− Olhe, Patito – disse Felipe Díaz –, o que acontece… – E se não me engana a lembrança da sexta-feira passada, depois de tanta coisa, ele assumiu uma expressão maliciosa, de euforia mesmo, ou talvez de perplexidade, e deixou a frase inicial em suspenso, como para sublinhar a importância do que vinha a seguir. Acomodou-se em sua cadeira, passou os olhos ébrios, vermelhos, empapuçados, pela esquina buliçosa, ponto de encontro de diversas ruas e bulevares, deteve-se, em indulgência, com desdém de velho parisiense, nos turistas de calças curtas e tênis que atravessavam disciplinadamente debaixo dos semáforos com a luz verde e se dispôs a me contar a verdade verdadeira. Como dizemos na minha terra, no Norte Grande e no Sul Profundo: la firme!
Embora tivesse o rosto visivelmente deteriorado pelos excessos alcoólicos e de toda ordem, sem excluir as ocasionais cheiradas de cocaína – e, talvez nos últimos tempos, não tão ocasionais assim –, Felipe Díaz ainda conservava sua bela estampa, realçada por alguns detalhes de apuro no vestir. Era uma espécie humana com a qual eu havia me encontrado em uma ou outra ocasião: o intelectual latino-americano que passou pela religião comunista, como era de praxe, mas que vinha do que por lá se chama, e, não seja por isso, por aqui também, de uma “boa família”, e que nunca renunciou nem quis renunciar a seu estilo, suas maneiras, comportamentos, nem sequer, no fundo, à arrogância dos filhos de boas famílias.
Tinha sido casado um dia, em sua remota juventude, com uma chilena da mesma classe social, uma dessas patricinhas de origem latifundiária e que apesar da pretensa elegância, de suas blusas de seda, de seus relógios Cartier, falam como colchaguense. Com a caipira de Colchagua, que pertencia por direito próprio, como me contou uma vez, à família espiritual da Huasa Contenta da mitologia crioula, tinha tido dois filhos, dos quais pouco falava, filhos que davam sinal de vida muito de vez em quando. Em um belo dia conseguiu se divorciar, sabe-se lá como, já que a caipira era recatada e religiosa, para voltar a se casar em Paris com uma francesa que chegamos a conhecer, Silvia e eu, e que era beata de outra igreja na época, e não sei se ainda agora: a muito poderosa Igreja do Partido. Nos últimos vinte e tantos anos tinha ficado sozinho, e conheciam-se algumas de suas sucessivas conquistas femininas, de uma rapidez às vezes fulgurante, não raro extraordinárias pela beleza ou por outros motivos, conquistas que nos assombravam, que nos deixavam, a Silvia, a mim, a nossos amigos, de boca aberta; que fascinavam Silvia, que a seduziam?, que caíam sobre nossas tertúlias, saturadas de tolices ideológicas, de piadas repetitivas, como meteoritos trazendo notícias e, mais que notícias, resplendores, ecos, reflexos de outros planetas, de planetas tentadores, alheios, vedados a nós. Dizia-se que a censura moral da Comissão de Quadros, exercida com o rigor que todos conhecemos de algum modo, e com seu difuso e venenoso efeito multiplicador, tinha sido a causa principal de seu afastamento do Partido, e que suas críticas cada dia mais explícitas, mais indiscretas, mais reiteradas, suas elaborações intelectuais excessivamente heréticas, sua discordância cada vez mais apaixonada do Bloco Soviético, muito antes da queda do Muro, e inclusive a respeito do castrismo, da Revolução nova, intocável, pura, de acordo com a fraseologia da moda, não eram mais que uma racionalização posterior dessa ruptura, que assumia as formas, ou pelo menos as funções, de uma espécie de pecado original. De minha parte, nunca estive muito seguro dessa explicação de sua saída do Partido. Sempre senti que era uma explicação para consumo interno, que de certo modo tínhamos podido chamar de piedosa. Piedosa para nós, para nossas ilusões! Apesar de sua frivolidade evidente, nunca dissimulada, Felipe Díaz era um devorador de jornais, de livros, de documentos impressos. Tinha uma inteligência penetrante, bem exercitada, uma capacidade de assimilação digna de uma esponja, uma memória de elefante, e me consta que no começo da década de 1960, e mesmo antes, nos anos anteriores ao XX Congresso de PCUS e ao informe secreto de Nikita Kruchev (não se pode evitar, nem mesmo agora, a linguagem de iniciados, o jargão), tinha começado a duvidar de nossa “causa”. Era o único de nós que sempre, desde os primeiros anos, mostrou simpatias mais matizadas, salpicadas de observações jocosas, francamente desrespeitosas, por Fidel Castro, a quem costumava mencionar, para nosso escândalo, como “o barbeta”, menção acompanhada, quando havia tomado seus primeiros copos, de uma imitação muito cômica da maneira de falar dos cubanos, e desconfio que todas as suas dúvidas culminaram, ou vieram à tona, adquiriram licença de circulação, por assim dizer, com a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. A partir de então, tive a impressão estranha, inteiramente pessoal, mesclada com sentimentos contraditórios, irritação, exasperação, ciúmes confusos, de que ele afogava os lamentos pela fé política perdida nos braços, ou na vagina, das mulheres; ou que ambos os extremos – o ceticismo político e “a carne que tenta com seus frescos cachos”, para citar nosso Rubén Darío, que talvez inventasse esses artefatos poéticos debaixo desses mesmos ares, perto do mesmo ângulo metafísico da Rue Delambre e do Boulevard du Montparnasse – reforçavam-se mutuamente. Felipe Díaz, claro está, nunca havia precisado de pretextos nem de conflitos ideológicos maiores para empreender suas aventuras, mas nos dias intensos, entre augurais e terminais da primavera e verão do ano da graça de 1968, entre o maio de Paris e o agosto de Praga, rompeu em definitivo seu casamento com a francesa, sua segunda mulher, que naquela época, anos de ultraesquerdismo, de gauchismo, de crítica da esquerda ao estalinismo, era ainda uma estalinista depois de Stálin, uma estalinista por vocação, que, se não tivesse existido essa doutrina, a teria inventado, como muitas outras pessoas que conheço; rompeu, então, com a francesa e mudou de casa antes do fim dos distúrbios, em companhia, se não me engano, de uma exaltada e transitória estudante de arquitetura; livrou-se, em caráter também definitivo e que não podia ser mais paralelo e coerente, das amarras do Partido, e lançou-se numa espécie de donjuanismo desenfreado, uma farra permanente, acompanhada, nos intervalos livres e lúcidos, de panfletos anticomunistas bem escritos (já então tínhamos de admitir isso), de dois romances inesquecíveis no gênero fantástico, gênero que não lhe caía muito bem, filhos bastardos da narrativa de Borges e de Julio Cortázar, e de uma obra de teatro tendenciosa e francamente desastrosa, cuja estreia serviu para que seus ex-amigos comunistas (menos Silvia e eu) afiassem as unhas e até os dentes. Logo vimos que havia se formado uma matilha de dentes à mostra e fizemos questão de tomar sua defesa, Silvia com mais convicção e mais energia do que eu (agora o comprovo, não tenho alternativa senão comprovar), mas a verdade era que Felipe Díaz, com a ideia disparatada, no fundo pretensiosa demais, de que podia escrever uma obra de teatro em um fim de semana, não nos facilitara a tarefa. Assistimos, de bom grado, de nossas poltronas na primeira fila, ao fracasso e à imediata e consequente carnificina, Silvia com visível tristeza, eu com sentimentos mistos, tristeza, mas também revanche, e uma dose de má vontade nada pequena.
Muito bem, para ir ao cerne da questão: o que ele me contou naquela sexta-feira, no final da manhã, no terraço do Dôme, ao som dos cubos de gelo de seu terceiro uísque, foi que tinha recebido a visita de uma mexicana de origem japonesa, que mistura!, mas o resultado da feliz combinação era digno de se ver, uma perfeita maravilha!, mexicano-japonesa, que tinha conhecido numa recente viagem à Suíça, onde ela morava, perto de Basileia, com um jovem suíço, boa-pinta, bem-educado e apresentável, mas sem graça, sem sal nem açúcar e, ainda por cima, professor de teoria literária.
− E ela?
Ela era filósofa, nada mais, nada menos, formada em filosofia em algum lugar tão improvável como a Universidade de Tabasco ou de Jalapa, com pós-graduação na Carolina do Norte e aspirante a romancista; mulher inteligente, além do mais, e encantadora, dotada de uma cintura de vespa, pele olivácea, perfeita, e os olhos mais insinuantes e os seios mais lindos que ele tinha visto na vida, e não tinha visto poucos, garantiu (sem a menor necessidade de garantir), em matéria de seios e de outras e variadas matérias.
− Qual é o problema então? – perguntei, rindo, porque Felipe Díaz era, não havia como negar, um sem-vergonha simpático, uma espécie de pícaro sentimental, bom amigo por vocação, ainda que talvez traidor por instinto, e eu sempre acabava rindo às gargalhadas de suas aventuras, a ponto de Silvia, que costumava mostrar lá do seu canto, debaixo de sua lâmpada de leitura, uma língua de lixa, dizer que éramos, bem no fundo, uma dupla de veados, que nos distraíamos falando de mulheres mas que o único verdadeiro tesão era o nosso, que nos dominava quando estávamos juntos. Estranha teoria, a de Silvia, que, de repente, quando menos se espera, introduz no clima um elemento frio, duro, uma gota de veneno destilado. Conheço Silvia tão bem e às vezes, mesmo assim, descubro que não a conheço nada, que vivi cerca de trinta anos ao lado de uma perfeita desconhecida.
O problema de Felipe Díaz, desencadeado pela visita da filósofa mexicano-japonesa que talvez tivesse feito melhor se ficasse na Suíça com seu jovem semiótico, seu teórico literário, não deixava de ser grave. A empreendedora filósofa tinha se instalado em Paris na casa de uma amiga brasileira, pintora além do mais e casada com um escultor, no Boulevard Edgar Quinet, ali perto, em frente aos portões do cemitério de Montparnasse, e só chegava a visitar Felipe à tarde. Isso há oito dias. Oito dias de ilusões perdidas, de verdadeiro inferno! Por quê? Por uma razão transcendental. Porque o Casanova, o Don Juan Tenorio dos chilenos e latino-americanos de Paris, o mulherengo desaforado, o sedutor infalível, capaz de fazer as conquistas mais fulgurantes em duas horas, de conhecer uma mulher à tarde, bebendo um cálice de qualquer cor no Rose Bud, e de partir à noite com ela, num carro esporte provavelmente quebrado, para Sevilha, nada menos que Sevilha, e em homenagem a Georges Bataille e sua História do olho, não tivera nem o começo de uma ereção durante as oito tardes, noites ou madrugadas seguidas.
Eu, com um prazer perverso que lutava para não deixar aflorar num largo e maligno sorriso, me limitei a apontar com o indicador o copo de uísque, pensando que meu papel, minha condição de consciência dos duros fatos biológicos e psicológicos, das sombrias verdades da máquina humana, não deixava de ser exercido com uma voluptuosidade secreta, de inquisidor ou de comissário, a dissimulada, repulsiva voluptuosidade de todos os inquisidores e de todos os comissários desta Terra!
− Você já sabe!
Claro que ele sabia! E até o sétimo dia tinha tentado trocar a venenosa garrafa de Ballantine’s pela sedutora filósofa, convencido de que preferia a filósofa, mas no oitavo, isto é, na véspera do nosso encontro, depois de sonhar adormecido e até desperto com formas insinuantes: garrafas bojudas, verticais, redondas, de cerâmica, com rótulos verdes e letras douradas, com silhuetas de castelos da Escócia, com fitas vermelhas ou miniaturas emblemáticas, nas alturas de balcões que flutuavam por espaços siderais, reproduzidas por espelhos, entre luzes e sombras, veladas pela fumaça, silenciosas no meio dos gritos, das gargalhadas destemperadas, dos golpes de punhos nas mesas e do despertar junto à cintura de vespa, o púbis delicado e os seios perfeitos, perdido na estranha experiência de estar nu com ela em sua cama tão conhecida, tão frequentada e de falar de Platão, mas não depois de ter feito amor, e sim antes, e em um antes que ia lhe parecendo infinito, chegou à conclusão, depois de tudo isso, e de repente, numa rajada intuitiva, de que preferia, em seu foro interno, no núcleo mais autêntico de si mesmo, “o que você quer que eu faça, Patito, assim é a vida, assim são as coisas!”, a garrafa, que era confiável e cúmplice, e que não lhe pedia que prestasse contas de nada.
Eu ri, porque ele parecia confuso, como se sua conclusão tivesse tomado forma apesar dele mesmo, inclusive contra ele mesmo, e implicara uma revisão amarga, um desencanto retrospectivo. Porque ele tinha de admitir, na solenidade desse dia, dessa hora, de seu segundo Ballantine’s on the rocks, que a garrafa, com todos os seus demônios, com seus geniozinhos presos, causava-lhe menos ansiedades e perplexidades; que o silêncio dela, sublinhado por sua forma redonda, por sua imobilidade enigmática, podia ser mais interessante que as palavras da mexicano-japonesa ou que qualquer outra coisa e que era, definitivamente, mais propícia à tranquilidade de seu ânimo, para sua distância em relação ao mundo, para sua filosófica resignação, que a própria filósofa.
− Você disse isso a ela?
− Disse. Duvidei, refleti, meditei, e por fim disse a ela. E sabe com que me saiu ela, que até esse oitavo dia havia sido tão prudente, tão delicada, tão discreta, enfiando-se na minha cama e saindo sem a menor queixa, como se não tivesse acontecido nada, ou melhor, para ser mais preciso, como se tivesse acontecido alguma coisa?
Como sua amiga do Boulevard Edgar Quinet se ausentava todo o fim de semana, e como o professor de teoria literária era um caso perdido, e, por outro lado, entre ela e um computador tinha escolhido o computador, ela ficaria com ele, com Felipe, a noite de sexta e de sábado, e na manhã de sábado, já passado o efeito do álcool, propunha que fizessem uma nova tentativa. “Se te interessa”, acrescentou, e Felipe, de fato alarmado, teve a impressão de que ela não estava brincando, que estava falando com uma seriedade helvética ou germânica que tinha contraído do professor, seriedade do coração relojoeiro e banqueiro da Europa, mesclada, possivelmente, com o pragmatismo do Japão contemporâneo, “se te interessa, posso trazer lingerie sensual, apetrechos especiais, couro com tachas de aço, o que você quiser, meu amor, já que a ereção, que para mim não passa de um detalhe, te preocupa tanto…”
Voltei a rir de tudo o que ele contava. A cara de angústia de Felipe era um dos melhores espetáculos que pude presenciar nos últimos tempos: todo um poema humorístico e patético.
− Ânimo! – soprei para ele, batendo em suas costas. – E, como dizem meus amigos valencianos, força en el canut! Amanhã, no fim de semana, passo aqui de novo e, se você estiver com vontade, desce da sua toca para me contar…
Tinha certeza de que ele me contaria todo o episódio, sem ocultar detalhes que poderiam ser humilhantes, inclusive com um certo gosto masoquista pela autodepreciação, porque sentia, em seu foro mais íntimo, que sua pessoa, sua incomparável pessoa, estava acima de suas próprias fraquezas e até de suas próprias vilezas. Além disso, me disse que agia com a filósofa já pensando em me contar, armando talvez o começo de uma ou outra frase, rindo por dentro. Porque era um ator decidido e consumado, e a eficácia de sua atuação era infalível. Isso eu constatava, pelo menos, e, tenho de reconhecer, constatava com um pouco de raiva, porque nessa eficácia, eu sentia, havia um não sei quê de excepcional, de abusivo, de injusto com uma pessoa. Por seu lado, a desprevenida filósofa não desconfiaria que, na cena, junto da cama, atrás de uma cortina, haveria um espectador oculto, um terceiro, e um terceiro que não só contemplaria a cena por ela e por Felipe como também por ele e por outra. Assim é, ou assim era, e assim somos. Silvia, eu entendi (e compreendo agora com muito mais razão), conhecia nós dois melhor do que ninguém.
− Olhe o que acontece – eu disse a Silvia, lançando uma sonda cautelosa, tateando o terreno, ao abrir a porta do apartamento e divisar suas pernas cruzadas, as batatas da perna ainda juvenis, os sapatos bonitos – com nosso amigo Felipe.
− O que acontece?
Estava afundada em sua poltrona, exausta, com um pano de limpeza na mão, num desses momentos da jornada em que era capaz de sentir saudades, para minha inquietude, das comodidades da vida em Iquique. Silvia tinha o costume de rir das coisas de Felipe, de falar mal dele, mas quando ele chegava a um lugar ela se animava, se alegrava, mudava de comportamento de forma visível. Os outros talvez não percebessem, mas eu via muito bem, mais que bem, e me parecia que a prova era perturbadora, escandalosa. Silvia!, eu exclamava por dentro, e observava com o rabo dos olhos, mal dissimulando, com emoções que um bom leitor teria podido ler na minha cara, o entusiasmo com que ela beijava o rosto dele ao cumprimentá-lo, repetidas vezes, terminando por beijá-lo perto da boca. Perto demais, entusiasmo demais, repisava eu, mas não dizia uma única palavra e pronto, porque eu sou, ou era, naquele tempo, uma pessoa de excelente saúde (tenho medo de que a saúde esteja se transformando para mim em enfermidade), pensava em qualquer outra coisa.