GIULIA
Palermo, Sicília
«Eles não sabiam que era impossível, por isso fizeram-no.»
Giulia recorda-se desta frase de Mark Twain, que leu um dia, em criança, e lhe agradou. Pensa nela hoje, enquanto aguarda no asfalto do aeroporto Falcone-Borsellino. Sente-se um pouco emocionada ao esperar aquele avião que vai mudar as suas vidas. Vem de um país distante com o primeiro carregamento de cabelos.
O papa não acordou. Morreu naquele dia no hospital, quando Giulia estava junto dele, após aquele sonho estranho que ela nunca esquecerá. Antes de partir, ele apertou-lhe a mão, como para lhe dizer adeus. Como para lhe dizer: segue em frente. Passou-lhe o testemunho antes de a deixar. Giulia sabe que foi assim. Enquanto os médicos tentavam reanimá-lo, ela prometeu-lhe que salvaria o atelier. É um segredo que ficou entre os dois.
Giulia fez questão de organizar a cerimónia religiosa na capela de que o pai tanto gostava. A mãe protestou — é demasiado pequena, dizia ela, para que toda a gente fique sentada. Pietro tinha tantos amigos, era tão popular, e estaria presente toda a sua família, vinda dos quatro cantos da Sicília, e ainda as suas funcionárias… Pouco importa, disse Giulia, os que o amavam ficarão de pé. A mãe acabou por ceder.
Nos últimos tempos, não reconhece a filha. Giulia, habitualmente tão sensata, tão ponderada, tão dócil, mostra-se estranhamente obstinada. Uma determinação nova tomou conta dela. Recusou-se a desistir da sua luta para salvar o atelier. Para saírem do impasse, propôs uma votação que incluísse as operárias. É uma prática a que já se recorreu noutros negócios ameaçados. Além disso, é legítimo perguntar-lhes o que pensam. É também o futuro delas que está em jogo. A mãe concordou. As irmãs aceitaram.
Para garantir que as mais jovens não fossem influenciadas pelas mais velhas, ficou decidido que o voto seria secreto. As operárias foram convidadas a escolher entre uma nova orientação do trabalho, que implicaria a importação de cabelos da Índia, ou o encerramento do atelier e um despedimento negociado. Claro que a primeira hipótese apresentava riscos, incertezas que Giulia não lhes escondeu.
A votação realizou-se na sala grande do atelier. A mamma estava presente, assim como Francesca e Adela. Foi Giulia que procedeu à contagem dos votos. Com as mãos trémulas, abriu cada um dos papéis lançados para o chapéu do papa — foi ela que teve a ideia, como uma última homenagem ao seu pai. Assim, é um pouco como se ele hoje estivesse connosco, disse.
Por sete votos contra três, a maioria decidiu. Giulia lembrar-se-á para sempre daquele momento. Foi-lhe difícil esconder a sua alegria.
Por intermédio de Kamal, estabeleceu contacto com um homem instalado em Chennai. Esse homem, que fez estudos de comércio na universidade, percorre o país e os seus templos à procura de cabelos para comprar. É um parceiro duro, mas Giulia revela-se espantosamente tenaz no jogo da negociação. Mia cara, parece que fizeste isto toda a vida!, diz a Nonna, divertida.
Com apenas vinte anos, Giulia chefia o atelier. É hoje a empresária mais jovem do bairro. Instalou-se no escritório do pai. Olha muitas vezes a fotografia dele, na parede, e as fotografias dos que o antecederam. Giulia ainda não se atreveu a colocar ali a sua. Cada coisa a seu tempo.
Quando se sente triste, vai lá para cima, para o terraço, onde fica o laboratorio. Senta-se de frente para o mar e pensa no pai, no que ele teria dito, no que ele teria feito. Por estranho que pareça, não se sente sozinha. O papa está ao seu lado.
Hoje, Kamal acompanhou-a. Fez questão de ir com ela ao aeroporto. Nos últimos tempos, têm partilhado mais do que horas de almoço. Ele revelou-se inabalável no apoio que lhe dá, acolheu de boa vontade todas as suas ideias, mostrou-se entusiástico, inventivo, empreendedor. Era seu amante, tornou-se seu cúmplice e seu confidente.
O avião aparece finalmente. Ao ver aquele ponto que vai crescendo no céu, Giulia pensa que o seu futuro está ali, inteiro, no porão daquele avião de mercadorias de ventre arqueado. Pega na mão de Kamal. Parece-lhe, subitamente, que já não são dois seres independentes com trajetórias casuais, errando nos meandros da existência, mas um homem e uma mulher que se tornaram as amarras um do outro. Pouco importa o que dirá a mamma, pensa Giulia, a família e a gente do bairro. Hoje, ela sente-se mulher ao lado daquele homem que a revelou. Aquela mão, Giulia não a vai largar. Nos anos que hão de vir, segurá-la-á muitas vezes, na rua, no parque, na maternidade, durante o sono, quando sentir prazer, quando chorar, quando trouxer ao mundo os filhos que terão juntos. Aquela mão, vai segurá-la por muito tempo.
O avião aterra, depois imobiliza-se. Os contentores são rapidamente descarregados, encaminhados para o centro de triagem, onde os funcionários do armazém se atarefam.
No entreposto, Giulia assina um documento a indicar que recebeu a mercadoria. A encomenda está ali, pouco maior do que uma mala. Com uma mão trémula, pega no x-ato para esventrar a caixa. Os primeiros cabelos aparecem. Giulia pega numa madeixa, delicadamente: cabelos longos, muito longos, pretos como azeviche. Cabelos de mulheres, certamente, incrivelmente sedosos e espessos. Mesmo ao lado, uma outra madeixa: um pouco menos longa, macia como seda ou veludo — cabelos de criança, ao que parece. Foram comprados no mês anterior no Templo de Tirupati, disse-lhe o seu contacto, o lugar de culto mais visitado do mundo entre os de todas as religiões, à frente de Meca e do Vaticano — este pormenor marcou Giulia. Dá por si a pensar em todos aqueles homens e mulheres que não conhece e com quem nunca se cruzará, que ofereceram os seus cabelos. Essa oferenda é um presente de Deus, diz Giulia para consigo. Queria abraçá-los, para lhes agradecer. Eles nunca saberão para onde foram os seus cabelos, que périplo incrível realizaram, que odisseia. No entanto, a sua viagem ainda mal começou. Alguém, em alguma parte do mundo, usará um dia aquelas madeixas que as suas operárias vão desembaraçar, lavar e tratar. Essa pessoa nem suspeitará das dificuldades que foi preciso vencer. Usará aqueles cabelos e talvez se orgulhe deles, como Giulia hoje se orgulha. Ao pensar nisso, sorri.
Com a mão de Kamal na sua, compreende que o seu lugar é aquele, que o encontrou finalmente. O atelier do pai foi salvo. Ele pode descansar em paz. Um dia, os filhos de Giulia continuarão a sua linhagem. Ela há de ensinar-lhes o ofício, há de levá-los pelos caminhos que outrora percorria com o seu pai na Vespa.
Às vezes, o sonho volta. Ela já não tem nove anos. A Vespa do pai desapareceu para sempre, mas Giulia sabe agora que o futuro é feito de promessas.
E que lhe pertence, de agora em diante.