SARAH

Montreal, Canadá

Há três dias que Sarah não sai da cama.

Ontem, telefonou ao médico e pediu-lhe um atestado para ficar de baixa — pela primeira vez na sua carreira. Não quer voltar ao escritório. Já não suporta aquela hipocrisia, aquele isolamento injusto de que se tornou objeto.

Primeiro, a negação e a incredulidade. Depois, sentiu cólera, uma raiva descontrolada. Seguiu-se o desânimo, um desânimo incomensurável, como uma extensão desértica que não oferece um horizonte, uma fuga.

Sarah sempre foi senhora das suas escolhas, do rumo da sua vida, era uma executive woman, como se diz, literalmente «uma pessoa que goza de uma posição dominante numa empresa ou companhia, que toma decisões e as faz aplicar». Agora, a sua atitude é de passividade. Sente-se traída, como uma mulher repudiada, posta de parte porque não deu o que esperavam dela, porque a julgam inapta, insuficiente, estéril.

Sarah venceu o teto de vidro, mas acabou por esbarrar com o muro invisível que separa o mundo dos saudáveis do mundo dos doentes, dos fracos, dos vulneráveis, ao qual ela agora pertence. Johnson e os seus pares estão a enterrá-la. Lançaram o seu corpo a uma vala e agora cobrem-no com grandes pazadas de sorrisos, com golpes de falsa compaixão. Profissionalmente, está morta. Sabe que sim. Como num pesadelo, assiste impotente ao seu próprio enterro. Bem pode gritar, berrar que está ali, viva, dentro do caixão, que ninguém a escuta. O seu calvário é como um sonho acordado.

Eles mentem, todos eles mentem. Dizem-lhe sê forte, dizem-lhe vais curar-te, dizem estamos do teu lado, mas os seus gestos indicam o contrário. Marginalizaram-na. Como a um objeto estragado, puseram-na de parte.

Ela que sacrificou tudo pelo trabalho é hoje sacrificada no altar da eficácia, da rentabilidade, do desempenho. Ali, é continuar ou morrer. Pois ela que morra à vontade.

O seu plano não funcionou. O seu muro ruiu, dinamitado pela ambição de Inès, a que se juntou a ambição de Curst com a bênção de Johnson. Sarah acreditava que ele a defenderia ou que pelo menos havia de tentar. Johnson abandonou-a sem remorsos. Tirou-lhe a única coisa que a mantinha viva, a única coisa que lhe dava força para se levantar de manhã: o seu eu social, a sua vida profissional, a convicção de ser alguém no mundo, de ter o seu lugar.

O que receava acabou por acontecer: Sarah tornou-se o seu cancro. É o seu tumor personificado. Nela, as pessoas já não veem uma mulher de quarenta anos inteligente, elegante, competente, mas a encarnação da sua doença. Para eles, Sarah já não é uma advogada doente, mas uma doente advogada. A diferença é enorme. O cancro provoca medo. Isola, afasta. Fede a morte. As pessoas preferem desviar-se dele, tapar o nariz.

Intocável, é o que Sarah se tornou. Posta à margem da sociedade.

Portanto, não, não voltará lá, à arena que a condenou. Não a verão cair. Não se prestará ao espetáculo, não servirá de jantar aos leões. Resta-lhe ainda isso: a sua dignidade. O poder de dizer não.

Esta manhã, não tocou no tabuleiro de pequeno-almoço que Ron lhe preparou. Os gémeos vieram dar-lhe um beijo, enfiaram-se na sua cama. Sarah nem reagiu ao contacto dos seus corpinhos quentes e macios. Hannah suplicou-lhe, tentou tudo para a fazer levantar-se. Encorajou-a, ameaçou-a, culpabilizou-a. Nada surtiu efeito. Hannah sabe que encontrará a mãe na mesma posição ao regressar a casa à noite.

Sarah passa os seus dias assim, numa letargia mórbida, num entorpecimento progressivo. Entrega-se à deriva, longe do mundo. Revê mentalmente o filme daquelas últimas semanas, pergunta-se o que poderia ter feito para inverter o rumo dos acontecimentos. Nada, certamente. Tudo se jogou sem ela. Game over. Terminou.

Fingir que está tudo bem, que nada mudou, conservar uma vida normal, seguir o seu caminho, aguentar, fazer de conta — julgou que seria capaz. Tencionava gerir a doença como geria os casos dos seus clientes, com método, aplicação e vontade. Não foi suficiente.

Num sonho semiacordado, imagina a reação dos colegas ao anúncio da sua morte. É um pensamento macabro e, todavia, ela compraz-se nele, como quem escolhe ouvir uma música triste quando se sente infeliz, para alimentar a angústia. Consegue ver as suas expressões chorosas, os seus ares falsamente perturbados. Dirão: o tumor era maligno ou ela sabia que estava condenada. Dirão: era demasiado tarde ou, pior, ela esperou demasiado tempo, tornando-a assim culpada, responsável pela sua sorte. A verdade é bem diferente. O que mata Sarah Cohen, o que a corrói por dentro, não é apenas o tumor que tomou posse do seu corpo e que conduz a dança, uma dança cruel de movimentos imprevisíveis, não, o que a mata é o abandono daqueles que ela considerava como seus pares, naquele escritório para cujo prestígio ela contribuiu. Era a sua razão de existir, o sentido da sua vida, o seu Ikigai, como dizem os japoneses: sem isso, Sarah já não existe. É um ser oco, desprovido da sua substância, um corpo débil e doente.

Espanta-se com a sua credulidade. Se receava que a sua doença desestabilizasse o escritório, depara-se agora com uma verdade mais cruel: passam muito bem sem ela. O seu lugar de estacionamento será atribuído a outra pessoa, assim como o seu gabinete, até hão de competir para o ocupar. E esse pensamento deixa Sarah de rastos.

Preocupado, o seu médico prescreveu-lhe antidepressivos. Segundo lhe disse, a depressão-é-um-modo-de-reação-frequente-ao-anúncio-de-uma-doença-grave. É-um-fator-de-evolução-desfavorável-para-o-cancro. Tem-de-se-recompor. Pobre idiota, pensou Sarah. Não é ela que está doente, é a sociedade inteira que é preciso tratar. Em vez de proteger os mais fracos, em vez de os acompanhar, a sociedade vira-lhes as costas, como acontece àqueles velhos elefantes que a manada deixa para trás, condenando-os a uma morte solitária. Num livro infantil sobre animais, Sarah leu um dia esta frase: «Os carnívoros são úteis à natureza, porque devoram os fracos e os doentes.» A sua filha começou a chorar. Sarah consolou-a, dizendo-lhe que os humanos não obedecem à mesma lei. Enganava-se. Julgava estar do lado bom da barreira, num mundo civilizado. Enganava-se.

Podem receitar-lhe comprimidos, tantos quantos queiram, que não mudarão grande coisa. Haverá sempre pessoas como Johnson e Curst para voltarem a pôr-lhe a cabeça debaixo de água.

Bando de estupores.

As crianças já saíram, a casa voltou a ficar silenciosa. Sarah levanta-se. Caminhar até à casa de banho, hoje não será capaz de mais. No espelho, a sua pele está pálida como uma folha de papel, tão fina que a luz parece atravessá-la. As suas costelas estão salientes, as pernas parecem paus sujeitos a quebrar-se ao mínimo passo em falso, como fósforos. Antes, as suas pernas eram elegantes, as suas nádegas moldadas ficavam bem sob os fatos de bom corte, o seu decote era uma arma de sedução comprovada. Era um facto: Sarah agradava aos homens. Poucos lhe resistiam. Teve aventuras, histórias, e até dois amores — os seus dois maridos, sobretudo o primeiro, que ela amou tanto. Quem a acharia bela hoje, com o rosto macilento e o corpo magro, dentro daquele fato de treino largueirão como o lençol de um fantasma? A doença fez o seu trabalho de sapa, toda a roupa lhe fica demasiado grande, em breve terá de usar a da sua filha — roupa para doze anos, um tamanho de criança. Que chama poderia acender assim? Aos olhos de quem? Neste momento, Sarah pensa que daria qualquer coisa para que alguém a abraçasse. Para se sentir uma mulher por alguns instantes, uma mulher nos braços de um homem. Como seria agradável.

Um seio a menos — a princípio, não quis reconhecer a tristeza que sentia, o desgosto. Como sempre fez, ignorou a coisa numa tentativa um pouco vã de a manter à distância, como se a colocasse do outro lado de uma tela. Isso não é nada, repetiu a si própria, a cirurgia plástica faz milagres. Ainda assim, a palavra afigurou-se-lhe bem feia: ablação, uma palavra que rima com punição, agressão, mutilação, amputação, demolição. Recuperação, também, talvez, se tiver sorte…? Quem lhe poderia prometer tal coisa? Quando soube da sua doença, Hannah ficou com uma expressão muito triste. Refletiu um pouco e depois disse-lhe: Tu és uma amazona, mamã. Sarah sorriu. Algum tempo antes, a filha redigira uma composição sobre aquele tema, que ela própria corrigira. Sarah ainda se recorda:

«Amazona: vem do grego mazos, «seio», precedido do a, «privado de». Aquelas mulheres da Antiguidade cortavam o seio direito para poderem atirar melhor com o arco. Eram um povo de guerreiras, de combatentes tão temidas como respeitadas, que se uniam aos homens das povoações vizinhas para se reproduzirem, mas que criavam os seus filhos sozinhas. Empregavam homens para assegurarem as tarefas domésticas. Travavam numerosas guerras, das quais saíam muitas vezes vitoriosas.»

Esta guerra, infelizmente, Sarah não está certa de vencer. O seu corpo, que durante anos contrariou, negligenciou, que às vezes maltratou — não há tempo para comer, não há tempo para dormir —, tem hoje a sua vingança. Lembra-lhe cruelmente que existe. Sarah não é mais do que uma sombra, um sucedâneo de si própria, um pálido reflexo daquilo que foi, um reflexo que o espelho lhe devolve sem piedade.

O seu cabelo é o que mais a desola. Está a perdê-lo, madeixa a madeixa. O oncologista prevenira-a, oráculo tenebroso: à segunda sessão de quimioterapia, começará a cair. Sarah encontrou esta manhã dezenas de fios, pequenas vítimas, na sua almofada. Este acontecimento marca-a mais do que qualquer outro. A alopecia é a encarnação da doença. Uma mulher calva é uma mulher doente, pouco importa que tenha uma camisola magnífica, saltos altos, uma mala da última moda, ninguém olhará para nada disso, é como se não houvesse mais nada, a sua cabeça nua é uma confissão, uma mágoa. Um homem de cabeça rapada pode ser sexy, uma mulher calva será sempre uma mulher doente, pensa Sarah.

O cancro acabará por lhe tirar tudo: o emprego, a aparência, a feminilidade.

Sarah lembra-se da mãe, vencida pela mesma doença. Diz para consigo que mais vale voltar para a cama e deitar-se em silêncio, juntar-se a ela debaixo da terra, partilhar do seu descanso eterno. É um pensamento lúgubre, mas estranhamente reconfortante. Às vezes é bom pensar que tudo tem um fim, que o maior dos tormentos pode acabar já amanhã.

Quando pensa na mãe, é a sua elegância que lhe vem à mente. Mesmo enfraquecida pela doença, ela nunca saía de casa sem estar maquilhada, penteada, com as unhas arranjadas. As unhas eram um pormenor importante, dizia ela muitas vezes: devemos cuidar sempre das nossas mãos. Para muitas, é algo sem interesse, uma futilidade, mas para ela era um sinal, um gesto que significava: ainda me dou ao trabalho de cuidar de mim. Sou uma mulher ativa, assoberbada, tenho responsabilidades, três filhos, (um cancro), o dia a dia devora-me, mas ainda não desisti, não desapareci, continuo aqui, feminina e com a minha aparência cuidada, inteira, vejam as extremidades dos meus dedos, estou aqui.

E ali está Sarah. Diante do espelho, olha as suas unhas estragadas, o cabelo ralo.

Sente então algo vibrar no mais fundo de si, como se uma ínfima parte do seu ser se recusasse a deixar-se condenar. Não, não vai desaparecer. Não vai desistir.

Uma amazona, é o que ela é. Uma guerreira, uma combatente. Uma amazona não se entrega assim. Luta até ao último fôlego. Nunca baixa os braços.

Tem de voltar ao combate, retomar a luta. Em nome da sua mãe, em nome da sua filha, e dos seus filhos, que precisam de si. Em nome de todas as guerras que já travou. Tem de continuar. Não vai estender-se na cama, não vai entregar-se a essa pequena morte que lhe estende os braços. Não vai deixar-se amortalhar. Não hoje.

Veste-se rapidamente. Para esconder o cabelo ralo, vai buscar um gorro ao armário — é um gorro de criança que ali ficou esquecido, com o desenho de um super-herói. Não importa, é quanto basta para a aquecer.

Sai de casa. Lá fora, a neve cai. Sarah vestiu um casaco, com três camisolas por baixo. Assim vestida, parece muito pequena, como uma ovelha escocesa curvada sob o peso da sua lã emaranhada.

Sarah sai para a rua. É hoje, está decidida.

Sabe exatamente onde ir.