WILLY INSISTIU EM ACOMPANHAR ERIC À RECEPÇÃO dos campeões, embora até mesmo Max, para o desalento de Marcella, tivesse fugido da festa. Max alegou que não estava se sentindo bem; realmente não parecia bem. Eric foi cercado pela multidão. Desacompanhada, Willy bebeu demais, e suas alegres tiradas autodepreciativas mascaravam uma autodepreciação mais cruel e um tanto assustadora. Os convidados ficaram muito gratos. Discussões a respeito de sua verdadeira devastação teriam sido incômodas. O papo tenso e truncado logo mudava de que pena, a sua final para assuntos neutros como a probabilidade de Monica Seles voltar a jogar depois de ter sido esfaqueada. Não há dúvida de que os sim, meu marido não é incrível? e sim, eu tenho grandes esperanças a respeito dele de Willy eram tão enervantes quanto obrigatórios.
Já no quarto deles, no Marriott, Willy desabou na cama como se tivesse passado a noite inteira prendendo a respiração.
— Meu Deus, eu podia ter feito picadinho daquela vaca.
— Então por que não fez? — Eric quis saber. — Quer definição melhor do que você podia ter feito do que o que você realmente fez?
Willy tinha passado a noite ansiosa pelo momento em que finalmente estariam a sós, e agora Eric agia com tanta insensibilidade quanto o repórter da ESPN.
— Você nunca vê nenhuma discrepância entre a sua habilidade e a qualidade do seu jogo durante uma partida? — ela se defendeu.
— Se vejo, não deveria. Se você diferencia um do outro, o que você “podia” ter feito é imensurável. Você é capaz do que você faz de fato. Se a habilidade é finita, mensurável, ela é a mesma coisa que o desempenho.
— Então, se a Marcella me derrota, ela é melhor do que eu. Ponto final. — Willy queria que sua enunciação soasse ridícula. Não soou.
— A Marcella é melhor até que você prove o contrário dentro da quadra. Não na sua cabeça. Nem na minha.
— Você está sendo um imbecil — acusou Willy, de cara amarrada. — Você sabe que a Marcella joga que nem um marshmallow. Ela não ganhou, fui eu que perdi. Tive um dia ruim…
— Seus dias ruins também são seus dias — Eric interrompeu, austero. — Eles contam. Não entendo por que você quer que eu te coloque para cima. Você é tão boa quanto o seu desempenho. Trata-se de um esporte. É externo. Estas são a força e a limitação dele. Concordo que há uma mentira nisso. Mas também há uma mentira oculta. Você sabe muito bem como aqueles que só sabem falar, e ficam de braços cruzados, se sentindo valiosas e cheias de potencial, na verdade, são uns merdas.
— O que aconteceu hoje foi uma bizarrice, um ultraje! Por que você não pode concordar? Por que não pode ter confiança em mim?
Eric puxou Willy pelo pulso, para que ela se sentasse.
— Eu confio em você, e é por isso que não vou me entregar a essa análise pós-partida. Sim, foi uma bizarrice, mas aconteceu. Algo deu errado. Se concentre em descobrir o que foi. Passar a mão na sua cabeça e dizer que você é muitíssimo mais talentosa do que a Marcella não vai ajudar em nada. Porque, droga, se ela te dá uma surra uma vez, duas vezes, por mais baratos que sejam os truques dela, você não é melhor. Só existe uma maneira de provar o contrário. Derrotá-la.
Willy afundou de novo no travesseiro.
— Eu estava derrotando — observou, chateada.
— Willy, estava 5-0, 40-0! — Eric explodiu. — O que foi que aconteceu?
Cruzando os braços sobre o peito de um jeito lúgubre, Willy anunciou para o teto:
— Eu estava com medo.
Apesar de ser uma explicação simples, era plausível. No esporte, o medo, por si só, era capaz de dar vida ao pavor. Parecia improvável que Willy pudesse desperdiçar uma liderança tão ampla. Contudo, só de pensar na possibilidade, ela transformou o inimaginável em realidade. Como só precisava de um ponto em três, e de apenas um game, que deveria ter ganhado ao longo do caminho, mesmo que apenas por força do hábito, o grau de terror deve ter sido monstruoso.
— Do que você poderia sentir medo, com aquele placar? — Eric indagou, incrédulo.
— Não quero que você me deixe — a voz de Willy, geralmente um contralto encorpado, estava fraca.
— Eu não te deixaria por causa de uma partida de tênis!
— Não é isso o que eu quero dizer. Você vai participar do circuito da ATP…
— Que é parte do negócio: discutimos isso antes de nos casarmos. Você também viaja para jogar em um monte de torneios. Eu também não gosto da separação, e em breve isso vai acabar e nós…
— Não. Você vai me deixar para trás. Vai ficar famoso. Se você sair muito na frente, vai estar a quilômetros de distância ainda que estejamos no mesmo quarto.
— Bobagem — desdenhou Eric. — Além disso, você perdeu uma partida. Você pode recuperar os pontos neste verão, no Tanqueray, por exemplo…
— Então você concorda. Para nós ficarmos juntos, juntos de verdade, eu preciso ficar pau a pau com você no ranking.
— Não foi isso que eu falei.
— Sua resposta para se tais e tais coisas acontecerem é dizer que elas não vão acontecer — Willy declarou para o lustre. — Você está nervoso com a possibilidade de eu ter razão.
— Willy, nesse tempo todo em que estamos juntos, seu ranking sempre foi muito melhor que o meu. Esse quadro só se inverteu há 24 horas e você já está perdendo as estribeiras. É óbvio que a gente consegue lidar com o fato de não estarmos exatamente empatados, porque é com isso que a gente vem lidando.
— Você sabia que estava me alcançando — o tom de Willy agora era monocórdio e factual. — Do ponto de vista psicológico, é como comparar maçãs e laranjas, partir de trás e superar versus começar na frente e ser ultrapassado. Você sabe disso por causa do tênis. Você está sendo obtuso de propósito.
— Você bem que poderia, durante um mês, experimentar o que é estar no meu lugar depois de eu ter passado dois anos fazendo papel de coadjuvante para você.
— Você está misturando as coisas — disse Willy, exausta. — Você deve estar confuso. — Como se fosse para provar um raciocínio, o telefone tocou e ambos pularam.
Willy atendeu.
— Não, não está muito tarde… Sim, entendo os seus motivos… Bom, sem dúvida ela vai ser perfeita… Não, aquela coisa toda não é a minha praia, de qualquer jeito. Não me importo. Sim. Tchau.
Willy equilibrou o fone em dois dedos e o deixou cair com descaso sobre o gancho.
— Era da Slick Chick. A editora falou que se nós dois tivéssemos ganhado o Chevy teria dado uma bela matéria. Mas da forma que foi, as leitoras ficariam “desconfortáveis”… um conto de fadas despedaçado, sabe? Então ela ficou de papo com a Marcella na festa. Vão fazer uma matéria sobre a Foussard.
— Willy, sinto muito.
Ela se esquivou de seus braços.
— Era uma idiotice, de qualquer modo. Fiquei parecendo uma prostituta.
— Querida… — Eric permaneceu a seu lado, impotente; pela primeira vez na vida, Willy lamentou não ser fumante. — O que eu disse antes… eu só quis dizer que seu jogo é tão bom quanto as suas jogadas. Não quis dizer que é você.
— Não entendo a distinção.
— Eu te amo, meu bem. Não ligo se você ganha torneios.
— Isso é amor? Minha carreira não importa?
— Só importa para mim porque importa para você. Se isso te ajuda… Eu vou ao Tanqueray. Para te apoiar.
— Você vai estar na Europa.
— Eu volto.
Ela não teve coragem de lhe dizer que sua presença na lateral da quadra era como criptonita.
* * *
QUANDO ERIC PARTIU PARA a Suíça, Willy correu para o Sweetspot a fim de treinar intensamente para o Tanqueray, em julho. O prêmio oferecia menos que a metade dos pontos que poderia ter ganhado no Chevrolet, mas Willy precisava da vitória como se fosse uma droga.
Nos treinos, ela tremia. Não acreditava mais que as bolas que lançava cairiam onde ela queria que caíssem e, imagine só, elas não caíam. Max chamava essa carência de fé destinada a se concretizar de “Síndrome de Sininho” — em Peter Pan, a menos que as crianças acreditassem em fadas, Sininho morreria. Ao colocar o tênis e o sobrenatural no mesmo nível, a expressão que ele inventara evocava os sonhos recorrentes em que Willy voava, sonhos aos quais era propensa e de que era partidária. Porém, ultimamente, quando planava sobre cordilheiras de braços abertos, de repente lhe ocorria que as pessoas não voam. Nesse exato momento de apreensão, seu corpo despencava e Willy acordava de supetão, o coração acelerado e o lençol úmido. Se a fatalidade de chegar ao chão em sonhos de queda parecia um mito, sem dúvida, em seu sentido metafórico, chegar ao chão seria uma espécie de morte.
A desconfiança cancerosa era intermitente, e se autoprocriava. A hesitação gerava lances fracos, que geravam mais hesitação, que geravam mais lances fracos. Muitas vezes, a única forma de quebrar o ciclo era desistir, uma solução impraticável durante uma partida.
Como Willy mesma admitia, seu jogo tinha altos e baixos. Quando estava em boa forma, um ponto fluía que nem água; quando estava mal, não só o ponto, como toda a atmosfera, se tornava instável, e avançar pelo corredor da quadra era como caminhar dentro de uma piscina. Os deuses do tênis eram caprichosos, suas dádivas eram concedidas e logo em seguida retiradas. Mas essa última invasão de dúvida era mais parecida com a falha humana de Tomé do que com a negligência divina. Ao sentir a hesitação dela, após uma sessão de treino especialmente atroz, na mesma noite, Max sentou-se com Willy na biblioteca e, por incrível que pareça, regalou-a com histórias de odontologia.
— Meus dentes são bons — ele começou. — Quando criança, nunca tive cárie. Até os 29 anos, quando fiquei mortificado ao descobrir que precisava de uma obturação.
“Perguntei ao meu dentista por que isso tinha acontecido depois de tanto tempo? Ele explicou que os molares se formam em pedaços que crescem juntos para criar um dente sólido. No meu caso, os pedaços nunca se juntaram de verdade. A minha vida inteira, um buraquinho ficou à espera, escondido. Até que um restinho de comida invadiu esse buraco e o dente se deteriorou.”
— Imagino que esta seja uma de suas parábolas, e não uma lição sobre a importância do fio dental — indagou Willy, numa atitude tolerante.
— Nunca treinei uma mulher que não fosse cheia de buracos — Max declarou. — Às vezes, os blocos que faltam estão escancarados, e a pobre coitada não consegue nem pentear o cabelo sem se debulhar em lágrimas. Mas você… a princípio, achei que tinha encontrado uma mulher cujo ego não era um queijo suíço. Agora me pergunto se você não é que nem o meu molar… sem buracos por fora, mas, bem lá no meio, tem um vazio.
— Se as mulheres são “cheias de buracos”, por que treiná-las?
— Eu teria sido um bom dentista. E, poxa, os buracos não são culpa delas. A maioria das meninas já teve de aguentar muito chumbo grosso aos 5 anos de idade.
— Do jeito que você fala, parece que está treinando atletas das Paraolimpíadas — resmungou Willy. — Então, qual é a solução? Para o meu “vazio”?
— Bom, no fundo, é uma questão de pai, mas a esta altura o Chuck não vai mudar muito. Você o afastou. Você afastou todo mundo, até a mim — Max ofereceu-se como voluntário, alegremente. — Esse tem sido o seu segredo. Continue nos rechaçando, portanto. E fortaleça seu esmalte com o flúor da vitória — Max juntou as mãos sobre a barriga, num gesto de plenitude literária.
Já havia se passado muito tempo desde que o fato de Willy voltar para o próprio quarto no alojamento ser um momento nitidamente doloroso para um ou para o outro, e ela se levantou da cadeira sem cerimônia.
— Se um homem tivesse sido esfaqueado por um fã de seu adversário — ela postulou —, não de uma forma horrenda, mas sim desconcertante, ele abandonaria o esporte?
— Não — afirmou Max. — Duvido que um homem ficaria “traumatizado”. Acho que ficaria bravo.
— Então, a Monica Seles também tem um buraco. O que é um consolo indireto.
— Will — ele chamou quando ela já tinha lhe virado as costas —, não gosto de dizer “bem que eu te avisei”. Mas você sabe qual “restinho de comida” é o catalisador do seu declínio, não sabe? Quem se embrenhou no buraco do seu dente feito casca de pipoca?
— Isso é mentira — retrucou Willy antes de bater a porta. — Você adora dizer que me avisou.
* * *
CONFORME PROMETERA, ERIC VOLTOU para assistir ao Tanqueray depois de seu torneio em Zurique, no qual chegou às oitavas de final — desempenho respeitável para um novato no circuito. Para voltar em julho, Eric teve de sacrificar a investida seguinte pela Europa. Estar em posição mais alta no ranking o tornara mais amável. A magnanimidade é, até certo ponto, um exercício daquilo com que a pessoa pode arcar; com algumas exceções tocantes, os ricos dão presentes mais extravagantes que os pobres. Por mais que o gesto a comovesse, Willy lhe invejava o luxo da generosidade. Que legal ser legal.
O Tanqueray acontecia em New Haven, embora qualquer cidade do circuito se resumisse à sua etiqueta de preço — quanto custava ir até lá, quanto custava a estada. Para Willy, New Haven não tinha nada a ver com uma importante universidade da Ivy League, com o notório problema das drogas ou com o curioso e revitalizado centro da cidade. Tinha a ver com pouco gasto — ficava a uma hora de trem de Nova York. Ou então, significava simplesmente a derrocada. Embora com a pouca profundidade de campo, o troféu estava pronto para ser colhido, vencer o Tanqueray conferia menos prestígio que perder as finais do Chevrolet.
Quando a primeira rodada de Willy começou, ninguém na arquibancada perceberia nada de errado. Ah, parecia funesto, jogar naquele estádio enorme de Yale diante de uma plateia tão pequena; e talvez uma partida entre a 223 e a 522 que chegasse até o terceiro set fosse algo inesperado, mas não inédito. Eric sorria da lateral da quadra, socando o ar quando Willy marcava um ponto. Mas a própria Willy não parava de ouvir aquele eco profundo e oco dentro dos ouvidos, como se alguém batucasse um barril de óleo vazio.
É verdade que no tênis deve-se tomar decisões o tempo todo, já que a maioria dos lances pode ser rebatida em várias direções sagazes. Era necessário calcular diversas variáveis ao mesmo tempo: quais eram os pontos fracos do adversário; como configurações similares haviam sido enfrentadas até aquele momento da partida e, portanto, o que o rival estaria esperando de você; a capacidade que se tem de lidar com as prováveis reações. No entanto, o bom jogador batia na bola com a ilusão de que não havia tomado decisão alguma. Compactadas numa fração de segundo, toda essa geometria, memória de jogo e espionagem se condensavam em intuição, em instinto espontâneo.
Mas, na primeira rodada do Tanqueray, Willy estava pensando demais. A incerteza incipiente do verão, a ponderação na tomada de decisões, estavam de volta. Logo antes do impacto da bola, ela poderia ter anotado todas as alternativas que tinha no papel.
Estava 3-4 no terceiro set, a adversária sacando. O game passou a ser de Willy, até que, aos 15-40, ela se confrontou com um break point vital.
Willy avançou, subindo à rede. Seu primeiro voleio foi passível de rebate, mas o lob da adversária foi fraco. Willy poderia correr para trás e bater na bola depois que ela quicasse e assim ser levada à linha de fundo, ou golpeá-la do meio da quadra e voltar à rede. Willy optou pelo overhead, que era mais agressivo. Mantendo o olhar na bola, deu alguns passos para trás para se posicionar.
Mas então ela se lembrou de que voleios do meio da quadra são intrinsecamente arriscados, e um giro começava a fazer com que a bola rumasse para a sua direita, o que ela não havia previsto. Talvez fosse melhor rebater depois de quicar. Sem ter se decidido por uma ou outra linha de ação, Willy ficou literalmente dividida entre duas direções: o torso voltado para a linha de fundo, enquanto os pés dançavam para frente, para o golpe.
Seu grito ainda reverberava pelo Yale Stadium quando Willy percebeu que estava esparramada na quadra. O joelho direito estava torcido numa posição implausível, como um desenho de modelo vivo de um estudante inepto. Não tinha nenhuma lembrança dos últimos segundos; não entendeu como caíra na quadra, até que uma segunda onda de dor irrompeu por sua perna, oceânica e sedativa.
— Willy, meu bem, não se mexa — disse uma voz conhecida. Sua visão estava prejudicada com manchas, e as fileiras da arquibancada ondulavam; não conseguiu distinguir o rosto. — Não tente se levantar. Espere o médico. Aqui, segura a minha mão. Isso mesmo. Aperta com força. Fique parada. Vai ficar tudo bem.
Engraçado como as pessoas sempre dizem isso. Nem fazem ideia se vai ficar tudo bem.
A aliança de ouro estava quente sob seus dedos. Apertou a aliança dele com mais força, como se corresse o risco de cair.
— Eric? — ela sussurrou. — Eu fiz a jogada?
— Claro que sim. Foi impressionante.
Antes de apagar, percebeu que ele estava mentindo.
* * *
WILLY SÓ ENTENDEU QUE passaria por uma cirurgia depois que ela já tinha terminado. Grogue por causa da anestesia, esforçou-se para se apoiar nos cotovelos quando o 3-4 no primeiro set lhe veio à cabeça. Uma quebra, ela não fez uma quebra? Por um instante estava pronta para sacar e fazer o match point, até que surgiu um rasgo na narrativa, como se alguém tivesse arrancado a página. Ainda não estava claro o que havia acontecido. Que algo tinha acontecido, não havia dúvida, e também não havia dúvida de que era algo ruim. Ao absorver a realidade de seu leito de hospital — as roupas de cama duras e ásperas, o travesseiro achatado, a intensidade das lâmpadas fluorescentes que fazia até as enfermeiras parecerem doentes —, Willy foi atacada por uma ignorância primitiva ao estilo de um desastre da Guerra de Secessão. A perna direita… não conseguia senti-la! Quando levantou o lençol, que alívio ver que a perna, apesar da atadura no joelho, ainda estava ali.
Caso tivesse sido capaz de manter esse tipo de gratidão ingênua — seu corpo estava inteiro, estava sã, estava viva —, os meses seguintes teriam transcorrido de forma bem mais suave. Mas a gratidão ingênua era própria das expectativas ingênuas. Doentes terminais podiam festejar mais um dia de sobrevivência, mesmo que da maneira mais débil. Para uma tenista jovem e ambiciosa que de repente se via incapaz de se arrastar até o banheiro sem a ajuda de uma bengala, a gratidão era uma coisa fugaz.
Ao ver que estava no Yale Medical Center e não avançando para a segunda rodada, Willy atordoou-se num caleidoscópio emocional; era impossível manter uma sensação por mais de um instante. Uma fúria roxa rivalizava com o cinza opaco da letargia e da tristeza. Breves lampejos prateados de determinação iluminavam o ambiente, mas logo davam lugar ao ódio negro em relação a qualquer pessoa que passasse diante de seus olhos caminhando alegremente sobre duas pernas pela ala do hospital. Em alguns momentos, o panorama ficava limpo, numa negação total, alva, aniquilante. Em outros, Willy era coberta por uma sensação suave, bege, tolerável — o torpor paciente de quando se espera um ônibus no frio. No entanto, aos poucos, o miasma atrás de seus olhos adquiria um tom amarelo feio, sulfúrico, e, por alguns minutos, Willy não conseguia mexer nem um dedo por causa do pavor total e absoluto que sentia.
Quando o cirurgião-ortopedista foi à cabeceira da cama para conversar, Willy não o interrompeu. Ateve-se ao termo “ligamento cruciforme”, com sua aura semântica de relevância. Tentava prestar atenção, mas havia apenas uma pergunta que desejava fazer.
— Doutor — Willy disse com a voz rouca —, eu vou… — considerou a possibilidade de deixar a questão para depois, mas nesse caso ela não conseguiria dormir. — Eu vou poder jogar tênis?
— Ah, um pouquinho de esporte por lazer, pegando leve…
— Não, doutor, eu jogo como profissão. Posso voltar?
O rapaz inspirou o ar, como se pudesse sentir o cheiro de seu destino no vento.
— Ah — supôs o cirurgião —, provavelmente.
— Provavelmente! O que isso quer dizer?
— Quer dizer que provavelmente — repetiu, aborrecido. — A medicina não é uma ciência exata: todos os corpos são diferentes. Uma das coisas instigantes de ser médico…
Essa não era a hora de explorar o fascínio do cirurgião pelo próprio trabalho.
— Será que o senhor não pode ser mais específico? Por exemplo, quais são as chances?
— Genericamente, com esse tipo de lesão? Entre cinquenta e sessenta por cento — ele cravou, dando de ombros. — Mas as chances, numa base individual, são irrelevantes. Tenho esperança em sua recuperação, mas isso depende de como você vai reagir à fisioterapia. Você pode sentir pontadas pelo resto da vida e seu joelho direito sempre será um ponto fraco. Você vai precisar ser cuidadosa.
— Eu cheguei aqui sendo cuidadosa — murmurou.
— Se você fortalecer os músculos em volta do joelho, talvez volte ao normal ou fique quase normal.
Willy ficou de estômago embrulhado. A distinção entre “normal” e “quase normal” poderia facilmente ser a diferença entre as classificações 215 e 902 no ranking.
— Vou lhe dizer uma coisa — ele declarou, afastando-se da cama. — Se você tivesse rompido totalmente o ligamento cruciforme, ficaria fora do jogo para sempre.
Depois de administrar mais uma dose de gratidão ingênua, ele a deixou a rolar os dados.
* * *
WILLY HAVIA SIDO UMA péssima metodista e, portanto, suas preces eram feitas a uma presença de cuja existência ela não tinha certeza, com o sentimentalismo mudo instintivo de um cão latindo para a lua. Por favor, por favor, se eu voltar a jogar eu vou… Não sabia muito bem o que estava prometendo, nem para quem. Se estava jurando nunca mais ver o tênis como sua prerrogativa, era inteligente demais para acreditar nisso. Se lhe permitissem voltar às quadras, em cinco minutos Willy veria o esporte como prerrogativa, irritando-se quando um voleio caísse muito aberto. Mas talvez fosse da própria irritação, da luta em busca da jogada perfeita que nenhum jogador obtinha, que ela fosse sentir mais saudade.
O juramento sensato era confiar. A dúvida por si só a confinara à cama. Mas agora esta mesma dúvida se materializava, outro monstro suscitado por sua imaginação para estorvar o mundo. Ser “cuidadosa” significava que não poderia mais confiar no joelho direito. Nesse sentido, o castigo era adequado. Quando Eric chegou para o horário de visita, Willy já se convencera de que ela merecia aquilo.
O marido trazia iguarias, para as quais Willy não tinha apetite, e era avessa à ideia de engordar através da comilança sedentária e enfadonha dos acamados. Embora não tivesse nem um dia que estava deitada ali, já sentia os músculos se decompondo, virando geleia.
— O médico disse que você vai ficar bem — Eric murmurou, acariciando-lhe a face.
— Não foi o que ele falou para mim — disse Willy.
— Ele falou que as porcentagens estão a seu favor. Poxa, você está em ótima forma e com a saúde perfeita. Aposto que vai sarar que nem naqueles filmes em time-lapse. — Eric afofou as roupas de cama, mas desviou o olhar quando o lençol a descobriu, evitando o vislumbre do joelho enfaixado. Apesar da atitude de “vamos lá, campeã”, os fios errantes de suas sobrancelhas estavam esticados, em estado de alarme. Os cabelos estavam sujos e opacos, provavelmente Eric não tinha tomado banho ou dormido.
Mais doces e escolhidas com o mesmo cuidado que os chocolates Godiva que trouxera de presente eram as histórias de recuperações miraculosas após lesões, que ele devia ter passado a noite em claro pesquisando. Mas para cada Pat Cash e Thomas Muster, Willy podia citar um Peter McNamara, que também se virara para caçar um lob, também rompera os ligamentos do joelho e, desde então, se qualificava para pouco mais que vender sorvete em Flushing Meadow.
— A recuperação depende muito da atitude — Eric afirmou, enquanto lhe servia um copo do suco de uva que ela não queria.
— Talvez dependa — concordou Willy. — Pior ainda. Minha atitude já é uma porcaria.
— Wilhelm, esse estrago aconteceu ontem, é claro que você está deprimida. Mas, depois, a recuperação é cinquenta por cento temperamento.
— É isso que me preocupa.
— A mim, não preocupa. — Para um homem despreocupado, a testa de Eric estava terrivelmente enrugada, dobrada entre os olhos feito uma sanfona. — Você é a mulher mais perseverante que eu conheci na vida.
— Foi o temperamento que me pôs nessa — resmungou Willy. — Quem hesita está perdido.
— Você está falando besteira. É o sedativo.
— Me faltou graciosidade.
— Ei — Eric separou os fiozinhos pálidos de suas têmporas —, você acha que nunca aconteceu de eu ser inábil em quadra?
— Eu nunca vi. Você sabe quando quer fazer um voleio e você faz o voleio. Você não torce a mão e muda de ideia e cai de bunda, parecendo um pretzel.
Eric rodou na cadeira e passou os dedos pelo cabelo.
— Willy, tenho certeza de que você acha que é humildade. Então você machucou o joelho porque cometeu um erro. Tudo o que acontece a você, foi você quem fez. Isso não é humildade, é arrogância. Existe uma coisa chamada acidente, algo que foge a seu controle. Este país anda tão litigioso e secular que qualquer desastre tem de ser culpa de algum pobre coitado. Mas nem sempre esse é o caso. Existe uma coisa chamada falta de sorte.
— E ter sorte? — Willy cutucou delicadamente. — Você está se saindo bem porque tem sorte?
Os passos de Eric em torno da cama se encurtaram.
— Não tive azar. Talvez dê na mesma.
— Tenho certeza de que você não atribui seus sucessos à sorte — insistiu Willy — ou a um pé de coelho gasto. Você faz por merecer o que alcança. Seguindo esta lógica, eu tive o que merecia.
— Por algum motivo bizarro, essa forma de pensar faz com que você se sinta melhor — discursou Eric. Quando o volume de sua voz aumentou, o visitante da cama ao lado fechou a cortina. — Pensei que o ultrarracional fosse eu, mas, na verdade, é você. Tudo tem de estar em ordem: recompensas adequadas e sobremesas justas. Nada é aleatório, nada foge ao convencional. Essa espécie de rigidez tipo “um, dois, três” não serve para compreender o mundo, porque não faz sentido. Mas por enquanto eu vou deixar por isso mesmo. Como se este calvário já não bastasse, além de tudo você deve levar a culpa! Como se já não doesse o bastante, você tem de ficar nervosa com relação a sua carreira! Mas sofra se tiver de sofrer, se chicoteie se isso te dá alguma satisfação masoquista, flageladora. Meu Deus! — Tinha voltado a andar de um lado para o outro. Ela percebeu que não era nesse estado de espírito que ele gostaria de ir embora do hospital.
Willy estendeu a mão.
— Me beija.
Ele o fez e se aninhou em seu pescoço:
— Eu sinto muito.
Willy se afastou, perplexa. Era a primeira vez que o via chorar.