Cinco

SE, PARA OS PADRÕES DE 1992, CASAR-SE aos 23 anos era cedo, Willy se posicionava na história moderna na mesma medida em que se via como uma americana. Ela devia lealdade à quadra de tênis, cujas linhas definiam uma outra nação, e a cujas leis severas e peculiares ela aderia com o ardor do patriotismo. Do mesmo modo, compreendia sua expectativa de vida segundo os termos do século XVIII. Como tenista, sobreviveria, na melhor das hipóteses, até os 40; 23 anos era meia-idade.

O fato de que a instituição do casamento já estava totalmente desacreditada quando Willy nasceu não adiou seu sim à proposta de Eric nem em dez segundos. Era verdade que seus próprios pais haviam dado um mau exemplo; Willy não invejava aquele respeitável pai mal-humorado nem sua companheira alegremente submissa. Mas talvez os tivesse invejado no primeiro encontro dos dois, em 1961: quando a mãe, Colleen, era uma excêntrica estudante de dança moderna que saltava em performances ao som de bongôs, no meio de uma espiral de lenços, e o pai, Charles, era um escrevinhador beatnik que não se deixava desanimar, cujos bolsos estavam sempre cheios de guardanapos rabiscados e esferográficas com tinta vazando. Willy se aferrava à noção de que nada no casamento em si condenara a mãe a descartar a ambição de dançar como uma tolice vã ou o pai a voltar-se contra suas crédulas aspirações literárias com tanta agressividade. E, sem dúvida, se tivesse casado nesta era mais liberal, a complacente Colleen talvez tivesse mandado Charles se mancar e parar de resmungar e, de vez em quando, faria o que ela bem entendesse. Apesar dos indícios avassaladores de que amor verdadeiro e equilíbrio doméstico de forças eram mitos, Willy ainda acreditava na possibilidade de uma união ardente e duradoura entre iguais, assim como muitos céticos ainda mantêm a fé na vida após a morte porque a outra opção que lhes sobra é insuportável demais.

Portanto, durante todo o início da fase adulta em que militava pela independência, Willy esperara. Por fim, Eric Oberdorf surgiu, irradiando a mesma coragem perspicaz que brilhava nas fotografias do pai no começo dos anos 1960 — antes de Charles juntar-se à oposição na celebração da própria derrota. Willy tinha herdado a graciosidade da mãe, e lhe dera forma e sentido. Juntos, ela e Eric poderiam reescrever a história, e talvez fosse para isso que os filhos existissem.

Quanto a Eric, a principal preocupação de Willy era de que ele visse o casamento, assim como seu diploma até agora inútil em matemática, como um fim em si mesmo. Eric tinha uma mente modular. Podia não ver o tênis profissional como um corredor da morte, mas pensava sua vida em blocos e, portanto, como uma sequência de pequenas mortes. Mas Willy sabia o suficiente a respeito do altar para ter certeza de que o casamento marcava não só o término bem-sucedido de um projeto, como também o início de um outro empreendimento, muito mais complexo.

* * *

— PAI, É A Willy.

¡Hola!

Willy deixou o fone pendurado. O pai jamais a havia perdoado pelo fato de ela ter-se diplomado na faculdade no curso de espanhol.

— Você vai ser intérprete nas Nações Unidas? — indagara com ironia quando ela lhe informou sobre a decisão.

— Não, vou vender burritos vegetarianos em Flushing Meadow — ela retrucara. — Porque quando eu terminar essa graduação isso vai ser o mais perto que eu vou chegar do Aberto dos Estados Unidos.

O pai não tinha nada contra os espanhóis mais do que tinha contra todo mundo — o que, na verdade, significava que tinha muita coisa contra eles. Mas sabia que ela tinha escolhido um curso fácil para ter o máximo de tempo livre possível para o tênis.

¿Qué tal? — perguntou Willy.

— Nada muda aqui neste lugar, Willow, você sabe disso.

— Sempre resta a opção de envelhecer e morrer — recomendou ela. — Pelo menos assim, esse problema acabaria de uma vez por todas.

— É importante ter algo a desejar.

— Olha, tem uma pessoa que eu quero apresentar a vocês.

— Outro neurocirurgião?

— Sim, ele é tenista, pai — declarou ela, impaciente. — Mas formado em Princeton.

— Um tenista diplomado! — exclamou ele. — Você me disse que isso era impossível.

Willy quase desligou o telefone. Se mal conseguia chegar ao final desta ligação, como sobreviveria à noite inteira que ela própria estava propondo?

— Que tal sexta-feira à noite? A gente pode pegar o ônibus que sai de Port Authority às 19h20.

— Tenho certeza de que consigo encaixar você e seu jovem rapaz na minha apertadíssima agenda de eventos sociais.

— Pai — disse ela, fazendo certo esforço —, eu gosto de verdade desse cara. Será que você poderia ser… agradável?

— Willow, eu sempre sou…

— Quero dizer, dá para não ser muito rabugento? Ao menos por uma noite.

— Rabugento? Depois de uma semana eletrizante ensinando a futuros mecânicos os erros mais frequentes do inglês, sem dúvida estarei tão feliz quanto um molusco.

— Ah, deixa para lá — disse Willy, e desligou com um suspiro.

* * *

— QUANDO VOCÊ FALOU do seu pai pela primeira vez, tive a impressão de que ele era um inflexível representante da classe trabalhadora — Eric balançou a garrafa de Chateauneuf du Pape dentro da sacola —, não um professor de inglês.

— Me desculpe se parece que desprezo o trabalho dele — murmurou Willy. — Mas esse é o resultado de anos de treinamento meticuloso.

Estavam parados na fila do portão 413. Willy estava aliviada que o ônibus estivesse atrasado. Com o estômago revirando, agora se arrependia de não terem comprado duas garrafas de vinho.

— Quando eu era pequena, meu pai percebeu que eu o admirava — prosseguiu Willy —, como acontece com toda menina. Eu devia ter… sei lá, uns 11 anos, e estava sozinha com meu pai no carro. Ele me explicou que a maioria de seus alunos mal sabia ler, então, se os professores são julgados pela qualidade dos alunos, meu pai era, nas palavras dele, “o fundo do poço”. Ele anunciou isso com um prazer estranho, cruel.

— Qual é o problema dele? — Eric perguntou no instante em que a fila começava a andar. — Bloomfield College não é uma grande escola, mas também não é uma vergonha.

— Para Chuck Novinsky, é. Só fui entender aos 15 anos. Ninguém me contou. Eu estava me distraindo no sótão e achei uma caixa com vários livros de capa dura iguais. Uma capa sem graça… simples; acho que era barato. No princípio era o verbo, de Charles Novinsky.

Eric deu uma risada.

— Um pouco pretensioso, se é que você me permite dizer. Do que se tratava, crítica?

Willy olhou de relance para o noivo sob a luz do portão 413. Uma nova sensação brotou dele, e não tinha nada a ver com o fato de ter passado a camiseta para a ocasião. Seu porão mental não era inundado de bobagens negativas: o depósito do apartamento grã-fino de seus pais no East Side não cheirava a desilusões mofadas.

— Um romance — disse com tristeza, entrando no ônibus e aconchegando-se na cadeira junto à janela. — Begpool Press, 1962… nunca ouvi falar dessa editora.

— Você leu?

— Tive a sensação de que não devia mencionar os livros para o meu pai. Então me enfiava no sótão com uma lanterna sem que ninguém soubesse.

— É bom?

— Não sei — disse ela, desconcertada.

O livro do pai era bom? Era um romance sobre a natureza da literatura, é claro, e não havia alma no mundo que quisesse ler sobre aquilo; também celebrava o poder da linguagem, um poder que agora ele ridicularizava. A trama era divertida, sobre um romancista cujas palavras impressas, todas elas, ganhavam vida. (Ela adorou quando uma mistura de metáforas incompatíveis fez com que um animal gigante e grotesco andasse em direção à casa do narrador, até que ele reescreveu o trecho num frenesi.) Porém, a prosa cheirava a pilhagem de dicionário de sinônimos, um parágrafo inteiro fora concebido para acomodar a palavra “estereotropismo”. Ainda assim, o volume fino dava a impressão de ter sido um empreendimento entusiástico, confiante, e não merecia as resenhas mordazes que estavam enfiadas no canto da caixa.

— As críticas foram terríveis — Willy deu de ombros. — Só em jornais locais, revistas de periodicidade inconstante. Provavelmente eram jornalistas tentando ganhar renome e, portanto, fazendo acrobacias com o sarcasmo. Um crítico disse que No princípio era o verbo era tão ruim que “chega a ser risível”.

Com uma curiosidade recém-adquirida, Willy achou outra caixa, na qual quatro originais datilografados e envolvidos em elásticos se espremiam contra o papelão umedecido, as folhas dobradas e pontuadas por ovos de baratas. Relutou em passar a mão naquelas resmas, outrora tesouros, agora lixo — milhares de adjetivos extravagantes extraídos do Roget’s Thesaurus, que acabariam jogados naquela caixa, farfalhando sob patas de insetos. Examinou apenas o manuscrito mais recente, que estava por cima, cuja proteção com “Copyright © by Charles Novinsky, 1967” na folha de rosto era de partir o coração.

O fim da história tinha sido um trabalho mais árduo. A prosa era árida e enxuta, lembrando o sarcasmo cortante e jocoso do pai que ela conhecia. A sátira descrevia uma população mítica que se tornara tão vicária a ponto de ter seu conteúdo extinto. Um mundo automatizado cujo único trabalho era o entretenimento dividido entre os que observavam e os que eram observados. Consequentemente, toda arte era reflexiva: filmes falavam de roteiristas, programas de tevê seguiam a “vida real” das atrizes de seriados de tevê, e romances, o autor comentava com uma repulsa excepcional, detalhavam somente o apontar pueril dos lápis de picaretas literários. O manuscrito foi abandonado na página 166, no meio de uma frase. Não é de se admirar; com um tema como esse, a história estava morta, da narrativa pingava tanta autodepreciação que terminar o livro seria uma antítese.

— Aquele último manuscrito era deprimente — afirmou Willy. — Ele até enfiou a expressão “chega a ser risível” no texto. Estava sofrendo. Não sei se ainda sofre, e esse deve ser o problema dele.

— Você acha que esses romances fracassados explicam por que ele desaconselha que você jogue tênis?

— Eu não seria tão simplória assim. Prefiro acreditar que meus pais realmente quiseram me proteger. O pecado original na minha família é ter esperanças.

* * *

— QUERIDA? — ESTAVAM sentados na cama de Willy; a mãe lhe dera tapinhas na mão. Willy tinha 17 anos, e ainda brigava com o pai por causa da faculdade. — Todos os jovens querem ser artistas célebres, modelo ou um famoso astro do esporte. Poucas, pouquíssimas pessoas não acabam trabalhando na IBM, ou ensinando a moços e moças aspirantes à fama que mesmo assim eles precisam aprender a escrever direito, como o seu pai. E não há nada de errado em ter uma vida comum. Só queremos que você esteja preparada. Se você morre de vontade de ser Chris Everest…

Evert — corrigiu Willy, puxando as cordas da raquete com as unhas.

— Só temos medo de que você se magoe.

— Vocês têm medo, sim — Willy se levantou e fechou o zíper da capa da raquete. — Medo que eu consiga.

Ela saiu do quarto batendo o pé; mais tarde, entretanto, o pai foi inflexível.

— Não tenho nada contra o tênis — disse ele, o que era uma mentira deslavada. — Mas quanto a virar profissional, daria na mesma você anunciar que, em vez de se formar, você vai usar seu cheque de Natal em Las Vegas.

— Max acha que eu estou jogando melhor que um cheque de Natal — ela retrucou, irada.

— Jogo é jogo, e esta é uma aposta infeliz que só vai te trazer dor quando você for mais velha. Na minha época, pensávamos em entrar para o circo…

— Ou escrever um livro — cuspiu Willy.

O segundo olhar dele foi firme.

— Ou escrever um livro — repetiu ele, com frieza. — Mas então nós crescemos.

— Me poupe desse papo de “ser adulto”.

— Se eu pudesse, pouparia, Willow. — Por um instante, pareceu sofrer. — Mas você não vai jogar fora uma educação universitária por causa de um hobby de infância, e ponto final.

* * *

— VOCÊ ACHA QUE ele tinha razão? — indagou Eric.

— Você também, agora? — Willy suspirou. — Meu pai não tinha problema nenhum com o tênis quando a bolsa para esportes cobria os custos da faculdade, não é?

— É só que eu ainda não entendi por que você abandonou a universidade depois de três anos.

— Meu pai não queria que eu tivesse um diploma com o qual contar depois de ficar famosa no tênis. Ele queria que eu tivesse um diploma para quando eu caísse de cara no chão. Eu precisava cair fora e virar profissional. Terminar a faculdade seria acreditar nele.

Eric acariciou-lhe a mão, tão desconfortável quanto a mãe dela.

— O que eu ainda não consigo superar — pela janela, Willy observava o triste crescimento industrial de Nova Jersey — é que foi ele quem me ensinou a jogar. Quando eu era pequena, a gente jogava três vezes por semana. E a gente se divertia.

— Então por que essa hostilidade?

— Eu poderia dizer que é porque ele tem raiva de que o vença desde os 10 anos. Mas não acho que seja isso. Eu ficava chateada de dar uma surra no meu pai. Ele parecia achar uma maravilha.

A lembrança permanecia em cores vivas. Estavam jogando na quadra irregular de piso sintético, a mais próxima à casa de Willy. Ela não se recordava do jogo em si, somente de permanecer parada, perplexa, na linha de fundo após um match point. O pai foi em sua direção, maravilhado, pulando a rede em vez de contorná-la, como se estivesse se aproximando de uma aparição que poderia sumir. Ajoelhou-se a seus pés, a voz abafada:

— Você tem uma coisa especial, Willow. Não sei a quem você puxou: a mim, não foi. Mas tome cuidado, e não deixe que ninguém tire isso de você.

A mãe, apressando-os do carro, quebrou o feitiço:

— Chuck, o que você está fazendo na quadra de tênis? O jantar já está pronto há uma hora.

O pai abriu os braços:

— Ela me venceu.

— Que bom, querido. Ela é um helicopterozinho com a raquete na mão, não é? Agora, vocês dois, nada de ficar fazendo cera. A batata…

— Colleen, você não está entendendo — disse ele, irritado. — Eu não a deixei ganhar. Dez anos, dá para acreditar? E eu tentei. Eu dei o meu sangue.

— Chuck — a mãe repreendeu. — Assim, ela vai ficar cheia de si.

* * *

ENTRETANTO, NO MESMÍSSIMO INSTANTE em que o pai percebeu que a segunda filha tinha um dom, ele passou a ficar em seu caminho. Tinha cada vez menos tempo após o trabalho para jogar com ela. Recusava-se a pagar as mensalidades do Montclair Country Club, e Willy foi obrigada a recolher bolas em troca de gorjetas para pagar a despesa. Metade dos jogadores para quem buscava bolas na verdade não queria uma boleira, e ela se tornou um meio-termo entre mascote e praga. Discussões sobre participação em torneios locais para juniores que “interferiam em sua vida escolar” eram incessantes.

O antagonismo chegou ao ápice no aniversário de 16 anos de Willy. Ela se sentou diante do bolo molenga de praxe — a mãe nunca foi exatamente uma boa cozinheira, e não havia batido as claras dos ovos para a cobertura de coco até o ponto ideal. Enquanto as claras assentavam em um líquido cru, a cobertura escorria pelas laterais num desânimo que resumia a gestalt dos Novinsky. Da mesma forma, cada uma das instáveis camadas era sustentada por uma faixa de bolo triste, solado e borrachudo, como se nada naquela família estivesse destinado a ressurgir da depressão perpétua. À sua frente havia um único envelope, no qual estava escrito Wilhemena.

Ela deveria ter imaginado, mas estavam em maio; Willy concluiu que ali dentro havia finalmente a permissão para que fosse à academia de tênis Vitas Gerulaitis, no Queens. Ao abrir o envelope com um rasgo, seu rosto murchou de forma tão aparente quanto o bolo.

— Dessa forma, Gert ganha o presente de aniversário dela mais cedo — o pai discursou. — Você ainda não tem idade para ir sozinha.

O presente de três semanas na Europa com a chata da irmã mais velha poderia muito bem ter sido uma viagem com todas as despesas pagas até Newark. Willy esmagou um naco de bolo com o garfo.

— Só existem três lugares para onde quero ir, na Europa — ela proferiu, num tom de voz estável. — Roland Garros, o Foro Italico e o All England Club… em circuito. Fora isso, não tenho intenção alguma de passar as três semanas que têm o melhor clima do ano arrastando os pés em museus mofados com a Gert.

Geralmente, o pai usava a serenidade como arma. Dessa vez, ficou vermelho, derrubou a cadeira e vociferou que Willy era uma ingrata, que, na idade dela, ele teria dado os próprios caninos…

Willy havia aprendido a manter a calma com frieza desde que ele ainda a pegava no colo.

— Se você pode me mandar para a Europa — ela afastara o bolo que não tinha comido —, pode me mandar para a academia de tênis.

Já na academia, Willy gravitou instintivamente em torno das crianças bolsistas, e mentiu que vinha da ralé branca e pobre dos Estados Unidos. A lorota veio fácil: Walnut Street era uma espécie de pobreza. Porém havia algo de inevitável na baixa renda emocional da família, e Willy não sabia o que esperar do pai além de amargura. Suas próprias esperanças tinham sido aniquiladas. Como ela poderia insistir para que ele fosse generoso na derrota quando ela mesma julgava insinceras as pessoas que fracassavam com elegância?

Desde que descobrira a obra secreta do pai apodrecendo lentamente no sótão feito o cadáver de um assassinado, Willy via o jovem e determinado Charles Novinsky como uma pessoa completamente diferente. Ficava de sentinela pelo predecessor inocente, defendendo-se do escárnio do homem mordaz que tinha se tornado. Tinha carinho pela foto do estranho: um esteta de ânimo inesgotável, cheio de ideias, destinado a virar um grande escritor. Este era seu pai verdadeiro. O Chuck Novinsky genioso com que havia crescido era um impostor. Folhear aqueles manuscritos desbotados era praticamente a mesma coisa que desencavar documentos que revelavam que fora adotada.

Talvez o Chuck adulto estivesse tentando reparar o otimismo de seus próprios pais em relação a ele, o que ele descrevia como uma forma de abuso. Os avós de Willy eram de famílias do Leste Europeu que trabalhavam duro e cujo modesto negócio de lavagem a seco havia prosperado já na década de 1950. O conforto imprevisto e a estrutura americana clássica de suas vidas, em que o ano atual era sempre melhor que o anterior, os incentivara a comprar por atacado a ideia norte-americana de que qualquer garoto poderia ser presidente. Devem ter enaltecido as primeiras palavras inteligíveis do pequeno Charlie, pregado seus poemas na porta da geladeira e exaltado entre os parentes o cargo de editor que ele ocupava no jornal da escola. Alfred A. Knopf aguardava ansioso. O pai de Willy culpava os pais por terem lhe vendido um embuste, um erro que não repetiria com as próprias filhas, que eram criadas para olhar com raiva para o horizonte pobre e desinteressante que se via das janelas da casa desajeitada que habitavam em Nova Jersey.

A mãe, entretanto, havia conservado uma pureza de menina, com a qual Willy esbarrou aos 12 anos. Sua partida de tênis fora anulada devido à chuva, Willy chegara a casa mais cedo do que o esperado. Uma salsa fogosa pulsava na sala de estar. Willy espiou pelo vão da porta e viu a mãe de pés descalços e calças legging; o velho collant preto estava meio gasto e caía de seus ombros. Ela remexia os quadris e ondulava os braços. De olhos fechados, escorregou até abrir as pernas em espaguete. Uau. Ainda conseguia encostar as duas coxas no chão. Embora a coreografia fosse eclética — uma mistura de Desi Arnaz com Twyla Tharp —, ela era uma dançarina e tanto.

Quando Willy assobiou, a mãe soltou um ganido, depois enrubesceu e ao mesmo tempo atrapalhou-se ao tentar desligar o aparelho de som. Willy se arrependeu imediatamente de ter revelado sua presença; deveria ter se dado ao prazer de ver um espetáculo mais longo, saído às escondidas e batido teatralmente a porta da frente pela segunda vez. Willy queria que mamãe guardasse seu segredo. Os sonhos de Colleen O’Hara de se tornar dançarina foram concebidos em particular, e em particular continuavam intactos. Não era de se estranhar que insistisse para que Willy jogasse tênis só por diversão. A própria Colleen dedicava alguns minutos por dia a ser uma première danseuse, e desejava ao menos o mesmo holofote solitário para a filha. A improvisação daquela tarde assinalava de forma premente para a segunda filha: fique dentro de sua quadra minúscula, onde você é a rainha; seja uma estrela no céu noturno do fechar de seus próprios olhos. Se não fosse por mim, aquela caixa onde No princípio era o verbo está guardado teria sido jogada no lixo há muito tempo, ou sido queimada alegremente como lenha. Seu pai abriu o coração por um instante, e acabou com o coração esmigalhado. Isole tudo que lhe é querido das vaias de estranhos; só dance quando a casa estiver vazia.

* * *

WILLY E ERIC DESEMBARCARAM na esquina da Walnut, uma rua coberta de folhas e com estábulos e casas em estilos do Segundo Império ou colonial holandês. Não havia nada intrinsecamente sombrio naquela vizinhança humilde, mas atraente. Apertando a mão de Eric, Willy arrastou os pés.

— É melhor eu te avisar sobre a casa — disse. — É marrom.

A casa era marrom. O exterior era marrom, o interior era marrom. Logo depois de comprarem a casa de dois andares ao estilo Rainha Anne, falaram em trocar o carpete chocolate que cobria o chão e em arrancar os painéis baratos cor de ferrugem que davam uma impressão de melancolia e pequenez aos cômodos. Mas a própria opressão do interior mergulhou seus residentes em uma lassidão, e os planos grandiosos para a reforma definharam. Ao depararem com uma decoração condenável cuja repaginação seria motivo de aborrecimentos, era mais conveniente repaginar seus gostos. Agora os pais declaravam gostar de tudo marrom, e investiram em móveis de mogno e cortinas bege. O fato de que a redecoração não passava de falatório não era surpresa: ambos eram dados a afirmações vagas, mas nunca propunham limpar a garagem neste sábado. Eles murmuravam há anos sobre viajar para o Japão, mas as únicas viagens que o pai podia se dar o trabalho de fazer eram as que coincidiam com as datas das partidas de tênis da filha.

Willy subiu os degraus marrons, arrastou os pés pela varanda e enfiou a cabeça pela porta marrom.

¡Hola!

O pai demorou uns segundos para erguer os olhos dos papéis que estavam em seu colo; ela supôs que ele precisou de um instante para se preparar. Willy sempre parecia esgotá-lo, e, antes que suas feições adquirissem um ar de distanciamento astuto, ele parecia estressado.

Instantâneos amassados de Charles Novinsky na idade de Willy eram como retratos de um primogênito valente que mais tarde seria abatido em uma guerra. Os olhos do rapaz eram endurecidos e sua postura, ereta; naquele rosto não havia presságios dos morteiros do futuro. Era preciso empenho para ver qualquer ligação com o veterano esfalfado que ela encarava agora. Os cachos bastos do pai haviam rareado e virado um frisado ressecado, como se tivessem pegado fogo. Embora sua tez fosse naturalmente corada, ele sofria de psoríase e a pele que descamava deixava suas bochechas cinzentas.

O pai puxou os óculos para a ponta do nariz.

— Veja só, eu estava lendo um livro do Chomsky que fala da sua vocação. Segundo Noam, na era secular, os esportes são o ópio do povo. Ao que parece, as massas são enfraquecidas por disputas gladiatórias que funcionariam como substitutas de outras, assim como antigamente ficavam hipnotizadas pelos rituais tolos da Igreja.

— Eric — disse Willy —, este é o briguento e o ranzinza do meu pai, que está dando tudo de si para ofendê-lo antes mesmo de saber seu nome.

— Princeton, eu soube — eles trocaram um aperto de mãos. — O que deu em você para se juntar aos brutos depois de obter um diploma de um lugar desses?

— Willy e eu planejamos ganhar milhões sendo patrocinados por marcas de desodorante — Eric respondeu sem hesitação.

Ambos se acomodaram em cadeiras marrons, e Eric indicou com a cabeça os trabalhos de fim de curso que estavam no colo do pai dela.

— Isso não parece Chomsky. O que o senhor está lendo?

Não dê trela, Willy quase se intrometeu para recomendar, mas Eric gostava de dar trela às pessoas.

— “Ler” talvez seja uma palavra digna demais para isso. Mas eu faço uns joguinhos para me distrair. Meu fardo se divide entre aqueles que acham que as vírgulas são paralisações que sucedem um acidente de carro e os que as veem como arabescos decorativos… neste caso, quanto mais, melhor. Portanto, patrocino competições domésticas. Este aqui está ganhando — ele ergueu um trabalho. Marcada por rabiscos vermelhos, a um metro de distância a folha de papel era rosa. — Trinta e cinco vírgulas supérfluas em uma única página. Um recorde.

— O que você está tentando fazer, pai: nos impressionar com sua competência para a pontuação ou nos deixar com pena de você?

Francamente, o gosto de seu pai pela condescendência era tão familiar que ela o repelia. Willy tinha crescido com a vaga impressão de que sua família era superior, mas não de uma forma mundana. A superioridade deles era uma altivez que os excluía das coisas. O pai tinha uma aura de profeta do Velho Testamento que tentara pregar uma ou outra vez, não recebera qualquer atenção, e agora, por vingança, não dividia mais seu conhecimento com ninguém. Se isso significava deixar as hordas à mercê de inundações e gafanhotos, tudo bem.

A pedra fundamental da supremacia do pai era seu realismo destemido. Reconhecia que o planeta estava apinhado de adolescentes espinhentos que planejavam ser cineastas, magnatas da indústria e correspondentes internacionais vencedores do Pulitzer, e ele deixava os alunos a par das probabilidades. Apenas os fracos e os tacanhos se aferravam às ilusões. Chuck insistira que sua prole crescesse no mundo como ele era.

A mãe de Willy chegou correndo da cozinha, enxugando a mão no avental antes de estendê-la para Eric. Colleen Novinsky se mantinha sempre numa postura angulosa, andando com o corpo inteiro curvado para frente, de modo que você sempre se preocupava se ela não estava prestes a cair. Apertou uma das mãos na outra na altura da cintura, num gesto de eterna súplica. Após aceitar a garrafa de vinho de Eric com um suspiro de que não precisava, preparou os drinques com um cuidado que beirava a histeria.

Enquanto Eric se espichava na cadeira reclinável do meio, os pais se encolhiam diante dele, sentando-se na borda de suas cadeiras, olhando-o de esguelha. Era aquele frescor. Eric não era marrom. Ele flutuava sobre o assento com um leve contorno branco, como se tivesse sido recortado de uma revista de papel brilhoso e colado no papel-jornal dos Novinsky. Eric esticou as pernas compridas e cruzou os tornozelos, entrelaçando as mãos atrás da cabeça; o acentuado pomo de adão realçado pela luminária. Aquela família conseguia ser, por natureza, tanto fleumática quanto inquieta, e eles viam as brincadeiras graciosas e concatenadas de seu namorado com um espanto desconfiado.

— O senhor deve estar muito satisfeito com sua filha, Sr. Novinsky — Eric falou com carinho. — Na semana passada, ela foi para as semifinais em Des Moines. O desempenho dela foi estupendo. Não é fácil subir de 612 para 394 no ranking em um ano.

O pai fez um gesto com a mão.

— Eu não entendo patavinas desses números nos esportes.

— É aritmética básica, Sr. Novinsky — Eric o repreendeu. — Rankings são compreensíveis se você souber contar.

— A gente só se preocupa se ela vai conseguir se manter.

— O corpo, talvez — rosnou Willy. — Você nunca pareceu se preocupar com minha alma.

— Minha preocupação é como você vai se sustentar de um jeito digno — retrucou ele.

— É isso o que seu trabalho é? Digno?

— É uma forma de sustento — reagiu ele. — Não entendo por que você não pode arrumar um emprego de verdade para ter no que se apoiar.

— Não dá para jogar tênis em meio expediente — interveio Eric. — Tenistas estão sempre viajando, e é preciso uma devoção inabalável. — Exatamente o que Willy vinha dizendo há anos, mas, quando Eric disse isso, os pais o ouviram. — E ela está se saindo muito bem, sr. Novinsky. Não deveria ser necessário que eu lembrasse ao senhor, mas ela tem algo… algo especial.

— Mas ela está endividada com o tal do Upchurch até o último fio de cabelo — o pai alegou. — E se acontecer alguma merda? — Na Walnut Street, “merda” queria realmente dizer merda. Não era um desejo de boa sorte.

— Todo mundo vive de incertezas — Eric respondeu calmamente. — Enquanto isso, imagine ser capaz de se sustentar jogando tênis! É quase tão ultrajante quanto ser pago para escrever histórias.

O pai perscrutou Eric de um modo resoluto, em seguida deu um tapinha nos romances que tinha na mesa a seu lado.

— O que é ultrajante é ser pago para escrever estas histórias.

— E a senhora, o que faz, sra. Novinsky?

Quando feita a mulheres da geração da mãe de Willy, a pergunta era um risco. Forçadas a admitir que eram donas de casa, elas ficavam envergonhadas, pois a pergunta em si já insinuava que passar o aspirador de pó não era o bastante. Se, em vez disso, você optasse por não fazer a pergunta e elas tivessem um emprego, ficavam igualmente ofendidas. Mas Eric não jogava para perder. Sabia que a sra. Novinsky trabalhava em um asilo para idosos.

— Do jeito que a estrutura etária está mudando — o pai de Willy se intrometeu com entusiasmo —, em breve todos nós vamos trabalhar em asilos, se já não estivermos internados num. A Colleen está à frente do nosso tempo.

— Minha mãe estudava dança moderna — Willy contou sem que lhe pedissem.

— Isso já faz muitos anos — desdenhou a mãe. — Eu não tinha talento para fazer parte de uma companhia. E jamais conseguiria me privar de comer biscoitos.

Willy revirou os olhos. Este número ensaiado havia induzido as duas filhas por anos a insistir que não, não, ela tinha um corpo ótimo que poderia ter mantido, e, ora bolas, ela tinha postura de artista.

— Claro, mamãe. Foi exatamente isso que seu professor disse quando te deu o papel principal em Pavana para uma princesa defunta no seu último ano: o lugar dessa trapalhona é comendo biscoitos Oreo com velhos de fraldas. — O fato de que a mãe sempre fazia com que os outros a defendessem era uma espécie de apatia. — E então, podemos comer?

— Estamos esperando a Gert.

Ah, que ótimo.

Se Willy não detestasse a irmã, talvez sentisse pena dela. Nascida na época em que aquelas folhas datilografadas devem ter sido enfiadas no sótão para virar Motel de Baratas, a irmã mais velha de Willy enfrentara a primeira crise do pragmatismo selvagem do pai. Daria na mesma se ele tivesse mantido um pé na cabeça dela. Desde o começo, Gert sempre foi madura demais para sua idade, com aquela modéstia comedida e bem articulada que, numa criança, causa um certo incômodo. Na época em que as duas ainda brincavam juntas, Gert nunca concordava em fazer imitações travessas das cenas de perseguição de Kojak, mas teimava em brincar de Mary Tyler Moore. No ensino médio, nunca quis ser uma estrela do rock, e sim professora. Seu jogo de tênis era cauteloso e comedido, e, assim que Willy ficou boa, Gert deixou o esporte de lado sem qualquer resistência. Em meio à extravagante era New Wave, vestia-se para o colégio como uma matrona insossa. Seus trajes, depois de entrar na casa dos vinte anos, permaneceram sensatos, bem como seu casamento — o marido e os sapatos, em igual medida, lhe caíam bem, muito melhores que saltos, que são muito chamativos e perigosos. O pai de Willy fora bem-sucedido: Gert era monótona. Sua única pretensão era alegar que não tinha nenhuma pretensão.

Quando ela entrou pela porta num movimento eficiente (de conjuntinho marrom), perguntou a Willy enquanto enfiava as chaves dentro da bolsa de forma ruidosa:

— Como vai o tênis?

— Bem — respondeu Willy.

Foi só isso.

Durante o jantar, a tagarelice do noivo foi tão segura e fluida que Willy tornou-se desnecessária. Ao analisá-lo, teve a impressão irracional de que havia levado não o genro que seus pais sempre quiseram, mas sim um substituto para ela própria — em vez da segunda filha intratável, sempre na defensiva, excessivamente reservada e que dificultava a vida dele continuamente, ali estava um rapaz encantador e controlado, em cuja presença seus pais, por incrível que pareça, gargalhavam. Em outras refeições em família, sempre que Willy começava com as fofocas do mundo do tênis, Gert pedia mais batata e o pai voltava a bater na tecla de que o desconstrutivismo felizmente estava arruinado. Mas, quando Eric comentava sobre Agassi, os três se inclinavam para frente e lhe faziam perguntas (“Quem é Agassi?”). Neste momento, o pai questionava com um interesse sincero como Eric controlava os nervos antes de uma partida, pergunta que nunca se importou em fazer à própria filha.

Depois de ter bajulado a mãe comendo três porções do intragável frango cacciatore que não estava cozido o bastante, Eric afastou sua cadeira da mesa. Na poça de luz de sua gola aberta, sombras nadavam na clavícula como peixinhos em disparada. Willy se assustou. As feições intensas de Eric podiam ser consideradas tanto admiráveis quanto exageradas. Até então, havia encarado sua beleza como provisória, e, portanto, poderia revogá-la. Entretanto, nesta noite, gostasse ou não, as veias saltadas de seus antebraços grossos faziam Willy salivar como se estivesse diante de um pote de balas de alcaçuz. Se a beleza dele era um presente, ele iria guardá-lo.

— Copa Davis, julho de 1988, em Buenos Aires, jogando contra a Argentina? — perguntou Eric. — Agassi estava jogando contra Martín Jaite, o queridinho da Argentina. Ele estava dando um banho no pobre coitado, 6-2, 6-2. Quando estava em 4-0 no terceiro set, Jaite teve a chance de ganhar um game. Em 40-0, Agassi berrou para o treinador: “Ei, Nick, olha isso!” Jaite sacou, e Agassi pegou a bola com a mão esquerda.

— Por que ele fez uma coisa dessas? — Gert franziu a testa, fascinada.

— Caridade distorcida. Para humilhar Jaite e ofender a plateia. Funcionou. Depois ele teve a audácia de dizer aos jornalistas que aquilo era “simplesmente uma coisa que ele sempre teve vontade de fazer”.

Willy também franziu a testa. Tinha tentado contar exatamente a mesma história no Dia de Ação de Graças do ano anterior. A mãe continuara a tirar a mesa, Gert repassara algumas perguntas que poderiam cair em sua próxima prova de contabilidade, e o pai, sem ao menos mudar a cadeira de posição, voltara toda a sua atenção para o The New York Times. Willy interrompeu o episódio bem antes de chegar a seu clímax.

Para receber ao menos um pouco de atenção, Willy deu uma batidinha em sua taça, erguendo-a.

— Ei. Um brinde. Vamos nos casar.

Ficaram encantados.

Quando todos foram para a cama, a mãe foi incisiva ao mandar o casal de noivos para quartos separados. Willy poderia ter feito uma cena, mas, quanto mais íntimo o noivo ficava de seu pai (“Eric, por favor, me chame de Chuck”), mais propensa ela ficava a acatar o arranjo.

— Bom, você deixou minha família de quatro por você — rosnou Willy no corredor.

— Eles não são tão ruins assim — sussurrou ele.

— Talvez com você eles não sejam — murmurou ela. — Meu Deus, estou noiva de Eddie Haskell.

— Willy…?

Ela não lhe deu um beijo de boa-noite. Ficara tensa com a possibilidade de que a família não gostasse de Eric. Não tinha nem pensado em se preocupar com a possibilidade de que gostassem demais dele.