GIULIA
Palermo, Sicília
Giulia acorda sobressaltada.
Esta noite sonhou com o seu pai. Em criança, adorava acompanhá-lo na sua volta. Montavam juntos a Vespa pela manhã, bem cedo. Ela não se sentava atrás, mas à frente, sobre os joelhos dele. Como gostava de sentir o vento nos cabelos, aquela sensação excitante de infinito e de liberdade que a velocidade produz. Giulia não tinha medo, os braços do pai rodeavam-na, nada lhe podia acontecer. Gritava de prazer e de euforia nas descidas. Via o Sol erguer-se na costa da Sicília, a agitação que nascia nos subúrbios, a vida a despertar e a espreguiçar-se.
Acima de tudo, gostava de tocar às portas. Bom dia, é para a cascatura, anunciava com orgulho. Às vezes as mulheres davam-lhe uma guloseima ou uma imagem, entregando-lhe os saquinhos com cabelos. Giulia levava o prémio de cabeça erguida e entregava-o ao papa. Ele tirava da mala a pequena balança de ferro que levava para todo o lado, herdada do seu pai, que por sua vez a herdara do pai dele. Pesava as madeixas para lhes calcular o valor e dava algumas moedas à mulher. Outrora, os cabelos eram trocados por fósforos, mas com o aparecimento dos isqueiros esse comércio extinguira-se. Agora eram pagos em dinheiro.
O pai evocava muitas vezes, rindo, aquelas pessoas de idade demasiado cansadas para saírem dos quartos, que faziam descer um cesto, preso a uma corda, onde punham os cabelos. Pietro Lanfredi cumprimentava-as com um gesto, retirava as madeixas e colocava o dinheiro no cesto, que voltava a subir da mesma forma.
Giulia lembra-se bem daquilo: o riso do pai quando contava esses episódios.
E punham-se novamente a caminho. Arrivederci! Nos cabeleireiros, a recolha era mais substancial, e Giulia gostava da expressão que o pai fazia ao receber uma trança comprida que fora cortada, os cabelos mais preciosos, mais raros. O pai pesava a trança, media-a, tocava-a para lhe sentir a textura e a densidade, dava mais dinheiro do que pelos outros cabelos. Pagava, agradecia, partia. Sem demora, pois só em Palermo o atelier Lanfredi contava com mais de cem clientes. Se se despachassem, estariam de volta para o almoço.
A imagem persiste ainda um instante. Giulia tem nove anos e está sentada na Vespa do pai.
Os segundos que se seguem são confusos, enevoados, como se a realidade não se quisesse impor e se misturasse com o sonho. Giulia desperta finalmente.
Sempre é verdade, afinal. O papa teve um acidente na véspera, quando dava a sua volta habitual. Por uma razão inexplicada, a Vespa despistou-se. Embora ele conhecesse bem o caminho, que fez centenas de vezes. Um animal deve ter atravessado a estrada, disseram os bombeiros, a não ser que ele se tenha sentido mal. Ninguém sabe. Agora, está entre a vida e a morte no hospital Francesco Saverio. Os médicos recusam-se a pronunciar-se. A família deve preparar-se para o pior, disseram à mamma.
O pior, Giulia não consegue encará-lo. Um pai não morre, um pai é eterno, é um rochedo, um pilar, sobretudo o seu pai. Pietro Lanfredi é uma força da natureza, há de ser centenário, como diz o doutor Signore, seu amigo, bebendo com ele um copo de grappa. Pietro, o bon vivant, homem cheio de gosto pela vida, o papa, o apreciador de bons vinhos, o patriarca, o patrão, o colérico, o apaixonado, o seu pai, o seu pai adorado, ele não pode partir. Não agora. Não assim.
Hoje celebra-se o dia de Santa Rosália. Que triste ironia, pensa Giulia. Ao longo do dia, os habitantes de Palermo vão desfilar em júbilo, prestando homenagem à sua santa padroeira. A Festinu vai atingir o seu auge, como todos os anos. Seguindo o costume, Pietro Lanfredi deu folga às suas funcionárias para elas participarem nas celebrações — a procissão ao longo do Corso Vittorio Emanuele, depois o fogo de artifício no Foro Italico, quando a noite cair.
Giulia não tem disposição para a festa. Tentando ignorar as manifestações de alegria pela rua fora, vai ao hospital com a mãe e as irmãs. Deitado na cama, o papa não parece sofrer — esse pensamento consola-a um pouco. O corpo, antes tão forte, parece hoje muito frágil, quase como o de uma criança. O pai parece mais pequeno, pensa ela, como se tivesse encolhido. Talvez seja o que acontece quando a alma parte… Giulia expulsa logo aquele pensamento funesto do seu espírito. O pai está ali. Ainda vive. É preciso agarrar-se a isso. Uma comoção cerebral, dizem os médicos. Expressão que significa: não se sabe. Ninguém sabe dizer se ele vai resistir ou morrer. Ele próprio parece não ter decidido.
Temos de rezar, diz a mamma. Esta manhã, ela pede a Giulia e às suas irmãs que a acompanhem na procissão de Santa Rosália. A Virgem Florida faz milagres, já o provou no passado ao salvar a cidade da peste, é preciso invocá-la, diz a mãe. Giulia não gosta nada de manifestações de fervor religioso nem de multidões, cujos movimentos imprevisíveis lhe causam receio. De resto, não acredita em nada daquilo. Foi batizada, claro, e fez a primeira comunhão — lembra-se daquele dia em que, usando o tradicional vestido branco, recebeu pela primeira vez o sacramento da eucaristia sob o olhar devoto e intenso da sua família reunida. Esse dia foi, entre todos, um dos mais belos da sua vida. Mas hoje Giulia não tem vontade de rezar — prefere ficar à cabeceira do papa.
A mãe insiste. Se os médicos não podem fazer nada, só Deus o pode salvar. Ela parece tão segura do que diz, que Giulia dá por si a invejar-lhe a fé, aquela boa-fé dos inocentes, que nunca a abandonou. Giulia não conhece mulher mais devota do que a mãe. Vai todas as semanas à igreja assistir a missas em latim, das quais pouco ou nada compreende — uma pessoa não precisa de compreender para honrar Deus, como ela não se cansa de repetir. Giulia acaba por ceder.
Juntam-se ao cortejo e à multidão dos admiradores de Santa Rosália entre a catedral e os Quattro Canti. Uma maré humana acotovela-se para prestar homenagem à Virgem Florida, cuja gigantesca imagem é transportada pelas ruas. Faz calor em Palermo neste mês de julho, um bafo quente banha a cidade e as avenidas. No meio da procissão, Giulia sufoca. Sente um zumbido nos ouvidos, a sua vista turva-se.
Aproveitando um momento em que a mãe cumprimenta uma vizinha que quer saber como está o papa — a notícia espalhou-se pelo bairro —, Giulia afasta-se do cortejo. Refugia-se numa ruela à sombra para se refrescar com a água de uma fonte. O ar torna-se novamente respirável. Quando começa a sentir-se melhor, ouve vozes que ressoam na rua, um pouco mais longe. Dois carabinieri de uniforme interpelam um homem de pele morena. De grande estatura, o homem traz o cabelo oculto sob um turbante negro, que os guardiões da ordem o intimam a tirar. Ele protesta num italiano impecável, pontuado por um sotaque estrangeiro: está em situação legal, diz, mostrando os seus documentos, mas os agentes recusam-se a escutá-lo. Irritam-se, ameaçam levá-lo à esquadra se ele não obedecer — quem sabe se não tem uma arma escondida sob o turbante, afirmam, naquele dia de festividades, nada pode ser deixado ao acaso. O homem mantém-se firme. O turbante é um símbolo de pertença à sua religião, que o proíbe de o tirar em público. Além disso, não impede que o identifiquem, pois é assim que aparece na fotografia do seu bilhete de identidade — um privilégio concedido aos siques pelo governo italiano. Giulia assiste à cena com um ar inquieto. O homem é belo. Tem um corpo atlético, os traços finos, a pele escura e os olhos estranhamente claros. Deve ter uns trinta anos, no máximo. Os carabinieri levantam a voz, um deles começa a empurrar o homem. Agarrando-o com firmeza, acabam por levá-lo na direção da esquadra.
O desconhecido não resiste. Numa atitude ao mesmo tempo digna e resignada, passa diante de Giulia, um carabineiro de cada lado. Por um instante, os seus olhares cruzam-se. Ela não baixa os olhos — o estranho também não. Giulia vê-o desaparecer ao virar da esquina.
Che fai?!
Francesca surge atrás dela, sobressaltando-a.
Procurámos-te por todo o lado!
Andiamo! Dai!
Contra vontade, Giulia volta ao caminho da procissão, atrás da sua irmã mais velha.
À noite, tem dificuldade em adormecer. A imagem do homem de pele escura vem-lhe ao pensamento. Não consegue deixar de se perguntar o que lhe terá acontecido nas mãos dos polícias. Tê-lo-ão atormentado ou batido? Reenviado para o seu país? O espírito de Giulia perde-se em conjeturas. Uma dúvida persegue-a em particular: devia ter intervindo? E que poderia ter feito? Sente-se um pouco culpada da sua passividade. Não compreende por que razão a sorte do desconhecido a intriga daquela forma. Um sentimento estranho perturba-a desde que ele a olhou — um sentimento novo. Será curiosidade? Empatia?
Ou outra coisa ainda a que ela não quer dar nome.