Seis

TODA VEZ QUE CHEGAVA PERTO DE MONTCLAIR, em Nova Jersey, Willy se encolhia, como se a mera proximidade do útero de sua mãe a fizesse tomar proporções fetais. Em contrapartida, enquanto Eric entrava na refinada portaria da rua 74 leste e cumprimentava o porteiro pelo primeiro nome, o noivo parecia crescer a cada passo que dava. Ao avançarem em direção à porta do apartamento dos pais dele, ela já temia que ele batesse com a cabeça ao cruzá-la.

Depois de vários tapinhas nos ombros e abraços apertados de seu primogênito, Axel Oberdorf virou-se para saudar a namorada do filho.

— É um prazer. Ele realmente traz as mais bonitas para casa — Axel piscou um olho.

Ela esperava uma versão esbelta e calva de Eric. Mas Axel (“Axe”) Oberdorf batia no ombro do filho, era robusto e atarracado. Com uma postura de jogador de futebol americano, era difícil atravessar seu caminho. A cabeça cheia de cabelos pretos combinava com os braços, cobertos por uma densa pelugem. Cirurgião-sênior no hospital Mount Sinai, Axel emanava um forte aroma de sabonete antisséptico, numa camada dupla, o cheiro grosseiro era mascarado por um perfume nauseante, mas insuficiente. Apertou a mão de Willy, as unhas dele eram curtas e limpas. No decorrer da conversa fiada inicial, o rosto dele exibiu um número limitado de expressões: o sorriso narcisista de “não somos todos formidáveis?”; um “espere para ver” impassível, sugerindo a suspensão de seu julgamento que não se prolongaria; e o ocasional lampejo de desconfiança.

— O que vai ser, Eric? Pus na geladeira uma dúzia daquela Pickwick Ale que você disse que gostava. Ou você está a fim de algo mais saudável? Suco de clorofila? Os meninos terão o maior prazer em sair para atender a pedidos especiais. — Era uma questão insignificante, mas, caso Willy deixasse transparecer para os pais que gostava de Pickwick Ale, eles fariam tudo o que estivesse dentro de suas possibilidades para estocar Old Milwaukee.

Axel conduziu o casal até a espaçosa sala de estar, cujo tapete marfim felpudo parecia ser aspirado três vezes por dia. Os móveis confortáveis eram modulares, assim como a mente de Eric. Retângulos, cones, pirâmides e cilindros de cores primárias em tons vivos, todos com tiras de velcro, podiam ser agrupados de diversas formas. Era fácil imaginar Eric resolvendo teoremas geométricos ali, na infância, ou montando seu próprio cubo mágico com a mobília. A mãe de Eric gerenciava uma galeria de arte, e pelas paredes espalhavam-se telas originais que também poderiam passar por diagramas matemáticos ou passatempos de revista — impressionismo abstrato, triângulos, gravuras russas cujas frases em alfabeto cirílico desafiavam qualquer um ali a pronunciá-las, e grades brancas sobre fundo branco mais espirituosas do que belas. Embora a sala fosse salpicada de diversos tons, nem uma única almofada ou quadro era marrom.

Eric começou a montar uma cadeira para si. Willy empoleirou-se num simples cubo, uma má escolha. Não podia se recostar; já nervosa, agora literalmente não teria onde se apoiar.

— Então, me ponha a par das novidades, meu filho — pediu Axel, em um trono de braços grandes. — O que aconteceu em Toronto?

— Ah, eu ganhei — disse Eric. Deixou a cerveja pingar, estava determinado a pôr a garrafa inteira dentro do copo. Quando a última gota tremeu na borda do gargalo, fez uma expressão vitoriosa.

Axe anuiu vigorosamente.

— Ótimo, ótimo. Não me surpreende. — O pai de Eric muitas vezes omitia o sujeito de tais orações, como se a sua centralidade fosse uma obviedade gramatical.

— Não foi um torneio importante — Eric divagou. — Uns trocados, uns pontinhos computados.

— Ele foi impressionante — acrescentou Willy. — E a dificuldade foi bem maior do que está deixando transparecer. — Na Walnut Street, ela se sentira grata quando Eric a defendera, mas na rua 74 seu apoio parecia raso, supérfluo.

— Vitória é vitória — declarou Axe. — É um hábito, e fico feliz que você o tenha adquirido bem cedo. A gente tem que admitir — Axe gesticulou com seu copo de vodca com tônica —, esse garoto pega uma raquete aos 18 anos de idade e dois anos depois está na equipe de tênis de Princeton.

— Impressionante — disse Willy.

— Só fico chateado comigo mesmo por ele não ter começado quando era moleque. Talvez agora ele já estivesse competindo em pé de igualdade com o Agassi. Quando você aprendeu a jogar, Willy?

— Aos 4. Mas só comecei a levar a sério aos…

— E qual é a sua posição no ranking?

— 386.

Eric se intrometeu:

— Deve subir este mês, já que a Willy entrou no…

— Trezentos e oitenta e seis — o número parecia bem comprido.

A sra. Oberdorf apareceu com uma bandeja de canapés cujos triângulos de salmão, enfeites de azeitonas pretas e tiras de nabo reiteravam as gravuras russas. Era dela que Eric tinha herdado a aparência: era alta, magra e imponente, com as maçãs do rosto proeminentes e o mesmo nariz altivo e anguloso. Alma Oberdorf se vestia com uma simplicidade que custa caro. Seus modos eram contidos, a voz, um murmúrio. Ao se curvar em direção ao primogênito e beijar-lhe a testa, brincou que ele havia perdido mais cabelo — a primeira insinuação da tarde de que o noivo de Willy tinha algum defeito.

— Willy, fico tão contente por Eric ter com quem jogar — disse Alma, de bom humor, e Willy aceitou um sanduíche.

— Sua mãe está preparando outra vez aquele mingau de polenta para o jantar — suspirou Axel. — Eu tentei convencê-la de que pamonha é comida de caipira, mas não dá para lutar contra o exibicionismo nova-iorquino.

— A receita é do Union Square Cafe. — Pela tranquilidade empedernida de sua resposta, a sra. Oberdorf devia estar acostumada a defender seu terreno, embora talvez também não conquistasse nenhum. — E é apenas um acompanhamento, querido. — Distraída, ela escapuliu da sala.

Quando Axe começou a exaltar a reputação do filho como “Rick, o Seboso” no time de basquete de Trinity, Eric o interrompeu, impaciente:

— Pai, presta atenção! Willy já gosta de mim. Mas talvez deixe de gostar, se você não parar com isso.

Eric se esforçou para que Willy voltasse a ser o tema da conversa. Recitou que ela tinha sido a número 3 do ranking de juniores em Nova Jersey mesmo só tendo permissão para jogar nos estados de Nova York, Nova Jersey e Connecticut; que fora a número 1 da equipe de tênis do segundo ano na Universidade de Connecticut; que recentemente havia chegado à semifinal no Norfolk Masters, que valia muito mais pontos computados do que seu satélite desprezível em Toronto. Apesar de lisonjeada, Willy ficou confusa em relação aos motivos pelos quais Eric se sentia instigado a soltar essa torrente de estatísticas. Eles deviam estar se conhecendo, mas Eric podia muito bem ter levado uma cópia do currículo dela, como se estivesse se candidatando para um emprego.

— Seu pai é seu treinador, Willy? — No bar, Axel encheu o copo de vodca com mais tônica.

— Willy treina com Max Upchurch, um dos melhores — intercedeu Eric, esforçando-se para acrescentar: — Eles são muito… próximos. Willy é a grande esperança dele para os anos 1990.

— Então o que seu pai faz?

— É professor de inglês — Willy se apressou em responder por si mesma. — Diretor do departamento.

— Rutgers?

As bochechas de Willy esquentaram.

— Bloomfield College. Ele escreve romances e não liga muito para a parte acadêmica…

— Qual o nome dele?

— Chuck… Charles Novinsky.

Axe esfregou o queixo.

— Não sei dizer se eu já… O que ele publicou?

Willy afundou no assento tanto quanto o cubo sem encosto permitia.

— Um livro. O senhor não deve ter ouvido falar dele. Mas é muito bom. Foi subestimado na época.

— Nunca conheci um professor que não tivesse três romances escondidos numa gaveta. Pelo menos seu pai conseguiu publicar um deles.

Willy endireitou os ombros.

— Bom, acho meu pai um escritor muito talentoso. Mas o senhor sabe como é, nem todo mundo pode ficar famoso.

— Sim — Axel sorriu; seus dentes eram pequenos e perfeitos. — A labuta de inúmeros homens dignos de louvores não é recompensada, não é? — complementou, em tom grandiloquente. O floreio não condizia com seu estilo nem servia ao sentimento. Ele ergueu sua vodca-tônica. — Aos que não são valorizados.

Willy não bebeu um gole sequer de seu vinho.

* * *

ANTES DO JANTAR, ERIC levou Willy para conhecer o apartamento dúplex. Ao mostrar seu antigo quarto, ela se espantou com as paredes nuas e as superfícies vazias. A mãe dele tinha limpado todos os seus rastros?

— Não, sempre mantive as coisas organizadas e simples — explicou ele.

Mas a verdadeira explicação só surgiu quando entraram na suíte máster. Ao longo de uma das paredes do quarto, todos os prêmios que Eric ganhara na vida estavam dispostos com destaque: os boletins só com notas máximas, o trabalho de Grupo de Leitura Avançada do primário, as capas com estrelas douradas dos ensaios sobre Ronald Reagan que apresentara em Trinity, uma carta de agradecimento do Comitê Republicano Nacional, diversas fitas azuis conquistadas nas pistas de corrida, oito cartas consecutivas do reitor, anunciando-o como um dos melhores alunos de Princeton, o certificado Phi Beta Kappa com uma chave dourada pendente e um diploma summa cum laude de bacharel em matemática recém-emoldurado. Junto à mesma parede, havia uma mesa entupida de troféus. Willy fitou inquieta a exposição. Lembrou-se de católicos devotos que guardavam cartões com novenas, velas, crucifixos e estátuas da Virgem Maria agrupados em um cantinho sagrado de suas casas. Não tinha dúvidas: aquilo era um santuário.

— O que tudo isso está fazendo no quarto dos seus pais? — perguntou, incrédula.

— Pessoalmente, tenho que agradecer que essas tralhas não estejam pregadas por toda aquela porcaria de sala de estar. — Eric parecia ao mesmo tempo irritado e envergonhado, mas havia lhe mostrado a coleção de propósito. Se iam se casar, havia algo que queria que ela entendesse.

— Mas por que você não quis guardar esses prêmios no seu quarto?

— Eu quis, ou tentei. Eu colocava na minha escrivaninha, mas meu pai sempre roubava. Quando ele foi me ajudar a esvaziar meu quarto no alojamento, em maio, brigou comigo para que eu lhe desse as coisas de Princeton, sob a alegação de que foi ele quem pagou por elas. E no ensino médio, ele se intrometia tanto que eu comecei a jogar fora umas homenagens de merda. Não tinham utilidade. Aquelas fitas azuis de corrida? Ele catou no lixo, com casca de banana junto e tudo. Está vendo? — Eric apontou. — Esta aqui ainda tem marca de gordura.

— Você sempre foi assim, tão modesto?

— Não é modéstia; talvez seja o oposto, para falar a verdade. Não tenho interesse em nada do que já fiz. Estou sempre de olho no próximo obstáculo. Pergunte a qualquer cavalo o que acontece quando ele corre olhando para trás, dando-se os parabéns pelo sucesso ao saltar a última sebe. Isto é entulho, Wilhelm. É entulho velho, aliás. — Seu tom era de repulsa.

— Meu Deus, nem consigo imaginar meu pai…

Não — Eric a cortou em voz baixa — fique com inveja assim tão rápido. Claro, estas tralhas estão no quarto do meu pai. Porque são dele. Não fique achando que ele estava se gabando de mim lá embaixo — Eric apontou para o chão. — Ele estava se gabando dele mesmo.

* * *

AO RETORNAREM AO PRIMEIRO andar, os três irmãos de Eric já estavam sentados à polida mesa de jantar de teca; os dois mais novos brigavam a respeito de qual seria o edifício mais alto do mundo.

— Errado! A Sears Tower! Mil quatrocentos e cinquenta e quatro andares…

— Isso é em pés, seu idiota. Você acha que o prédio chega à Lua?

Ninguém se importa — interrompeu Eric. — Garotos? Esta é a Willy. Willy? Robert, Mark e Steven — ele apresentou, começando pelo mais novo.

Em termos gerais, eram todos atraentes, mas os dois mais velhos tinham o físico de Axel, baixos e atarracados. Talvez ainda não tivessem crescido tudo o que tinham para crescer, mas nenhum dos irmãos possuía a leveza interessante e a naturalidade segura de Eric. Os três se voltaram para Willy com expressões que mesclavam admiração e ressentimento. Então, Eric tinha levado mais uma garota bonita para casa. Grande surpresa.

O segundo mais velho, Steven, talvez fosse o mais feio e tinha cerca de 17 anos. Ele começou a interrogar Mark sobre quais cinco presidentes americanos haviam sido baleados, mas quando Axel chegou, enxugando as mãos, o pai deles assumiu o posto de árbitro.

— Começam com “G” — estimulou Axel.

— Sem pistas! — reclamou Steven. — Você nunca me ajuda!

— Garfunkel! — palpitou Mark.

Steven vaiou.

— Então todo mundo ouvia Simon e Garfield nos anos 1960?

Quando Alma serviu o primeiro prato, uma terrina de carne de veado, a atenção de Willy começou a vaguear. Mark tinha iniciado uma lista de todos os filmes em que Robert de Niro já havia atuado. Steven, aparentemente, sabia de cor tudo o que havia no gabinete de George Bush. Algo naquela brincadeira a incomodava. Na residência dos Oberdorf, todos os fatos estavam no mesmo nível. Não parecia fazer diferença se era ou não relevante saber em qual filme De Niro tinha interpretado o diabo, somente o fato de que Mark sabia que era em Coração satânico e Steven não. Quando o conhecimento tinha valor apenas como arma, todas as informações eram desprezíveis e substituíveis. Aquelas crianças atiravam fatos do mesmo jeito que crianças levadas atiravam comida.

Somente Robert, o menino esquelético e taciturno de 12 anos à cabeceira da mesa parara de competir assim que o pai apareceu. Depois de amassar sua comida, transformando-a em montinhos de bosta, ele trocou o jantar pelo notebook que estava sobre o colo.

— Meninos! — Axel chamou a família à ordem. — Gostaria de anunciar que o irmão de vocês, Eric, acabou de vencer um grande torneio canadense.

— Chega! — Eric desesperou-se. — Foi um torneiozinho de merda, e eu já te disse isso, pai!

Robert o adulou.

— Aposto que todas as meninas jogaram flores e fizeram xixi nas calças — murmurou o caçula. — Mal podemos esperar para saber de tudo.

— Caramba — disse Mark —, você ganhou o quê? Um milhão de dólares?

— Não ganhei nada — insistiu Eric. — Não é preciso nem estar no ranking para participar, a competição estava infestada de amadores, e com o que eu ganhei não daria para comprar nem uma cópia do “Microsoft Golf ” para o Robert.

Mas os protestos de Eric se derramaram sobre os irmãos feito chuva. Willy supôs que a humildade o deixava um pouquinho mais irritante.

— Minha equipe de debate ganhou a primeira rodada contra Dalton, pai — Steven levantou a voz.

— Recebi de volta meu trabalho sobre Os bons companheiros — intrometeu-se Mark. — Meu professor de cinema me deu um A+! — O “+” tinha o tinido metálico de um ornamento.

Embora durante o rebuliço inicial Willy não conseguisse discernir muito bem um irmão de outro, agora percebia que seus interesses eram cuidadosamente distintos: tênis, política, cinema e jogos de computador. Cada filho habitava um nicho próprio, como animais no zoológico, que deviam ser separados por cercas para que não devorassem uns aos outros.

Alma apresentou o prato principal, que, para a surpresa de Willy, era lombo recheado. Eric tinha dito que sua família era absolutamente secular, mas servir carne de porco era sê-lo de uma forma ostensiva. À exceção de Robert, os modos das crianças à mesa eram impecáveis, assim como os de Eric. Alma reabasteceu os copos de San Pellegrino dos filhos e, com discrição, apontou para um pedacinho de comida no queixo de Mark. Ele o limpou enquanto lançava um olhar conspiratório de gratidão para a mãe. Ela é a verdadeira família, pensou Willy. A pessoa que recolhe os cacos quando um daqueles modelos de perfeição arrasta os pés pela casa depois de ser, que Deus nos proteja, rejeitado para interpretar o protagonista na peça da escola.

Willy estava sentada ao lado de Steven, que talvez tivesse adquirido sua ambição de se tornar político dos fascínios descartados de Eric, como um casaco que o irmão mais novo herda do mais velho. Quando ela perguntou se isso significava cursar uma faculdade de direito, ele não foi claro, como se já sentisse a pressão de ter que ser admitido em Harvard. Ele voltou a falar da vitória no debate daquela tarde, explicando os detalhes num tom de voz alto o bastante para que o pai pudesse ouvi-lo. Contudo, embora Steven exaltasse a própria eloquência, nunca chegou a mencionar qual era o tema do debate. E mais, em meio à sua vanglória, ela detectou uma taxa muito mais alta de alívio do que satisfação. Willy já tinha visto isso em tenistas: com pavor suficiente de levar uma surra, a vitória se transforma em “não levei ovos na cara desta vez”; o triunfo se converte na sensação de que se escapou por um triz, mais um adiamento do que um prêmio. A mudança era fatal. Qualquer derrota que se adia em vez de ser impedida adquire toda a inevitabilidade que lhe é concedida. Pode até chegar a um ponto em que, só para encerrar logo a história, você recebe sua ruína de braços abertos, como uma velha amiga.

Examinando o futuro marido do lado oposto da mesa, Willy buscou sinais de que o desprezo sumário de Axel pelos fracassados, a aparente falta de interesse por dificuldades ou justificativas, tivesse sido herdada pelo noivo. Apesar da força dos traços, havia certa suavidade no rosto de Eric, ao contrário das feições de seu pai, cujos contornos redondos e joviais eram pontuados por um espasmo impiedoso e impaciente em torno da boca. Axe fomentava um darwinismo que só uma vida de sucesso fácil poderia bancar. Willy especulou que se sair bem poderia fazer mal à pessoa, caso isso resultasse naquele desdém insensível pelos perdedores. Por mais que Eric parecesse não ter se abalado com tal criação, ele raramente decepcionara o pai. Mark, em comparação, tinha os trejeitos de um menino que não conseguira ser o primeiro clarinetista da orquestra e os tiques furtivos de um mentiroso. Embora até agora a fragilidade lhe parecesse uma injustiça universal, Willy ansiou pelo dia em que o pai robusto e de peito inflado daqueles garotos envelhecesse. Pela intolerância severa à fraqueza a que havia submetido sua própria família, Axel merecia a velhice.

— Se está saindo de troféu na mão — Willy escutou Axel dizer a Eric —, você deve ter endurecido esse seu coração mole. Você me deixou preocupado com aquele negócio da corrida.

— Aquilo foi no colégio, e eu gostaria muito que você esquecesse essa história — disse Eric.

— Olha só — Robert murmurou na direção de Willy. — Meu irmão não só é o Magic Johnson, o Albert Einstein e o Andre Fagassi juntos em uma única pessoa, como também é o Manhattan Gandhi.

Axel pôs Willy a par do que acontecera.

— Na noite anterior a um encontro importante de corredores, esse cara aí começa a mancar por causa de uma torção. Enrola o tornozelo com uma faixa ortopédica; chega a arrumar uma muleta. No dia seguinte à corrida, vejo o babaca dando voltas no ginásio de Trinity. Faixa na arquibancada, muleta no chão. Segurei ele pela gola e disse: deixa essa fantasia aí, garoto, você me deve algumas explicações. Pensei que ele tinha se acovardado. Achei que estava com medo de perder. Alma o pôs contra a parede e conseguiu a resposta. O melhor amigo dele, qual era o nome…

— Yossi Brenner — Eric ajudou, entediado.

Yossi estava competindo na mesma corrida. Eric tinha certeza de que conseguiria vencer o cara, mas não queria que ele se sentisse inferior. Fingiu uma lesão. Entregou a prova de mão beijada. Precisei dizer ao Eric, você não está fazendo nenhum favor ao cara. Se não for você a vencê-lo, vai ser outra pessoa.

Eric suspirou.

— Ele venceu, pai. E a fita teve muito mais valor para ele do que teria para mim. Eu só corria para melhorar no basquete.

— Sempre achei que o gesto do Eric de sair da competição por um amigo foi tão gentil — declarou Alma, em voz baixa.

— Foi um doce — concedeu Axel. — Mas sinto muito em dizer, há pouco espaço para caridade no caminho que o Eric está tomando. Que todos vocês, meninos, estão tomando — acrescentou, como se acabasse de lembrar que tinha mais três filhos.

O olhar de Willy cruzou com o de Eric.

— Eu não me preocuparia com o ímpeto competitivo do Eric. Para realmente dar essa satisfação ao amigo, ele teria de ter participado da corrida e ficado para trás. É óbvio que ele não aguentaria fazer isso. Meio-termo: tornozelo torcido. E ainda ganha a corrida na cabeça dele.

Eric comentou com o pai:

— Eu falei que ela é esperta.

Alma ofereceu mais polenta a Willy, e Axel segurou a travessa.

— A Willy não quer repetir, Alma. Ela tem de ficar de olho no peso.

— Na verdade, sr. Oberdorf, passei três horas batendo bola hoje e estou morta de fome. Adoraria repetir a polenta, que, aliás, está deliciosa — Willy levantou o prato e trocou sorrisos com a anfitriã.

— Você poderia me explicar por que tantas tenistas são gordas? — Axel disse, assentindo para o prato dela. — Capriati é grandalhona. Seles é uma vaca. Até a Sanchez-Vicario é troncuda.

— Bem — Willy saboreou a polenta. — Os patrocinadores fazem pressão para que a tenista seja sexy. Às vezes essa pressão é um tiro que sai pela culatra e elas acabam com transtornos alimentares. Mas não somos pagas para sermos modelos.

— Claro que não — concordou Axel, com entusiasmo. — Mas um rosto bonito como o seu certamente ilumina o jogo. Não há nada de errado em ser bonita, não é? E deve ajudar na velocidade, manter o peso baixo.

Willy decidiu ser cordata.

— A agilidade da Martina realmente melhorou quando ela perdeu uns quilos.

— Mas o lesbianismo é uma pena — Axel refletiu inocentemente. — Quer dizer, tenho uma mentalidade bastante liberal, mas nunca achei que Martina e Billy Jean faziam muito bem à reputação do jogo. Nem todos os fãs são tolerantes como nós.

— O lesbianismo na Associação Mundial Feminina de Tênis Profissional foi muito exagerado na imprensa — Willy fez uma pausa, enfiando a língua entre os molares para evitar trincar os dentes.

— Aposto que a Willy não é sapatão, pai — disse Mark, erguendo as sobrancelhas. — Pergunte ao Eric.

— Então, Willy, quando você joga contra o Eric aqui — perguntou Axel, curvando-se para a frente —, quem ganha?

Os garotos haviam se calado, e, sem que houvesse outro prato para ser servido imediatamente, parecia que Willy seria a sobremesa.

— Ela me vence facilmente, pai — afirmou Eric.

Axel indicou o fato de que registrara a informação ignorando-a.

— Deve ser difícil — compadeceu-se Axel — batalhar numa profissão com um número como 386.

A voz de Willy se ergueu apesar de ela ter tentado evitar que isso acontecesse.

— É cruel sequer ter uma posição no ranking!

— Não precisa se exaltar — Axel acalmou a convidada. — Só estou demonstrando empatia pela frustração de ser relativamente desconhecida.

— Não quero ser rude, mas quantas pessoas já ouviram falar em Axel Oberdorf?

— Metade dos cirurgiões vasculares do país — Axel disse com rispidez.

— Exatamente. Eu também já fui notada pelos meus pares.

— Claro que foi — bramiu Axel. — Com um monte de experiência em torneios, já que meu filho me falou que você tem 23 anos. Mas eu venho me perguntando: não é uma idade bem madura para o tênis feminino de hoje em dia?

— Pai — interrompeu Eric —, fico feliz por Willy ter 23. Não gostaria de me casar com uma toupeira de 13.

— Como é, filho?

— Eu disse que a mulher que você está insultando vai ser minha esposa.

A garrafa de champanhe subsequente não ajudou a pressão sanguínea de Willy a voltar ao normal.

* * *

ALIVIADOS POR ESTAREM OUTRA vez a sós, Eric e Willy trocaram impressões enquanto atravessavam a cidade dentro do ônibus. Quase valia a pena se submeter a uma noite daquelas pelo prazer de dissecá-la depois.

— Sem dúvida você impôs um padrão alto para seus irmãos — Willy arriscou.

— Na verdade, não — alegou Eric. — Tenho um diploma universitário, grandes coisas: sou o mais velho. Participei de alguns times na escola; tenho um histórico acadêmico decente. Agora estou na margem mais distante de uma carreira que é um tiro no escuro. O que há de tão intimidador?

— É que eles parecem, sei lá, cautelosos. Você é muito próximo deles?

— Como poderia ser? — explodiu Eric, e a mendiga no banco RESERVADO AOS DEFICIENTES ergueu os olhos. — O Steven é um cara legal demais para simplesmente me desprezar, então ele só me deprime. O Mark é meio doido, mas daqui a pouco isso passa; ele é ardiloso, está sempre procurando um jeito mais fácil de conseguir as coisas. Ele tem certeza de que eu aprendi alguma espécie de truque, e quer que eu divida meu segredo com ele. Ele vai ficar com muita raiva quando descobrir que o “segredo” é trabalhar duro. Quanto ao Robert, ele me acha um caretão puxa-saco e bajulador. Meu Deus, ele deve ter razão.

— Você não é exatamente o James Dean — concordou Willy.

— Não vou estragar minha vida só para me rebelar contra o antipático do meu pai. Às vezes eu até me pergunto se não é isso mesmo o que ele quer. Se ele não está me tentando a ser um zé-ninguém e assim mostrar que eu sou homem de verdade.

— É uma pena — suspirou Willy. — Seria bem proveitoso para aqueles garotos ter um irmão mais velho.

— Meu pai cuidou disso. Caramba, não os culpo por terem rancor de mim. Se eu fosse um deles, com aquela porra de exposição no quarto do meu pai? Eu mandaria matar meu irmão santificado. Ele nunca quis que nós quatro formássemos alianças, possivelmente contra ele. Dividir para reinar, este é o lema dele, um sempre querendo esganar o outro. E claro que ele conseguiu. Você reparou que ele te perguntou quem ganha quando nós jogamos juntos? Ele está tentando semear discórdia entre nós, colocar um contra o outro.

— Sabe, aquela história do seu amigo Yossi me surpreendeu. Para ser franca, nunca imaginei você renunciando a algum tipo de competição.

— Bem — admitiu Eric —, a história verdadeira é um pouco mais complicada.

Ele puxou o cordão para sinalizar que desceriam no ponto seguinte e sugeriu que caminhassem desde a rua 86.

— Yossi foi meu melhor amigo durante uns anos — Eric continuou, subindo a Broadway. — Sempre fomos rivais. No final, eu passei a achar que o problema era todo dele, mas àquela altura eu estava sempre à frente, então era fácil me sentir superior. Talvez, se fosse o contrário, eu também tivesse sido uma mala sem alça: a gente nunca se dá conta de que está sendo “competitivo” quando está vencendo. No entanto, a situação ficou muito cansativa: quem está ficando mais alto, quem conseguia dormir com as garotas mais desejadas. Só faltava botar para fora e medir com uma régua, entende? Uma banalidade, relembrando o passado, mas na época meus dias não eram lá muito felizes. Eu tinha entrado na lista de melhores alunos enquanto o Yossi ficou de fora por causa de 0,15 na média geral, e ele passou dias de cara amarrada, soltando farpas para cima de mim e fazendo questão de passar o tempo na escadaria com os vagabundos maconheiros.

De mãos nos bolsos, as pernas compridas balançando, Eric ergueu os olhos para o céu claro de outono. Willy teria pensado que ele era tremendamente popular, mas percebia agora que Eric, até pouco tempo atrás, não tinha com quem conversar.

— Então, quando o Yossi teve de participar da corrida, quase saí da equipe — prosseguiu Eric, dando passos mais largos. — Mas eu precisava melhorar meu condicionamento para o basquete. O clima na equipe de corrida naquele ano era de briga, meio sórdido. Todo mundo mencionava o tempo que tinha feito durante as conversas, e mentia, claro, para deixar os outros nervosos, pensando que estavam lentos. Yossi e eu estávamos treinando para os 800 metros. É uma distância complicada… longa o bastante para exigir passos ritmados, mas curta o bastante para também exigir uma arrancada. Eu sabia qual era o melhor tempo do Yossi, já que ele estava sempre puxando esse assunto; e eu sabia do meu, que eu não contava a ninguém. E o meu era alguns segundos melhor que o dele.

“Aquela corrida de que meu pai falou sem parar não era importante… um encontro de duas escolas, embora isso só tornasse a coisa ainda mais intensa. Nós dávamos mais atenção a competições entre colegas de equipe do que aos grandes encontros estaduais. De todo modo, o truque do tornozelo torcido foi resultado de um nojo que me deu no último instante. Quando me imaginei deixando o Yossi para trás, comendo poeira, eu vi o olhar homicida, tenebroso, cruel que ele me lançaria depois que a gente esfriasse. Eu pensei ‘Deixa para ele’. Talvez eu já estivesse de saco cheio do Yossi e ponto final.”

— Você não acha que estava sendo legal?

— Condescendente, talvez. Ou então eu estava só exausto. Olha, você me entendeu direitinho quando falou aquilo. Se eu fosse legal, teria deixado que ele me vencesse na corrida. E você tinha razão: eu posso optar por sair, mas não por perder. Acho que não sou capaz de perder para ninguém — Eric pareceu melancólico, como se sua própria natureza o deprimisse.

“Além disso — ele continuou, os sapatos de cordovão se arrastando na calçada —, eu me sentiria mais orgulhoso de mim mesmo sem o epílogo. Depois da competição, o Yossi falou tanto dos 800 metros, como se estivesse contente por ter me vencido, para variar, que acabei lhe contando que fingi a lesão e entreguei a corrida a ele.”

— Como ele reagiu?

Eric deu de ombros.

— Ele me chamou de imbecil… o que eu era mesmo… e disse que ele teria ganhado de qualquer jeito. Mas eu acabei com as ilusões dele. Ele nunca mais se vangloriou por causa da corrida. Sei que fui um idiota, mas eu era um garoto.

Como as porções sutis da mãe não lhe bastavam, Eric parou em uma barraca de legumes e comprou algumas frutas.

— O que aconteceu com a amizade? — indagou Willy.

— Morreu rápido depois daquele dedo na ferida — confidenciou Eric, ao engolir uma banana enquanto continuava a subir a Broadway. — Não senti falta dele. Sempre fazendo comparações, quem conseguiu isso, quem conseguiu aquilo, era um horror. Você nunca se torna um amigo de verdade. E esse tipo de jogo só é divertido enquanto os dois competem em pé de igualdade. Por exemplo, quando nos conhecemos, nós disputávamos quem terminava primeiro as palavras cruzadas do Times, e era pau a pau. Mas, no último ano, eu me obrigava a recorrer apenas às dicas da horizontal, enquanto ele também usava as verticais. Mesmo assim, eu o vencia por um quadrante. Eu fazia com que ele se sentisse um merda. Ele me deixava encabulado. Que bem isso podia nos fazer?

Inexplicavelmente, Willy achou a história preocupante, e mudou de assunto.

— Você acha que sua família ficou tão feliz quanto fingiu estar, pelo nosso casamento?

— A minha mãe, com certeza. Ela gostou de você… ela iria gostar nem que fosse só por ter enfrentado meu pai. É claro que você deve ter reparado que meus irmãos ficaram roxos de medo. Meu pai vai usar a ocasião para fazer um estardalhaço a meu respeito e, diante da comparação, eles vão se sentir uns vermes. Meu pai? Já que ele próprio não pode se casar comigo, acho que ele vai se acostumar com a ideia.

— Ele pulou na jugular de todas as garotas que você levou para casa?

— Não, você foi a primeira mulher com quem eu apareci que ele provocou desse jeito. Eu sinto muitíssimo. E fiquei impressionado: você lidou muito bem com a situação, ficou de cabeça fria. A questão é que ele testa as pessoas. Para ele, te levar a sério é te confrontar. Tenho certeza de que não pareceu um elogio, mas você devia ficar lisonjeada. Ele te viu como uma rival e achou que você aguentaria.

— Mas como ele pôde fazer piada do fato de que a minha posição no ranking é 386 — Willy tentava compreender —, se a sua posição é 927?

— Por que você acha que ele ficou tão irritado contigo? Você me fez parecer um fracasso.

— Eric, você acabou de começar…

— É isso o que ele está dizendo para ele mesmo. Aos brados. Ele está nervoso com essa coisa de tênis.

— Você não está?

— Não muito.

— Por que não?

Eric lhe jogou uma maçã.

— Sabe qual é a primeira coisa que se aprende em cima da corda bamba? Não olhe para baixo.