SMITA

Aldeia de Badlapur, Uttar Pradesh, Índia

Nagarajan adormeceu. Smita, deitada ao seu lado, sustém a respiração. A primeira hora do sono dele é sempre agitada; ela sabe que é melhor esperar algum tempo para não o acordar.

Partirá esta noite. Está decidida. Ou melhor, a vida decidiu por ela. Não pensava pôr o seu plano em prática tão cedo, mas a ocasião surgiu, como um presente dos céus: sofrendo de um abcesso num dente, a mulher do brâmane teve de sair de casa para ir consultar o médico da aldeia naquela mesma manhã. Smita estava a esvaziar o buraco pestilento que lhes serve de latrina quando a viu sair de casa. Dispunha apenas de alguns segundos para tomar a decisão: não voltaria a ter semelhante oportunidade. Cautelosamente, introduziu-se na copa, junto à cozinha, e levantou o pote que contém as reservas de arroz, debaixo do qual estão guardadas as economias do casal. Não é um roubo, disse para consigo, apenas a recuperação do que me é devido — uma recuperação justa. Tirou apenas a quantia exata que dera ao brâmane, nem uma rupia a mais. A ideia de roubar nem que fosse uma moeda a alguém, por muito rica que fosse essa pessoa, vai contra todos os seus princípios, pois Vishnu mostrar-lhe-ia a sua cólera. Smita não é uma ladra, preferia morrer de fome a roubar um ovo.

Enfiou o dinheiro debaixo do seu sari e apressou-se a regressar a casa. Febrilmente, reuniu alguns dos seus pertences — o mínimo necessário, não pode levar demasiado peso consigo. Ela e Lalita são franzinas, não podem ir carregadas. Algumas peças de roupa e víveres, arroz e papadums1 para a viagem, preparados à pressa, enquanto Nagarajan estava nos campos. Smita sabe que ele não as deixaria partir. Não voltaram a falar do seu projeto, mas ela conhece a posição do marido. Restava-lhe esperar pela noite para executar o seu plano, rezando para que a mulher do brâmane não se apercebesse de nada até lá. No momento em que ela der pela falta do dinheiro, a vida de Smita estará em perigo.

Ajoelha-se diante do pequeno altar consagrado a Vishnu e reza-lhe a implorar a sua proteção. Pede-lhe que vele por si e por Lalita durante a sua longa viagem, os dois mil quilómetros que vão percorrer a pé, de autocarro, de comboio, até Chennai. Uma viagem esgotante, perigosa, com um desfecho incerto. Smita sente, então, uma corrente quente atravessá-la, como se já não estivesse sozinha, como se milhões de intocáveis estivessem ajoelhados ali, diante do pequeno altar, a rezar com ela. Faz uma promessa a Vishnu: se conseguirem fugir, se a mulher do brâmane não se aperceber de nada, se os jatts não as apanharem, se chegarem a Varanasi, se apanharem um comboio e se, por fim, chegarem vivas ao Sul, irão prestar-lhe homenagem no Templo de Tirupati. Smita ouviu falar desse lugar mítico na montanha de Tirumala, a menos de duzentos quilómetros de Chennai, como sendo o lugar de peregrinação mais visitado do mundo. Diz-se que são milhões de pessoas, todos os anos, a levar oferendas a Shri Venkateswara, o Senhor da Montanha, uma forma muito venerada de Vishnu. O seu Deus, esse deus protetor, não as abandonará, Smita tem a certeza. Pega na pequena imagem de cantos dobrados diante da qual reza, uma representação colorida do deus de quatro braços, e guarda-a junto ao corpo, sob o seu sari. Assim acompanhada, já não corre perigo. De repente, é como se um manto invisível lhe pousasse nos ombros e a envolvesse, para a proteger. Assim coberta, Smita é invencível.

A aldeia está agora mergulhada na noite. A respiração de Nagarajan tornou-se regular, um ligeiro ronco escapa das suas narinas. Não é um ruído agressivo, antes um ronronar suave, como o de um tigre bebé enroscado contra o ventre da mãe. Smita sente um aperto no peito. Amou aquele homem, acostumou-se à sua presença tranquilizante. Censura-lhe a falta de coragem, o fatalismo amargo que impôs às suas vidas. Gostaria tanto de partir com ele. Deixou de o amar no instante em que ele se recusou a lutar. O amor é volátil, pensa Smita, às vezes desaparece tal como apareceu, num piscar de olhos.

Quanto afasta a manta, é tomada por uma vertigem. Não será insensato empreender uma tal viagem? Se ao menos não se sentisse tão revoltada, tão indócil, se ao menos aquela borboleta não agitasse as asas no seu ventre, poderia resignar-se, aceitar a sua sorte, como Nagarajan e os seus irmãos dalits. Voltar a deitar-se e esperar pela madrugada, num torpor sem sonhos, como quem espera a morte.

Não pode recuar. Tirou o dinheiro guardado sob o pote do brâmane, é impossível voltar atrás. Terá de se lançar às cegas naquela viagem que a levará longe — ou a lugar nenhum. Não é a morte que a assusta nem sequer o sofrimento — por si, não receia nada, ou muito pouco. Por Lalita, ao invés, receia tudo.

A minha filha é forte, repete para consigo, tentando acalmar-se. Soube-o desde o dia em que ela nasceu. Quando o médico da aldeia a examinava, após o parto, a criança mordera-lhe. Ele rira-se — a pequena boca sem dentes deixara-lhe uma marca ínfima na mão. Ela tem uma personalidade forte, dissera o médico. Aquela pequena dalit de seis anos, pouco mais alta do que um banco, disse «não» ao brâmane. No meio da sala de aula, olhou-o nos olhos e disse-lhe «não». Não é preciso ser bem-nascido para ter coragem. Este pensamento dá força a Smita. Não, não condenará Lalita à lama, não a entregará àquele darma maldito.

Aproxima-se da sua filha adormecida. O sono das crianças é um milagre, pensa. O sono de Lalita é tão tranquilo que Smita se sente culpada de o interromper. A criança tem o rosto descontraído, os traços harmoniosos, encantadores. Quando dorme, parece mais nova, quase um bebé. Smita gostaria de nunca ter de fazer isto, acordar a sua filha em plena noite para fugir. A menina não sabe nada das intenções da mãe; ignora que nessa noite viu o pai pela última vez. Smita inveja-lhe aquela inocência. A fuga através do sono, há muito tempo que lhe é inacessível. As suas noites não lhe trazem mais do que um abismo sem fundo, sonhos tão negros como a sujidade que limpa. Talvez seja diferente no lugar para onde vão…

Lalita dorme, apertando nos braços a sua única boneca, um brinquedo que recebeu pelos seus cinco anos: uma pequena «Rainha dos Bandidos» com um lenço vermelho na cabeça e a efígie de Phulan Devi. Smita conta-lhe muitas vezes a história desta mulher de baixa casta, casada aos onze anos de idade, célebre por se ter rebelado contra a sua sorte. À frente de um grupo de dacoits, defendia os oprimidos, atacava os proprietários endinheirados que violavam as raparigas de casta inferior nas suas terras. Tirando aos ricos para dar aos pobres, ela era a heroína do povo, considerada por alguns como um avatar de Durga, a deusa da guerra. Acusada de quarenta e oito crimes, foi detida, encarcerada, depois libertada e eleita deputada no parlamento, acabando por ser assassinada por três homens mascarados, em plena rua. Lalita adora esta boneca, como a adoram todas as meninas da terra. Encontra-se um pouco por toda a parte, nos mercados.

Lalita.

Acorda.

Vem!

A criança desperta de um sonho que só a ela pertence. Lança à mãe um olhar sonolento.

Não faças barulho.

Veste-te.

Depressa.

Smita ajuda a criança a preparar-se. A menina obedece, olhando-a com uma expressão inquieta: que ideia é a sua, em plena noite?

É uma surpresa, sussurra-lhe a mãe.

Não tem coragem de lhe dizer que vão partir e que não voltarão atrás. Aquele é um bilhete sem volta, um bilhete só de ida para uma vida melhor. O inferno da pequena aldeia de Badlapur, nunca mais, foi o que Smita prometeu a si própria. Lalita não iria compreender, havia de chorar, talvez até resistisse. Smita não pode correr o risco de deitar os seus planos por terra. Então, mente. É uma mentira muito pequena, diz para consigo como forma de consolo, está só a embelezar a realidade.

Antes de partir, lança um último olhar a Nagarajan; o seu tigre dorme tranquilamente. Ao lado dele, no lugar da cama agora vazio, deixou um pedaço de papel. Não é uma carta — ela não sabe escrever. Smita copiou apenas o endereço dos seus primos em Chennai. Talvez a sua partida dê a Nagarajan a coragem que hoje lhe falta. Talvez ele encontre forças para ir ao seu encontro. Quem sabe.

Depois de um último olhar à cabana, àquela vida que não lhe custa deixar — ou quase nada —, Smita segura a mão gelada da filha e apressa-se pelo campo sombrio.

1 Folhas finas de massa fritas, à base de farinha de feijão.