O TREM deixou Moscou de manhã bem cedo. Horst já não tinha forças para se levantar. O homem a seu lado estava em estado pior. Eles haviam conversado na noite anterior, quando o sujeito contou da esposa e dos dois filhos. Era um rapaz ainda, devia ter poucos anos a mais que Horst. E Horst sabia que ele não iria resistir. Só no seu vagão, ao longo da viagem, vira três prisioneiros naquele estado. Os três morreram. Haviam morrido de fome e sede, supostamente. Mas sabe-se lá o que mais poderia ser. Horst tentava escrever sobre o sujeito, enquanto o trem deixava a cidade para trás. Percebeu que isso lhe exigia um esforço grande demais. Guardou o diário.

O destino ainda era uma incógnita, e restava pouca força até para se pensar nele. Não tinham visto água ou comida nas últimas vinte e quatro horas. O trem seguia rápido, adentrando a Rússia. Viajaram todo o dia, parando várias vezes, e também boa parte da noite. No início da manhã seguinte, Horst dormia, o trem singrava lentamente à margem de um rio, o leito brincando de esconde-esconde por entre as árvores e campos salpicados de cabanas de madeira escura. Foi acordar com os freios.

Haviam chegado a uma cidade. Uma placa pendente na parede da estação dizia o nome do lugar, mas estava em cirílico e não permitia dedução. Não estavam muito distantes de Moscou, pois o trem viajara rápido no início, mas perdera o ritmo logo depois, parando muito, devido aos muitos pontos danificados da ferrovia. Fazia calor naquela manhã. Logo um guarda passou avisando que deveriam aguardar, pois aquele era o destino deles. Alguém perguntou onde estavam.

– Vladimir.

Horst nunca tinha ouvido falar de Vladimir. Não fazia parte das histórias que os soldados mais velhos no front lhe contaram. Escreveu o nome no diário e começou a se preocupar com a falta de papel. Andava tão apegado àquelas anotações que sentia ter feito um amigo. Agora sentia necessidade de escrever. Escrevera nos últimos onze dias seguidos. Pouco, para não ficar sem papel, mas diariamente. Para que fazia aquilo? Não tinha ideia. Será que alguém um dia iria encontrar esse caderninho? Será que iriam sobreviver, os dois? Parecia impossível prever qualquer coisa.

Passaram-se várias horas até que chegou a ordem de desembarcar. Os homens saltaram do vagão e fizeram fila como ordenado. Cruzaram o pequeno prédio sujo da estação e foram desaguar num descampado de terra batida. O rio, o trem e a estação estavam logo atrás de Horst, que parou por um instante para olhar em volta. Bem à sua frente, não mais que cinquenta metros adiante, havia uma colina; as árvores pequenas mas cheias acompanhando a subida, árvores maiores lá em cima, e, atrás delas, surgiam, além dos muros de pedra branca que acompanhavam a ribanceira, duas grandes torres. Uma, mais alta, tinha uma enorme cúpula dourada; a outra, menor, era mais aguda e escura; sobre ambas, uma cruz. À esquerda delas, também no alto, mas meio encoberta por árvores altas e verdes, outra torre. Solitária. Era oval e dourada, carregando também sua cruz. Reparando bem, outras duas torres menores, mais distantes, insinuavam-se em um ponto equidistante e profundo, entre as outras visíveis. No alto daquela colina estava Vladimir. À direita da estação só havia mato. Atrás, o Rio Kliazma cobrejando com suas águas calmas, acompanhadas pelos trilhos do trem.

Subiram pela lateral da colina e foram dar perto do grande muro de pedra branca que se via lá de baixo. Entraram por um caminho rente à catedral e chegaram a um terreno aos fundos, que pareceu ser o destino. Não aparentava ser exatamente um campo de prisioneiros. Era um clarão ao redor de algumas bétulas bastante altas onde havia barracas de madeira improvisadas para os prisioneiros se recolherem. Cheirava a esterco, e Horst logo entenderia por quê. O relincho de um cavalo chamou sua atenção. Ao lado, havia um estábulo desativado, mas que ainda continha alguns animais.

Desembarcaram com Horst outros trezentos homens. Foram alimentados com sopa e pão, como durante a viagem, e logo anoiteceu. Passaram ali a primeira noite. Uma noite de céu claro, com sonhos ininterrompidos, torres o vigiando do alto, cheiro de bosta de cavalo e barulho dos animais pela manhã. Horst acordou muito cedo, com a cabeça parecendo mais em ordem, e ele pôde notar que aquele amontoado de homens tinha um cheiro tão forte quanto o que vinha do estábulo. Tentou adivinhar em que momento surgiriam os russos, dando ordens que eles não entendiam, apontando as metralhadoras para cada um que vacilasse. Logo eles apareceram, trazendo os latões com a sopa.

 

Os prisioneiros foram novamente despiolhados naquela manhã. Desta vez foi um alemão, um prisioneiro que havia chegado a Vladimir bem antes do novo grupo, quem fez o serviço. Até ele dar conta de todos os homens já era tarde avançada. Os prisioneiros aguardavam uma nova refeição, mas antes disso foram passados em revista e colocados em forma. Marcharam dali para fora da cidade, acompanhados por muitos guardas, uma longa caminhada, o Sol se pondo, a estrada vazia, até chegarem a outro campo bem maior que o primeiro.

O novo campo ficava no terreno de uma fábrica de tratores. Os homens foram agrupados para nova inspeção, em busca de quaisquer objetos, piolhos, feridas. Horst guardou o diário dentro de uma das botas. Se na primeira vez que fora revistado pelos russos havia ficado sem o relógio, desta vez Horst perdeu algo mais fundamental. Tomaram-lhe os óculos. Despacharam-no para o alojamento, onde se esticou como havia tempo não fazia. Escolheu a cama de baixo de um dos beliches perto da entrada e só quando se deitou percebeu que não havia colchão.

O alojamento era muito grande e meio improvisado, todo feito de madeira. O chão estava coberto com a terra levada pelas botas, e os beliches rangiam enquanto os homens se acomodavam; tinham tábuas claras e frágeis, três andares e, em alguns, sacos com palha servindo de colchão. As camas ao fundo já estavam ocupadas. Alguns homens dormiam, mas espiaram a chegada do grupo. Horst se pôs de pé quando, pouco depois, outros prisioneiros apareceram, homens que já viviam lá e retornavam do trabalho. Os guardas os chamavam de “stalingrados”.

– Nos chamam assim porque quase todos aqui fomos capturados lá – explicou um deles, próximo a Horst.

– E vocês vieram direto para este campo? – perguntou um dos novatos.

– Sim – respondeu um dos stalingrados. – Logo depois do passeio por Moscou.

– Nós também passamos por lá.

– Eu sei disso. Mas nós passeamos por Moscou.

– O que você quer dizer?

– Que nós desfilamos pela cidade – disse outro stalingrado. – Fomos expostos para a população russa durante uma parada militar.

– Éramos milhares de exemplos da força de Stalin – tornou o primeiro. – Os russos o aplaudiam enquanto nos viam em suas mãos.

– Todos vocês?

– Praticamente. E outros sessenta ou setenta mil alemães.

Horst se ajeitou na cama. Seguiu atento ao que os outros conversavam.

– E estão todos nesta fábrica de tratores? – quis saber um dos novatos.

– Não – seguiu um stalingrado. – Há outros campos pela cidade.

– E muitos também não resistiram – interveio outro stalingrado.

– E há campos por toda a Rússia. Por toda a Rússia.

Aqueles prisioneiros tinham sido capturados durante a batalha de Stalingrado, entre o final de 1942 e o início de 1943. Quase todas as histórias que Horst ouvira no front diziam respeito a eles. Ou, ao menos, aos soldados que tiveram melhor sorte que os homens ao fundo do alojamento e não passaram os últimos dois ou três anos naquele lugar chamado Vladimir. Já deitado, Horst ouvia os stalingrados contarem que alguns foram logo enviados para Vladimir, outros tinham passado rapidamente por diferentes campos antes de desembarcar. Falaram de um grande campo em Briansk. Horst havia passado por Briansk, mas não se lembrava de ter visto um grande campo ou de terem embarcado novos prisioneiros. Os homens seguiam falando, embora a conversa parecesse mais longe. Contavam que muitos haviam chegado em péssimo estado – doentes ou alvejados. Voltaram a falar que muitos prisioneiros não haviam resistido à vida no campo de Vladimir. Horst quis se atentar novamente à conversa, mas seguiu deitado. Parecia óbvio que a vida ali não seria fácil. Mas como mais seria a vida em um campo de prisioneiros de guerra?

Mais por cansaço que por conforto, Horst adormeceu.

O domingo foi de folga para todos na fábrica de tratores. O dia seguinte amanheceu chuvoso. Todos foram expulsos da cama logo cedo para receber comida. Formaram fila e foram revistados. Um comissário russo apareceu com um intérprete e entrevistou sem muito interesse todos os novatos. Horst falou de sua nacionalidade brasileira e de sua qualificação como desenhista técnico. O sujeito não pareceu se interessar. Depois, Horst seguiu o grupo até o que chamavam de cozinha. Lá, em uma velha lata de conserva, recebeu a sopa. Deram-lhe também duzentos gramas de um pão preto de centeio. Ele comeu sentado em sua cama, a porta do alojamento aberta, enquanto observava a chuva cair sobre o campo.

Estavam rodeados por cercas de arame farpado. Era estranho olhar para elas e não ver nada surgir no horizonte. Não há montanhas em Vladimir. A fábrica de tratores estava numa parte mais alta do terreno, e tanto o campo quanto a cidade pareciam se encerrar nas cercas. Em vários pontos junto a elas, guaritas se elevavam com vigias lá em cima. Horst achou estranho que nem todos parecessem estar armados, mas não deu muita atenção. Tomou a sopa em goladas e mastigou o pão tanto quanto pôde.

Ninguém da nova leva trabalharia naquele dia, pois o comandante russo queria que se recuperassem da estafa da viagem. Para isso, comida e descanso. Horst voltou para seu beliche sem colchão após devolver a lata de conserva na cozinha e se deitou. Ainda se sentia exausto e ainda estava com fome. Viu quando os stalingrados seguiram para o trabalho.

Horst só se levantou novamente para o almoço. Ainda chovia. Recebeu sopa outra vez, e outro naco de uns duzentos gramas de pão. A comida lhe parecia aceitável, principalmente depois de ter passado fome na viagem. Ouvira, no entanto, um stalingrado dizer que não ficaria assim por muitos dias. Depois de comer quis ir ao banheiro. Não soube como pedir permissão. Usou as mãos. A sentinela russa lhe apontou uma cabana de madeira no caminho da fábrica. Horst fez suas necessidades na pequena vala, acocorado ao tronco que servia de apoio; limpou-se com mato colhido no caminho, jogou um pouco de terra no buraco e saiu. Voltou ao alojamento e tornou a dormir.

Horst foi buscar o jantar certo de que tomaria sopa de novo. Foi servido um líquido branco e cremoso a que chamavam de kasha. Ele provou. Era uma espécie de mingau. Recebeu também cem gramas de pão. Os stalingrados já estavam de volta e também comiam. Já não se mostravam tão amigáveis quanto antes. Circulou o boato de que receberiam tabaco em breve. Parecia uma boa notícia para fechar o dia.

Na manhã seguinte, mais chuva. Novamente, ninguém precisaria trabalhar. A novidade foi a comida. Serviram um peixe salgado na primeira refeição. Horst achou o gosto duvidoso, mas apreciou. Ainda assim, sentia fome o tempo todo. Os stalingrados partiram para o trabalho, e Horst foi com alguns homens andar pelo campo. Além do alojamento havia outras barracas. Uma, logo na entrada, parecia o escritório do comandante. Em outra barraca, um prisioneiro lia em voz alta algo do Freies Deutschland; noticiava que as coisas começavam a voltar ao normal na Alemanha, com os trens e o metrô retomando o funcionamento em Berlim e as pessoas conseguindo se alimentar normalmente. Horst teve dúvidas quanto à veracidade daquilo. Correu também a notícia de que no dia seguinte começariam a trabalhar. Horst achou que seria bom. A chuva havia trazido o frio, e ter ocupação seria oportuno para se esquentar e passar o tempo.

Ele escreveu um pouco durante a noite, como havia feito todos os dias desde que chegara ao campo. Estava preocupado com a falta de papel. Pensava na sua casa. Seria verdade que as coisas lá entravam no eixo? Ele tentava imaginar quando veria novamente seus pais e sua irmã.

“Quando nos veremos novamente? Se veremos”, escreveu.

O dia seguinte não poderia deixar de ser especial. Era 20 de junho. Horst completava 19 anos. Não havia, ele acreditava, motivos para comemorar – embora estar vivo já fosse alguma coisa. Dormiu pensando nisso e acordou como se não tivesse dormido. A chuva se tornou um temporal. Não iriam começar a trabalhar afinal. Cabia a Horst escrever.

“Hoje cedo eu despertei e me parabenizei. Nenhuma porta foi aberta. Nenê não veio até mim pulando. Nenhum beijo da mãe, nenhum aperto de mão do pai. Mas eu espero que esse tempo retorne!

É preciso passar também por tempos ruins na vida, pois assim se aprende a estimar os bons.”

Horst não se preocupou se o papel acabaria.