GIULIA
Palermo, Sicília
Giulia esperava tudo menos aquilo.
O conteúdo da gaveta está ali diante dos seus olhos, na secretária do papa: cartas do tribunal, ordens de pagamento, um sem-fim de cartas registadas. A verdade atinge-a como uma bofetada. Numa palavra: falência. O atelier ameaça desmoronar-se sob as dívidas. A casa Lanfredi está arruinada.
O pai nunca disse nada. Não se abriu com ninguém. Agora que pensa nisso, Giulia lembra-se que uma vez, uma única vez, ele deixou escapar no meio de uma conversa que a tradição da cascatura se estava a perder. Apanhados nas aflições da vida moderna, os sicilianos iam deixando de guardar os seus cabelos, dissera ele. É um facto, hoje em dia já ninguém guarda nada; o que está usado é deitado fora e compra-se algo novo. Giulia lembra-se daquela conversa durante uma refeição em família, quando estavam sentados em torno de uma grande mesa: em breve, confessara o pai, a matéria-prima começaria a faltar. Nos anos 60, o atelier Lanfredi contava quinze concorrentes em Palermo. Já todos tinham fechado. Ele orgulhava-se de ser o único a manter as portas abertas. Giulia sabia que o atelier passava por dificuldades, mas estava longe de o imaginar à beira da falência. Na sua mente, tal nem sequer era uma possibilidade.
Tinha, contudo, de se render à evidência. A avaliar pelas contas, restava-lhes um mês de trabalho, no máximo. Sem cabelos, não haverá trabalho para as operárias. O atelier não poderá continuar a pagar-lhes. Terão de abrir falência, fechar as portas.
A ideia deixa Giulia destroçada. Há décadas que a sua família inteira vive das receitas daquele atelier. Pensa na mãe, com demasiada idade para trabalhar, pensa em Adela, ainda no liceu. A sua irmã mais velha, Francesca, casou com um mãos-rotas que gasta o salário ao jogo — não raras vezes, é o pai a pagar-lhes as contas no final do mês. Que será deles? A casa da família está hipotecada, todos os seus bens serão apreendidos. Quanto às funcionárias, ficarão desempregadas. O setor é altamente especializado, não existe outro atelier como aquele na Sicília que pudesse contratá-las. Que farão aquelas mulheres que são como irmãs para Giulia, mulheres com quem ela partilhou tanto?
Pensa, então, no papa, na sua cama de hospital, em coma. De repente, fica petrificada. Uma imagem terrível impõe-se ao seu espírito: o pai na Vespa naquela manhã, encurralado, desesperado, a toda a velocidade na estrada perigosa… Afasta aquele pensamento maldito. Não, ele não faria tal coisa, não as teria deixado, a sua mulher, as suas filhas, as suas funcionárias, arruinadas, abandonadas… Pietro Lanfredi é um homem com um profundo sentido de honra, não é do género de fugir perante a infelicidade. Giulia sabe, no entanto, que o orgulho dele, o seu êxito, a quintessência da sua vida é aquele pequeno atelier de Palermo que herdou do seu pai e que o seu avô fundou. Suportaria ele ver as suas empregadas dispensadas, a sua empresa liquidada, o trabalho de uma vida esvaído em fumo?… É cruel a dúvida que agora se insinua no espírito de Giulia, como gangrena num membro ferido.
O barco está a afundar-se, diz Giulia para consigo. Estão todos a bordo, ela própria, a mamma, as suas irmãs, as operárias. É o Costa Concordia, o capitão partiu, o naufrágio é certo. Não há salva-vidas nem boias, nada a que possam agarrar-se.
As vozes das operárias na sala principal arrancam-na aos seus pensamentos. Como todas as manhãs, preparam-se para trabalhar, tagarelando a respeito de tudo e de nada. Por um instante, Giulia inveja-lhes aquela ligeireza — ainda não sabem o que as espera. Volta a fechar a gaveta, devagar, como quem fecha um caixão, e dá uma volta à chave. Não tem coragem para lhes dar a notícia hoje nem para lhes mentir. Não pode sentar-se ao lado delas e trabalhar como se nada fosse. Então, vai refugiar-se lá em cima, no terraço, no laboratorio. Senta-se de frente para o mar, como fazia o seu pai. Ele era capaz de passar horas assim, a contemplar as águas. Dizia que era um espetáculo que nunca o cansava. Agora Giulia está só, e o mar não quer saber do seu desgosto.
À hora de almoço, vai ter com Kamal à gruta onde costumam encontrar-se. Não lhe revela o seu tormento. Encontrar consolo no toque da sua pele, é isso que espera. Fazem amor e por instantes o mundo parece-lhe menos cruel. Quando a vê chorar, Kamal não diz nada. Beija-a, e os seus beijos têm um gosto a água salgada.
À noite, Giulia regressa a casa. Fingindo uma dor de cabeça, vai fechar-se no seu quarto e esconde-se sob os lençóis.
Nessa noite, o seu sono está povoado de estranhas visões: o atelier do pai destruído, a casa vazia, vendida, a mãe desvairada, as operárias na rua, as madeixas da cascatura dispersas, lançadas ao mar, um mar de cabelos revoltos… Giulia dá voltas e mais voltas na cama, não quer continuar a pensar, mas as imagens ressurgem no seu espírito, incansavelmente, como um sonho obsessivo de que não consegue libertar-se, um disco demoníaco a impor-lhe a sua música macabra. Por fim, a madrugada liberta-a dos seus tormentos. Levanta-se com a sensação de não ter dormido, nauseada, a cabeça num torno. Tem os pés gelados, um zumbido nos tímpanos.
Cambaleia até à casa de banho. Um duche quente ou gelado vai tirá-la daquele pesadelo, acordar o seu corpo exausto. Caminha para a banheira e detém-se.
No fundo da banheira está uma aranha.
Uma aranha pequena, com um corpo fino e patas delicadas, como pontos de renda. Deve ter subido pelos canos e viu-se ali, na armadilha da superfície esmaltada, aquela imensidão branca que não oferece saída. A princípio, deve ter lutado, tentando subir as paredes geladas, mas as suas patas de renda escorregaram, levando-a para o fundo do cubículo. Acabou por compreender que a luta era vã e agora, imóvel, fica à mercê do destino, espera uma outra saída. Qual?
Giulia começa a chorar. Não é tanto a visão da aranha negra sobre o esmalte branco que a perturba — embora tenha horror àqueles bichos, que lhe provocam uma repulsa imediata, um pânico descontrolado —, mas antes a certeza de estar, tal como a aranha, prisioneira de uma armadilha a que não conseguirá escapar, uma armadilha de que ninguém virá resgatá-la.
Sente-se tentada a voltar para a cama e não tornar a levantar-se. Desaparecer, a ideia é doce, quase apelativa. Não sabe o que fazer de toda aquela tristeza, da vaga imensa que a submerge. Um dia, quando era criança, estivera prestes a afogar-se numa ida à praia com a família, em San Vito Lo Capo. O mar, habitualmente tão calmo naquele lugar, estava estranhamente agitado. Uma onda mais forte que as outras apanhara-a e durante alguns segundos vira-se isolada do mundo, a rolar na espuma. Ainda se lembra de como a sua boca se enchera de areia e seixos minúsculos. Num instante, perdera a noção de onde estava o céu e a terra, os contornos do real apagaram-se. A força da corrente empurrara-a para o fundo, como se alguém a puxasse pelo pé. Naquele estado de semiconsciência que acompanha as quedas e os acidentes, nesses instantes em que a realidade avança mais depressa do que o pensamento, julgara não voltar à tona da água. Era ali que tudo terminava para ela. Quase se resignara. Mas a mão do pai agarrara-a, trazendo-a à superfície. Voltara a si, chocada, surpreendida. Viva.
A vaga que a submerge agora não a deixará voltar à tona.
A sorte está contra os Lanfredi, pensa Giulia, como aquele sismo que veio abalar o coração da Itália por várias vezes no mesmo lugar.
O acidente do pai abalou-as com violência.
A morte do atelier será o seu fim.