomerados nervosos de cidadãos volarianos mantinham-se afastados das companhias de Guardas do Reino e arqueiros cumbraelinos. A Rainha estava no meio da arena, sorrindo ao trocar palavras com Reva, ao lado do que parecia ser alguma espécie de macaco monstruoso, morto com uma lança cravada nas costas.
Reva correu até ele quando se aproximou, dando-lhe um abraço forte e caloroso.
— Atrasado desta vez — disse ela, repreendendo-o. Reva recuou e deu um tapa brincalhão em seu rosto.
Vaelin assentiu e forçou um sorriso, fazendo uma mesura para a Rainha quando ela se aproximou para cumprimentá-lo.
— Alteza. Fico feliz em ver que está bem.
— Digo o mesmo, meu senhor. — Vaelin achou o olhar dela estranhamente frio, o sorriso sincero que lhe mostrara no passado agora mais deliberado. A maior conquistadora da história do Reino, lembrou a si mesmo. Mais do que uma rainha agora.
— E a Senhora Dahrena? — perguntou Lyrna, percorrendo com os olhos a companhia atrás dele.
Vaelin a olhou nos olhos e sacudiu a cabeça, notando o breve espasmo de perda de compostura revelado por ela, seu rosto ficando anuviado por um pesar genuíno.
— Uma… grande perda, meu senhor.
O olhar de Vaelin foi atraído por um som sufocado atrás da Rainha, onde notou outro corpo caído ao lado do macaco monstruoso, os olhos dela fixos não nele, mas em Frentis. Os lábios da mulher se moveram em alguma forma de saudação, cuspindo sangue na areia e retorcendo as mãos.
— Permita-me apresentar a Imperatriz Elverah do Império Volariano — disse a Rainha.
Vaelin viu como Frentis empalideceu e se remexeu ao seu lado, aparentemente incapaz de desviar os olhos da moribunda, que continuava a cumprimentá-lo. Vaelin encarou o irmão até que Frentis se virasse e retribuísse seu olhar fixamente, esperando que ele se lembrasse de sua tarefa. Frentis fez um aceno quase imperceptível com a cabeça e deu as costas à Imperatriz, fazendo com que ela soltasse um gemido desolado e cravasse as unhas na areia, tentando desesperadamente se arrastar para perto dele.
— Também tenho uma apresentação a fazer — disse Vaelin à Rainha, fazendo sinal para que os guardas de Orven trouxessem o Aliado.
— Seu dotado imortal? — perguntou a Rainha, lançando um olhar crítico à forma amarrada do Aliado. Ele retribuiu o olhar dela com distração e ergueu a cabeça para as arquibancadas ao redor, estreitando os olhos numa maquinação cuidadosa.
— Não exatamente — disse Vaelin. — Não sei o seu nome verdadeiro, mas nos acostumamos a chamá-lo de Aliado.
— Nunca gostei desse nome — comentou o Aliado em voz baixa. — Talvez, daqui a alguns anos, vocês criem um melhor. Algo mais poético. Vejam bem, eu decidi me tornar um deus.
Vaelin abriu a boca para mandá-lo se calar e parou. Tentou erguer o braço da espada e viu que estava imóvel. Tentou se virar para Frentis, mas o seu pescoço recusou-se a se mover. Perdeu toda a sensação nos membros e apenas o seu peito se movia, continuando a respirar, e seus olhos, que iam de um lado para outro num pânico ligeiro. Ele podia ver a Rainha, paralisada com o mesmo rosto franzido de escrutínio crítico, Lorde Iltis atrás dela, imóvel feito uma estátua, assim como todos os outros seres vivos à vista, até mesmo os que se encontravam nas arquibancadas acima. A arena estava em silêncio agora, exceto pelos suspiros agonizantes da Imperatriz e pelo som dos passos leves do Aliado na areia ao se aproximar de Vaelin e olhá-lo nos olhos.
— Você perguntou sobre o meu dom — disse ele. — Ei-lo, ou um deles. Tantos anos desde que o usei neste mundo sem a necessidade de um intermediário. Não é tão desgastante agora, graças a você e ao seu amigo imortal. Está vendo? — Ele inclinou a cabeça, virando-a de um lado para outro. — Nada de sangue. Imagino que este corpo irá me sustentar por um bom tempo. Talvez até a morte deste mundo, embora eu não tenha desejo algum de testemunhá-la.
O Aliado se afastou e parou para olhar atentamente para Lyrna e depois para Reva, visível apenas pelos cantos do olho de Vaelin, tão imóvel quanto todos os outros.
— Tão bem-feita — disse o Aliado, mantendo o olhar em Reva. — É uma pena desperdiçá-la, mas esta aqui irá precisar de uma recompensa se for continuar como minha serva.
Ele se afastou de novo e foi até a Imperatriz, o único corpo à vista que não estava paralisado, embora os seus movimentos agora se limitassem a leves tremores. O Aliado ajoelhou-se ao lado dela, inclinou-se para trás e pressionou as cordas em volta de seu torso contra as garras de aço que saíam da mão do macaco morto. Ele fez uma careta com o esforço, subindo e descendo várias vezes até as amarras cederem.
— Ahh — suspirou o Aliado, levantando-se e jogando as cordas de Alturk para o lado. — Assim é melhor. — Ele flexionou os braços por um momento e então se agachou para examinar a Imperatriz, apertando os lábios ao notar o brilho tênue ainda visível no olho dela, grunhindo de satisfação. — Já fui chamado muitas vezes de arrogante — disse ele, olhando para Vaelin. — E confesso certa relutância em admitir fracassos. Porém, tantos anos de consciência fizeram com que eu apreciasse a humildade com novos olhos. Eu fracassei, é claro, e Lionen me torturou até a morte por isso. Mas foi o método e não a intenção que me derrotou. O método era falho. Tentar matar todos os dotados do mundo pessoalmente, mesmo com a habilidade de corromper almas maliciosas o suficiente aos meus propósitos, era uma tarefa grande demais. No entanto, tive tempo de sobra para pensar numa nova abordagem.
Ele se abaixou até a areia, recolheu uma espada curta e colocou um pé sob o corpo da Imperatriz, virando-a de barriga para cima.
— Por que tentar o impossível? — perguntou ele a Vaelin. — Quando a cobiça infinita da humanidade pode fazer isso por mim? Esse seria o papel dos volarianos, que foram moldados para servir aos meus propósitos. Nunca lhes ocorreu por que eu sempre me assegurava de que jamais houvesse o suficiente. Não importava quantos criassem nos fossos, eu simplesmente dava a minha bênção a outros de seus nobres para que sempre precisassem de mais, fossem compelidos à expansão, um império criado para conquistar o mundo em busca de sangue dotado, impelido por sua sede pela vida eterna. Tudo desfeito, graças a você e a estes outros. Obra do lobo, suponho. Ainda assim, não importa.
O Aliado ergueu a espada acima da cabeça, virou-se para as arquibancadas e gritou numa voz estridente:
— Prestem atenção! Os deuses antigos voltaram em mim! Um grande poder corre pelas minhas veias! Vejam a minha bênção!
Ele se aproximou da Imperatriz e encostou a lâmina da espada na carne do próprio braço, fazendo um corte pequeno, mas fundo. Baixou o ferimento até o rosto da Imperatriz e deixou que o sangue pingasse em seus lábios. A princípio ela mal reagiu, os lábios exibindo apenas um leve tremor, mas logo a sua boca se abriu mais, permitindo que o sangue escorresse para a garganta, fazendo com que as suas costas se arqueassem. O Aliado afastou-se enquanto ela continuava a convulsionar, jogou a espada de lado e arrancou um pedaço da camisa para enfaixar o ferimento.
— Já que você me privou de meu império — disse ele a Vaelin, rangendo os dentes em volta do trapo ao apertá-lo —, construiremos outro.
O Aliado se aproximou e parou mais uma vez ao lado de Lyrna, percorrendo o rosto perfeito dela com os olhos.
— Ela será a Rainha Salvadora, que veio do outro lado do oceano para livrar o povo volariano do reinado homicida da Imperatriz Elverah. E você — sorriu ele a Vaelin — será o grande e nobre general. Pense nos exércitos que criarão juntos, nas terras que conquistarão. E em cada terra que capturarem, vocês irão procurar os dotados.
O seu sorriso se evaporou ao se aproximar de Vaelin, o rosto perdendo toda a simulação de humanidade, a malícia pura daquela coisa revelada num rosnado trêmulo.
— E você irá sacrificá-los ao seu novo deus. Pode levar décadas, pode ser que eu faça você ter filhos com a minha rainha-fantoche para que eles possam continuar o trabalho. Mas, com o tempo, os dotados deste mundo desaparecerão e eu finalmente poderei seguir em frente.
O Aliado aproximou-se ainda mais e baixou a voz até se tornar um sussurro:
— As pedras cinzentas foram as fundações da nossa grandeza, receptáculos de memória e sabedoria, capazes de transmitir os nossos pensamentos através de vastas distâncias. Com elas construímos uma era de paz e sabedoria, então encontramos a pedra negra e achamos que fosse outra bênção. Ah, as dádivas que concedeu! À minha esposa, o poder de curar; ao seu irmão, a habilidade de atravessar as brumas do tempo. Dons tão maravilhosos, mas não para mim. Para mim, a pedra tinha uma maldição. Sabe o que é viver num mundo de harmonia, um mundo imaculado pela cobiça, e possuir verdadeiro poder? O poder de comandar com um único toque, o poder de forçar um homem a matar. Eu não o queria, queria algo melhor, algo mais. Porém, a pedra negra concede apenas um dom, permite apenas um toque. Pois, como os que a escavaram pagaram caro ao descobrir, com um toque você recebe um dom, com dois você perde a alma.
“Assim, ano após ano, década após década, eu resisti contra o meu dom. Construí cidades, ensinei, espalhei sabedoria pelo mundo, e não usei o meu dom uma única vez. E a minha recompensa? Uma esposa sacrificada para salvar uma raça de selvagens que não tinha inteligência suficiente para escrever o próprio nome. Este mundo, este mundo de feras imperfeitas que se consideram acima da natureza. Que lealdade eu lhe devia agora? Por que não tomar o que me havia sido negado?
“Não me lembro de seu nome, mas ele foi o primeiro a tocar na pedra negra, o primeiro a receber um dom. Um poder imenso, como o meu, um poder que ele preferia não usar. Mas havia ocasiões em que ele o demonstrava, mantendo voluntários imobilizados durante horas. Seria possível pensar que era um divertimento inofensivo. Porém, eu vi o que era de fato: uma barreira, uma anulação do poder que me fora concedido.
“Com o tempo nos tornamos grandes amigos. À medida que a idade o deixava debilitado e ele começou a contemplar as provações que teria pela frente, não foi difícil persuadi-lo a uma última aventura, um segundo toque na pedra que o pouparia de tanta dor, deixando o seu corpo vazio, enquanto o seu dom permaneceria em seu sangue.
“Eu não sabia, é claro. Não percebi o que estaria libertando. Nós tocamos em algo, veja bem. Quando encostamos na pedra negra. Tocamos em algo além deste mundo. Outro lugar, um lugar onde o que você chama de Trevas é supremo, um lugar de caos absoluto. Ao fazer com que uma alma tão poderosa tocasse na pedra, perfurei o véu entre os mundos e o soltei no nosso, e ele se espalhou por toda a terra como uma praga, fundindo-se a algumas almas, entrando no sangue delas de maneira que cada geração daria origem a mais, e criando assim uma armadilha para as suas almas. Pois nós as tornamos reais. Ao lhes dar um lugar onde residir, criamos a alma. Havíamos criado a vida após a morte. São elas que me mantêm no Além. O poder delas me sustenta, alimenta e me mantém cativo naquela prisão eterna. Tentei muito não fazer isso, mas mesmo lá, num lugar sem forma ou qualquer sensação que não o frio interminável, mesmo lá o instinto de me alimentar é irresistível, e se não restar nenhuma alma aqui, não haverá mais nada para me sustentar quando eu decidir abandonar esta carne.”
Ele recuou e o seu semblante estranho retomou a impassibilidade anterior.
— Para falar a verdade, eu não tinha certeza de que poderia deturpar você aos meus propósitos. Algumas almas simplesmente não possuem a malícia que as tornam instrumentos úteis. Mas então vi você cortar fora a cabeça daquele animal no norte. Não pense que não sou generoso. — O Aliado ergueu a mão e a estendeu na direção da testa de Vaelin. — Também farei de você um deus, se quiser.
A mão parou a um centímetro da pele de Vaelin e os olhos do Aliado se arregalaram em choque ao ver o punho fechado sobre o seu pulso.
— A semente germinou — disse Frentis.