GIULIA

Palermo, Sicília

«Agora o que vive

tem uma voz e um sangue.

Agora terra e céu

são um tremor poderoso

a esperança enlaçou-os,

a manhã inquieta-os,

teu passo e teu hálito

de aurora os submergem.»1

Giulia e Kamal veem-se agora todos os dias. Ganharam o hábito de se encontrarem na biblioteca à hora de almoço. Vão muitas vezes passear junto ao mar. Giulia sente-se intrigada a respeito daquele homem que em nada se parece com os que ela conhece — dos sicilianos, ele não tem nem o aspeto nem os modos, e talvez seja isso que a encanta. Os homens da sua família são autoritários, faladores, coléricos e teimosos. Kamal é o oposto de tudo isso.

Giulia nunca sabe o que vai encontrar. Ao meio-dia, quando entra na sala de leitura, procura-o com o olhar. Às vezes, Kamal está ali. Noutros dias, não vem. E essa incerteza deliciosa só aumenta a curiosidade de Giulia. Sente um formigueiro no ventre que a acorda de noite, um sentimento novo e delicado. Lê e relê os poemas de Pavese, cujas palavras são o único remédio para a falta que já sente dele.

Acontece uma tarde, quando caminham pelo paredão. Giulia leva-o a um lugar para onde costuma ir ler, longe da agitação estival. É uma gruta que ninguém conhece, diz-lhe — ou ela gosta de acreditar nisso.

A enseada está deserta àquela hora. A gruta é um lugar sossegado, húmido e sombrio, ao abrigo do mundo. Sem uma palavra, Giulia despe-se. O vestido desliza-lhe pelo corpo e cai-lhe aos pés. Kamal permanece imóvel, petrificado, como se diante de uma flor que hesitasse colher com receio de a magoar. Giulia estende-lhe a mão, um gesto que é mais do que um encorajamento: é um convite. Devagar, ele desmancha o turbante, retira a travessa que lhe prende o cabelo. Os seus cabelos desenrolam-se como uma meada de lã até à cintura. Giulia estremece. Nunca viu um homem com cabelo tão comprido — ali, são as mulheres que o usam assim. Mas Kamal não tem nada de feminino. Ela acha-o incrivelmente viril, com os seus cabelos pretos de azeviche. Começa a beijá-la, muito delicadamente, como se beijasse os pés de uma imagem sagrada, mal ousando tocar-lhe.

Giulia nunca viveu nada semelhante. Kamal faz amor como quem diz uma prece, de olhos fechados, como se a sua vida dependesse disso. Tem as mãos calejadas pelas noites de trabalho, mas o seu corpo é surpreendentemente macio, como um pincel que a deixa trémula ao primeiro toque.

Depois do amor, permanecem enlaçados durante muito tempo. No atelier, as mulheres riem-se dos homens que adormecem logo a seguir ao ato, mas Kamal não é assim. Estreita Giulia contra si, como um tesouro precioso do qual não quisesse separar-se. Ela podia ficar horas assim, o corpo incendiado contra o dele, a sua pele clara contra a pele escura e macia.

Começam a encontrar-se ali, na gruta, junto ao mar. Trabalhando Kamal de noite na cooperativa e Giulia de dia no atelier, veem-se à hora de almoço. Fazem amor ao começo da tarde e os seus encontros têm o gosto de momentos roubados. Toda a Sicília está entregue ao trabalho, ocupada nos escritórios, nos bancos ou nos mercados, mas não eles. Aquelas horas pertencem-lhes, por isso usam e abusam delas, contando os sinais dos seus corpos, inventariando as cicatrizes, saboreando cada parte da sua pele. Não se faz amor àquela hora como à noite, há uma audácia, algo estranhamente mais brutal em descobrir um corpo à luz do dia.

Para Giulia, é como se dançassem a tarantela, como aqueles pares que ela via em criança nos bailes de verão: encontram-se, tocam-se, afastam-se, tal é o passo de dança do seu amor, ritmado por idas e vindas, de dia, de noite. Um desajuste tão frustrante como romântico.

Kamal é um homem misterioso. Giulia não sabe nada dele, ou sabe muito pouco. Ele nunca fala da sua vida de antes, da vida que abandonou para ir para a Sicília. Por vezes, diante do mar, o seu olhar perde-se. O seu manto de tristeza reaparece então, envolvendo-o por completo. Para Giulia, a água é vida, uma fonte de prazer que se renova incessantemente, uma forma de sensualidade. Gosta de nadar, de sentir a água deslizar-lhe pelo corpo. Um dia, tenta convencê-lo a acompanhá-la; Kamal recusa-se. O mar é um cemitério, diz-lhe, e Giulia não ousa perguntar-lhe mais nada. Não faz ideia do que ele viveu, do que foi que a água lhe roubou. Talvez ele lhe conte um dia. Ou talvez não.

Quando estão juntos, não falam nem do futuro, nem do passado. Giulia não espera nada dele, nada mais do que aquelas horas roubadas à tarde. Só o instante presente conta, o momento em que os seus corpos se entrelaçam para serem um só, como duas peças de um puzzle que se fundem uma na noutra de modo perfeito.

Embora nunca fale de si, Kamal evoca de boa vontade o seu país. Giulia seria capaz de o escutar horas a fio. Ele é como um livro aberto para uma terra longínqua, deliciosamente estranha. Ao fechar os olhos, Giulia tem a sensação de viajar num barco onde é a única passageira. Kamal recorda as montanhas de Caxemira, as margens do rio Jelhum, o lago Dal e os seus hotéis flutuantes, fala-lhe da cor vermelha das árvores no outono, dos jardins luxuriantes, das túlipas que se estendem a perder de vista, junto aos Himalaias. Giulia incita-o, quer saber mais, conta-me, diz ela, conta-me mais. Kamal fala-lhe sobre a sua religião e as suas crenças, sobre o Rehat Maryada, o código de conduta dos siques, que os proíbe de cortar o cabelo e a barba, e também de beber, de fumar, de comer carne ou de se entregarem aos jogos de azar. Fala-lhe do seu Deus, que preconiza uma vida íntegra e pura, um Deus único e criador, nem cristão, nem hindu, nem de nenhuma outra confissão, que é UM, simplesmente. Os siques acreditam que todas as religiões podem conduzir a esse Deus e que por isso são todas dignas de respeito. Giulia gosta dessa ideia de religião sem pecado original, sem Paraíso e sem Inferno — estes últimos só existem neste mundo, é o que pensa Kamal, e Giulia acha que ele tem razão.

A religião sique, explica ele, considera que uma mulher tem a mesma alma que um homem. Trata ambos os sexos de maneira igual. As mulheres podem recitar os hinos divinos no templo, presidir a todas as cerimónias, como a do batismo. Devem ser respeitadas, honradas pelo seu papel na família e na sociedade. Um sique deve encarar a mulher de outro como uma irmã ou uma mãe, a filha de outro como sua filha. Sinal revelador dessa igualdade, entre os siques, os nomes próprios são mistos, indiferentemente usados para homens e para mulheres. Só o segundo nome os diferencia: Singh para os homens, que significa «Leão», e Kaur para as mulheres, que ele traduz como «Princesa».

Principessa.

Giulia gosta que Kamal lhe chame assim. É-lhe cada vez mais difícil separar-se dele para regressar ao trabalho. Como seria bom passar dias inteiros assim, diz para consigo. Dias, e noites também. Poderia ficar ali toda a vida, a fazer amor e a escutá-lo.

Sabe, no entanto, que não tem o direito de estar ali. Kamal não tem a mesma pele que ela, nem o mesmo Deus que os Lanfredi. Giulia imagina o que diria a mãe: um homem de pele escura, que nem sequer é cristão! Ficaria mortificada. A notícia espalhar-se-ia pelo bairro. Então, Giulia encontra-se com Kamal em segredo. O seu amor é clandestino. É um amor ilegal.

Após a hora de almoço, chega cada vez mais tarde ao atelier. A Nonna começa a desconfiar de alguma coisa. Não lhe passa despercebido o sorriso que Giulia tem no rosto nem aquele brilho novo nos seus olhos. Giulia finge que vai todos os dias à biblioteca, mas volta sem fôlego, as faces a arder. Certa tarde, a Nonna julga ver areia sob o seu lenço, nos seus cabelos… As operárias começam a cochichar: será que ela tem um namorado? Quem será? Um rapaz do bairro? Mais novo? Mais velho? Giulia desmente com aquela insistência que é quase uma confissão.

Pobre Gino, suspira Alda, vai ficar de coração partido! Ali, todas sabem que Gino Battagliola, o dono do salão de cabeleireiro, é louco por ela. Há anos que a corteja. Vai todas as semanas ao atelier vender os seus cabelos cortados; às vezes até passa por lá sem razão, só para a cumprimentar. As mulheres divertem-se ao vê-lo. Riem-se dos presentes que ele lhe leva, em vão. Giulia continua de pedra, mas Gino não perde a esperança e vem sempre, os braços carregados de buccellatini com figos, que as operárias comem com apetite.

À noite, depois de fechar o atelier, Giulia vai sentar-se à cabeceira do pai e lê para ele. Às vezes, censura-se por se sentir tão viva no meio daquela tragédia. O seu corpo exulta, estremece, regozija-se como nunca, enquanto o seu pai luta pela vida. Mas Giulia precisa de se agarrar a isso para seguir em frente, para não ceder à tristeza. O corpo de Kamal é um bálsamo, um unguento, um remédio para os males do mundo. Giulia gostaria de não ser mais do que isso, um corpo entregue ao prazer, porque o prazer a mantém de pé, a mantém viva. Sente-se dividida entre sentimentos extremos, ora abatida ora exaltada. Como um acrobata na corda bamba, tem a sensação de oscilar ao sabor do vento. É estranho, diz para consigo, às vezes a vida junta os momentos mais sombrios e os mais luminosos. Tira e dá ao mesmo tempo.

Hoje a mamma confiou-lhe uma missão, a de ir procurar um papel ao escritório do seu pai, no atelier. O hospital pediu-lhe um documento que ela não consegue encontrar, Dio mio, como tudo isto é complicado, lamenta-se a mãe. Giulia não é capaz de lhe dizer que não, embora não tenha vontade de entrar no escritório. Não voltou lá desde o acidente. Não quer que toquem nas coisas do pai. Quer que ele encontre tudo tal como deixou quando sair do coma. Assim verá que todos o esperavam.

Giulia empurra a porta da cabina de projeção transformada em escritório. Demora-se um pouco à entrada. Na parede está a fotografia emoldurada de Pietro, com a do seu pai e a do seu avô, as três gerações de Lanfredi que se sucederam à frente do atelier. Um pouco mais afastadas, outras fotografias presas apenas como pioneses: Francesca em bebé, Giulia sentada na Vespa, Adela no dia da sua primeira comunhão, a mamma vestida de noiva, o sorriso um pouco tenso. O Papa também, não Francisco, mas João Paulo II, o mais admirado.

O escritório está tal como o pai o deixou na manhã do acidente. Giulia observa o seu cadeirão, os seus dossiers, o cinzeiro de barro para onde ele atira as pontas de cigarro, que ela própria fez, em criança, para lhe oferecer. O universo do pai parece esvaziado da sua substância e, ao mesmo tempo, estranhamente habitado. Sobre a secretária, a agenda está aberta numa página terrível, a de 14 de julho. Giulia não é capaz de virar a página. É como se o pai ali estivesse de repente, por inteiro, naquela agenda Moleskine com capa de pele preta, como se restasse um pouco dele entre as linhas do caderno, na tinta das palavras, até naquela pequena mancha ao fundo da página, imóvel no papel. Giulia tem a curiosa impressão de que ele está ali, em cada partícula de ar, em cada átomo dos móveis.

Por um momento, sente-se tentada a voltar para trás, a fechar a porta. Mas fica. Prometeu à mamma que lhe levava o tal papel. Lentamente, abre uma gaveta, depois uma segunda. A terceira, a de baixo, está fechada à chave. Giulia admira-se. Uma estranha sensação invade-a. O pai não tem segredos, a família Lanfredi não tem nada a esconder… Então, porquê aquela gaveta trancada?

As perguntas dão-lhe voltas na cabeça. A sua imaginação já galopa como um cavalo louco acabado de libertar. O pai teria uma amante? Uma vida secreta? Será que a Piovra, com os seus tentáculos, o alcançou?… Os Lanfredi não comem desse pão… Que dúvida é esta, então, que a assalta como um pressentimento, uma nuvem negra a ensombrar-lhe o horizonte?

Depois de uma breve busca, encontra a chave. Está ali mesmo, naquela caixa de charutos oferecida pela mãe. Giulia estremece: terá o direito de o fazer? Ainda está a tempo de recuar…

Com uma mão trémula, roda a chave. A gaveta abre-se finalmente, revelando um molho de papéis. Giulia pega neles.

E o chão abre-se sob os seus pés.

1 Cesare Pavese, Travailler fatigue. La mort viendra et elle aura tes yeux. Poésies variées, Poésies/Gallimard, 1979.