Dezessete

UMA CARREIRA EM DECLÍNIO, AO CONTRÁRIO DA que está em ascensão, raramente oferece um evento catártico. O fracasso tende a ser marcado pelo que não acontece. É verdade que algumas vidas têm um divisor de águas: o dia em que o banqueiro é preso por desfalque, a terça-feira de novembro em que o político é derrotado no que seu partido concordara que seria sua última disputa por uma vaga no Senado. Porém, a carreira que afunda devagar, sem um cataclismo cuja ocorrência possa ser analisada por seu administrador, é muito mais comum. Decepções se acumulam — outra promoção negada, uma onda de currículos “arquivados”, o amontoado poeirento de cartões dizendo que “recebemos muitas solicitações este ano”, prêmios de distinção dados a estranhos ou (pior) para algum conhecido, que se não era detestado antes, agora é. Mas nenhuma catarse dá vazão a uma grande dor; em vez disso, diversas dores pequenas antecipam o momento da autoavaliação. A esperança sempre acena — um anúncio de emprego, uma competição que ainda não se tentou, um conselho de amigo, uma nova perspectiva ao acordar no sábado. Apenas um contratempo, uma voz sussurra. Um período de espera, uma adversidade a ser superada. Como Eric diria? Um tombo. Bingo, você já está com 70 anos.

No que diz respeito a profissões, o tênis oferecia mais momentos de autoavaliação do que a maioria. Além de encarar o resultado das próprias partidas, os jogadores iam e vinham numa hierarquia pública que mostrava quem era quem. Entretanto, os torneios não paravam de convidar. Um ano imaculado no computador incitava outra rodada. Soluções improvisadas atormentavam: uma raquete nova, corridas redobradas, inverter o enfoque da potência para a astúcia. Pelo menos até chegar aos 30, o autoengano era uma possibilidade.

Consequentemente, foi complicado para Willy Novinsky entender o próprio desespero. Carreiras têm propensão a morrer em câmera lenta, como um acidente de carro que se arrasta por décadas: o telefone nunca toca de madrugada. Uma ambição frustrada tem todas as características de um caso de pessoas desaparecidas: nada é certeza, não há uma data a ser circulada no calendário para apontar quando a catástrofe aconteceu, existe apenas a ausência se prolongando, e a porta da frente permanece fechada. O fracasso é um longo não aparecer, uma festa surpresa em que o convidado de honra não dá as caras; um Grandes esperanças com renda desfiada e um bolo cheio de ratos. Quando Willy deveria esperar que a oportunidade batesse à porta? E depois de esperar tanto tempo, por que não um dia a mais, e mais outro?

Naturalmente, assim como na noite em que Willy cortou o dedo, havia cenas. A bem da verdade, tinham se tornado monótonas: lágrimas, súplicas, acusações, a corrida para o sofá com o cobertor na mão. Os tradicionais pedidos de Eric para voltar para a cama criaram um rastro enfadonho de sarcasmo. Pois o marido só sabia repetir chavões batidos e fracos que podiam ter sido plagiados de um livro infantil. Willy ridicularizava a recomendação de que “acreditasse em si mesma”, chamando-a de insípida e simplista. Eric se encolhia no canto da cama com todas as cobertas, mas nenhum dos dois dormia.

Willy não o culpava por ficar de saco cheio. Ela sempre soava o mesmo alarme — Estou afundando, isso está me matando, tudo o que me mata acaba matando nós dois. Mas a outra opção era ser cúmplice da ficção de contentamento doméstico de Eric: eram um casal com duas carreiras, cada um tinha seus torneios, agendados com cuidado para que tirassem uma semana a cada seis a fim de arrastarem-se de mãos dadas, esfomeados, até o Flor de Maionese para comer frango grelhado. Na verdade, estavam pisando em ovos, como se o chão do apartamento na rua 112 fosse fino demais e pudesse desabar com passos muito pesados. Na primavera de 1996, a tomada do aparelho de som estava com mau contato. Eric estava ocupado demais para consertá-la, Willy apática demais. Toda vez que um dos dois pisava no fio ou perto dele, a música parava. Passaram a andar na ponta dos pés, literalmente, dentro da própria casa, com medo de que o tinido de normalidade fosse bruscamente interrompido.

* * *

— WILHELM, SIRVA OUTRA rodada de seu deeelicioso chá gelado para nós, hein? — Gary Sidewinder tinha o hábito de surrupiar seu apelido, empregando o “v” germânico e sua aura de falsa obediência, assim como fazia o marido de Willy.

Os dois homens estavam debatendo em volta da mesa de jantar, cercados pelo Livro de Normas da ATP e os formulários de inscrição, o telefone à mão para pesquisar o cronograma de mais uma companhia aérea naquela primavera. Sidewinder tinha colocado o copo sobre o tampo de madeira e a condensação criava um círculo branco na mesa. Para Willy, que recolocara o uísque com soda em cima do descanso de copo, o descuido era típico. Gary estava acostumado a que outras pessoas cuidassem dos detalhes. Era um intermediário, um cara habituado a delegar; em outras palavras, um parasita. Não fazia nada que Eric não pudesse fazer sozinho, afora incentivar a vaidade do marido.

O que Eric também era totalmente capaz de fomentar sozinho, mas, com um defensor insistente, o marido tinha a possibilidade da lendária modéstia. Humildade, bem como magnanimidade, era um luxo dos prósperos. Quando Willy assumia o mesmo ar despretensioso, dava a impressão de que tinha baixa autoestima.

— Não, você não quer ficar nesse hotel de terceira categoria — Sidewinder recomendou. — O Hilton de Tóquio é de primeira linha.

Gary Sidewinder era o agente de Eric. Vestia-se como Tom Wolfe: ternos brancos, gravata verde-mar, abotoaduras de jade e meias verde-mar, realçados por uma camisa amarelo-ovo de botões no colarinho, e aparecia à porta, com um chapéu-panamá. Porém, Sidewinder dependia de empregados: lavagem a seco, portadores que lhe entregariam o terno passado dentro de uma hora. Assim sendo, sua gravata estava respingada de molho de salada e o paletó branco bastante amarrotado. Parecia menos elegante do que nos tempos em que já tinha tido dinheiro e agora estava entregue à própria sorte. Como Gary sempre dava a impressão de que precisava de um banho, talvez não tivesse arrumado ninguém que fizesse o serviço.

— Por falar em acomodações, Seboso, você já pensou em sair deste lugarzinho? — Sidewinder aconselhava. — Este apartamento é apertado, parece coisa de estudante de pós-graduação. O tipo de lugar onde você espera encontrar vinho e peixe frito na cozinha. Com o que você ganha, dava para se mudar para um prédio com porteiro lá pela altura da rua 80…

Willy nunca tivera um agente. Sim, ela entendia para que o Gary servia: para negociar com a ATP de quais torneios seu marido se dignaria a participar, pechinchar multas (como se Eric Oberdorf, nascido em berço de ouro, fosse capaz de algo censurável em quadra) e, claro, atrair patrocinadores. Gary era um instrumento dos interesses familiares.

— Preciso admitir: no verão passado, fiquei me perguntando se você não devia ter ido para os torneios do Grand Slam — declarou Gary. — Mas do jeito que seus pontos aumentaram até agora, acho que você tomou a decisão certa. Mesmo se tivesse se classificado raspando, os tenistas têm uma certa postura com os que entram por meio de qualifying. Isso te deixaria em desvantagem. Na minha opinião, boa parte do tênis é psicológica…

, pensou Willy, esfregando manteiga no círculo branco sobre o móvel.

— Neste ano — o agente prosseguiu —, é só colher os frutos, meu caro. Se você chegar nas quartas do Italiano de novo, chega a 75. E aí, você já está dentro. E isso vai te ajudar a manter uma mentalidade positiva. Você precisa se cuidar nos torneios do Slam. Se afundar logo nas primeiras rodadas, daí em diante o evento vai ter um gosto ruim…

— Foi Willy quem me aconselhou a não ir para o Slam no ano passado — interrompeu Eric.

— Wilhelm é uma garota esperta.

— Willy sabe muito de tênis, Gary.

— Claro que sabe — Sidewinder murmurou.

— Pensei em escrever um livro — Willy ironizou a caminho da cozinha. — Uma continuação do Brad Gilbert: Perdendo feio. Trezentas dicas de como perder uma partida para a sua avó com paralisia cerebral.

— Crianças com paralisia cerebral dificilmente vivem o suficiente para se tornarem avós, querida! — Sidewinder gritou da sala. — A questão é qual torneio do Slam. — Já tinham discutido o assunto dezenas de vezes, mas Sidewinder adorava dizer Slam. — Você fica mais à vontade na quadra de cimento. A da Austrália agora é de saibro verde, mas isso já passou… e eu respeito, e respeito mesmo, você por ter tirado janeiro para se dedicar ao seu casamento. Além disso, é uma boa ideia começar uma carreira brilhante no seu próprio país. Não vejo outra opção. É o Aberto dos Estados Unidos ou nada. Você fica com o verão inteiro para se preparar. Você deu uma pensada na ideia de contratar um treinador?

— Que nada — disse Eric. — Já tenho a minha mulher.

* * *

— ELE TEM ESSA pose de patrão porque ele te “descobriu” — Willy rosnou quando Gary foi embora. — Como se você não tivesse chegado a lugar nenhum antes de assinar com a Pro-Serve. Ele te diz onde se hospedar, o que comer, e enquanto isso me trata como uma empregada. É um sanguessuga e eu adoraria que você se livrasse dele.

— Eu sei que o Gary é meio puxa-saco…

Meio?

— Mas sozinho eu nunca teria conseguido patrocinadores com o ranking que tenho.

— Com o ranking que você tem — Willy imitou, tirando os pratos do almoço da mesa. — Como se estar em 75 fosse uma vergonha. Odeio quando você se faz de coitadinho. Soa tão falso.

— Em 75, estou longe de distribuir autógrafos — Eric se apressou para ajudá-la com os pratos. — Foi o Gary que convenceu essas empresas a investir em alguém que ainda está indo em vez de investir em mais um cara que já foi e já está voltando. São patrocínios pequenos, mas são eles que forram o nosso cofre.

— Eles forram o seu cofre.

— Tudo bem, como você quiser. O dinheiro é todo meu, você não pode pegar nem um centavo. — A última tática de Eric era concordar.

Willy derramou o chá que Sidewinder não bebera dentro da pia.

— Gostaria que você não se depreciasse na frente dele — Eric murmurou.

— E você não faz charme se depreciando? Você “está longe de distribuir autógrafos”?

— Não, esse negócio de Perdendo feio. É diferente.

— Claro que é diferente. A minha depreciação é genuína e a sua humildade é uma fraude.

Eric ficou parado no vão da porta, absorvendo os desaforos da esposa feito uma esponja. O ano anterior lhe ensinara a praticar a tolerância passiva.

— O que você acha de tentar o Chevrolet de novo?

— Por que você participaria do Chevy?

— Estou falando de você, sua boba.

— Não, nem de um torneio para crianças feito o Chevy… do qual você não chegaria nem perto… a “boba” aqui não pode mais participar.

— Você podia jogar o qualifying — sugeriu Eric.

— Você não joga o qualifying nem para um Grand Slam!

— A ideia de que eu não participasse de nenhum deles no ano passado foi sua.

— O que provavelmente foi uma idiotice — disse Willy, arrumando a louça na máquina nova. — Se não fosse por mim, você poderia ter tomado a ATP de assalto um ano atrás. Poderia ter esnobado o Gary e suas agências de viagem porque estaria viajando por aí de jatinho particular.

— Besteira, você acertou na mosca. Melhor ir devagar, entender o nível abaixo do Grand Slam… o Alemão, o Italiano. E funcionou. Estou numa posição bem melhor este ano… Então, o que você me diz? Sobre o Chevy?

— Ah, por favor, pare de ser condescendente comigo! — ela quebrou o copo de chá gelado, mas agora podiam bancar centenas de outros para substituí-lo. — Meu ranking é 864! Eu sei disso, eu fico repetindo este número à noite como se estivesse contando carneirinhos. Mas eu não era uma pessoa sem importância: portanto eu entendo do assunto; sei arrumar minha agendinha sozinha. Eu gostaria que você parasse com essa merda de boa vontade.

— Quer dizer que é para eu tagarelar sobre os meus planos o tempo inteiro e ignorar a sua carreira?

— Que carreira?

— É impossível conversar quando você está desse jeito. Esquece — Eric recuou para a sala de estar e pôs um CD para tocar. (Apesar de Willy ter se virado com um toca-fitas por anos, agora eles tinham trezentos discos prateados.) Quando Willy pisou forte até a sala para recolher os últimos pratos do almoço, ela se atrapalhou com o fio de novo e o Sibelius parou de repente, no meio do acorde.

— Sério — Eric apelou pela última vez. — Seu conselho na primavera passada foi perfeito. A única coisa que eu teria conseguido nos torneios do Slam teria sido maus-tratos. Este ano nós vamos nos sair muito bem.

Nós vamos nos sair muito bem, não vamos? Mulheres devem ter predisposição genética para se esconder em cozinhas. Willy encostou a cabeça contra a bancada molhada. Claro que tinha convencido Eric a não derrubar os portões do All England no ano anterior. Mas não porque Eric não estava pronto. Willy não estava pronta. E a discussão demorada, exaustiva, não gerou nada além de adiamento. Willy ainda não estava pronta. Nunca estaria.

* * *

NA MANHÃ SEGUINTE WILLY foi acordada pelo toque estridente do telefone. Não colocava mais o despertador para as seis. Achava que não havia mais motivos para isso.

Enquanto tateava à procura do fone, o braço comprido de Eric segurou-a contra o colchão.

— Alô? Tudo bem, Gary… É um trocado, mas mal não faz. Pelo menos ganho uma viseira de graça. Obrigado.

Quando desligou, Willy resmungou com o fio se arrastando pelo rosto.

— Você já acha que é para você.

— E não era? — indagou Eric, se levantando. Era aficionado por fatos e os utilizava para se proteger de seus verdadeiros significados.

— Então põe o telefone do seu lado da cama — Willy rosnou, pegando o aparelho. — Você tem razão, é sempre para você. Outra empresa te oferecendo um contrato de bebidas isotônicas. O diretor de algum torneio acenando com um cachê… — ela deu um puxão no telefone e a tomada saltou da parede.

Eric pegou a tomada e a enfiou estoicamente no soquete.

— Você quebrou — ele anunciou sem perder a calma. — O plástico saiu.

— Compra outro. Você é rico — Willy recolheu suas roupas. Ultimamente se sentia desconfortável quando Eric a via nua.

— Não sou rico. Pela primeira vez estou ganhando o suficiente para viver. Isso não quer dizer que agora você pode destruir as coisas. Pelo menos dessa vez o que você quebrou não custa muito — ele repreendeu com um autocontrole paternal —, mas o conserto vai ser uma chatice.

— Não se preocupe, eu vou acabar cuidando disso. Assim como eu compro a comida, e passo o aspirador, e tiro o lixo, e limpo o banheiro…

— Eu já falei que a gente pode arrumar uma empregada.

— Você tem uma empregada!

A polaridade aumentava; sempre aumentava. Quanto mais maturidade circunspecta o marido reunia, mais infantil Willy se tornava. No mínimo, a consciência de que estava sendo pueril fazia com que ela o fosse ainda mais, usando da mesma estratégia de punição que empregava na quadra em seus momentos de maior perversão: jogando uma bola mais assustadora a fim de reprisar de modo adequado o erro que a precedera. Pois independentemente do quão enfastiado Eric ficasse com as injúrias mesquinhas e a hipersensibilidade de Willy, ela ficava mais enfastiada ainda consigo mesma. Já que o comportamento deplorável adicional parecia uma penitência justa para o comportamento deplorável, suas explosões tendiam a virar uma bola de neve.

Dando pancadas pelo apartamento, Willy concluiu que Gary tinha razão, o lugar tinha ficado apertado. O corredor tinha duas dúzias de raquetes espalhadas — todas, à exceção das três Pro-Kennex de Willy, eram presentes do patrocinador de Eric. O tempo da raquete da sorte, amada e estimada, ficara para trás — como a Davis Imperial, cujo folheado de madeira ela banhava com limão quando criança, enterrando o aro na prensa como uma neurótica assim que o jogo terminava. Antigamente, não existia “uma das minhas raquetes”. Há pouco tempo, Willy se deparou com a Imperial surrada no sótão de Walnut Street e ela estava com uma aparência entristecida — outrora tão fiel, agora abandonada, feito um aliado do primário que é rejeitado quando você se torna popular no ginásio. A cabeça pequena e o misterioso coração compacto haviam ficado obsoletos de forma desproporcional ao seu tempo. Hoje em dia, a possibilidade de que Willy jogasse uma partida com a Imperial era igual a de entrar na quadra de charrete.

Mas os presentes de última geração de Eric eram impessoais e intercambiáveis. Ele era como um homem com amigos demais, que não notaria se um ou dois deles ficassem um ano sem telefonar. Willy poderia ter surrupiado uma delas, mas o tamanho do cabo não era o seu, reforçando a consciência de que as recompensas do marido não tinham caído em suas mãos. As raquetes de Eric se reuniam a seus pés, implorando pelo privilégio de serem usadas, e ela passara a desdenhá-las como faria com seres humanos bajuladores.

Já fazia muito tempo que a mesa de centro de acrílico fora preenchida com bolas usadas, e o assoalho estava tomado por tubos de plástico. Eric trazia suas bolas descartadas para Willy, mas o ar de suas bolas rejeitadas era de mau gosto, como se fossem mulheres com quem passava a noite e depois jogava fora em troca de carne fresca.

E as roupas! Que saudade Willy sentia dos shorts puídos e das meias molengas penduradas sobre os aquecedores, do fedor dos pares de tênis baratos debaixo das cadeiras. Como adorava esfregar a bochecha nas suas camisetas de flanela “leve três, pague duas”. Atualmente? Eric mandava as roupas para a lavanderia: malhas com golas e logotipos berrantes e as engenhosas redes nas axilas para facilitar a entrada de ar. Até Eric admitia que os modelos eram horríveis, mas era pago para vesti-los.

Willy despejou água fervida na cafeteira sem cuidado, espalhando água na mesa. Enquanto esperava o café ficar pronto, ela se retirou para arrumar a cama, deixando Eric entrincheirado atrás do Times. Ela lançou um olhar frio para a fileira empoeirada de troféus em cima de sua cômoda. Estavam organizados em ordem cronológica, da estatueta cromada desprezível do Campeonato do Montclair Country Club às pomposas taças, copas e cálices de cristal. Dois anos antes, Willy previa que acrescentaria uma terceira prateleira, mas as poucas adições recentes eram de miniaturas adquiridas por semis e quartas. Conquistas raquíticas couberam sem problemas no que restava da prateleira.

Ao se agachar para prender o lençol embaixo do colchão, um capricho evidente atiçou seu olhar.

Eric jamais construíra uma prateleira para exibir seus troféus. Ele os juntava em sua cômoda, em total desordem, embora fosse um homem organizado. O excesso já se acumulava no pé do móvel; Willy estava sujeita a tropeçar na bagunça do sucesso do marido.

Eric!

Ele não se apressou.

— O que foi dessa vez? — perguntou, desconfiado, da porta.

— O que você fez com eles?

— Eles quem?

— Seus troféus. Eles ficavam espalhados e agora a sua cômoda só tem um pente.

Ele deu de ombros.

— Entulho demais.

— Você jogou fora?

— Devia ter jogado. Mas como você adora enfatizar, sou convencido demais para isso, então enfiei todos no closet.

Como se fosse para frisar sua preocupação restaurada com a organização, ele pegou um par de meias e pôs no cesto de roupa suja. Ela não entendia por que ele ainda se incomodava com a lavagem das roupas. Com diversas caixas fechadas de patrocinadores debaixo da cama, tinha peças novas em quantidade suficiente para usar uma vez e jogar fora, assim como bolas de tênis.

— Além disso — observou Eric, levando dois pares de tênis de gel e modelos air pumps, com listras fúcsia e azul-claro, para o closet —, esses troféus são espalhafatosos.

— Se você acha que são cafonas e pretensiosos, melhor eu guardar os meus também.

— Não, não faça isso! — Eric berrou quando ela esticou o braço para pegar o do Campeonato do Montclair Country Club e o atirar na cama. — Esses são históricos! — corrigiu-se logo em seguida: — Quer dizer, são preciosos.

— Por que são uma espécie em extinção?

— Porque são seus — Eric pôs a estatueta cromada de volta no lugar.

Lascas prateadas grudaram em suas mãos. Willy o empurrou para o lado e ficou na ponta dos pés, tateando o troféu do New Freedom com as pontas dos dedos. A taça bateu na cômoda e caiu no tapete.

— Você está sendo infantil!

— Estou sendo adulta, para variar — ela contrariou. — Por que deixar meus troféus expostos e os seus com os tênis? Todos aqueles tênis? Você é que está me tratando que nem criança, querendo exibir meus desenhos na porta da geladeira.

Derrotado, Eric autorizou:

— Guarde os seus também, então. Mas eu achava que você tinha orgulho deles.

— Eu tinha. Mas agora eles zombam de mim. Você tem razão, eles são históricos. Sou jovem demais para viver no passado.

Resoluta, Willy puxou duas taças para a frente e jogou-as no colchão. Provavelmente aflito por ver Willy esticando o pescoço, o marido de 1,90 metro pôs a mão em seu ombro e os tirou sozinho. De um jeito carinhoso, Eric enfileirou os prêmios em ordem sobre a cama, em seguida insistiu em cobrir cada um deles com papel e espremer as lembranças dentro das caixas de papelão que sobraram de uma remessa de camisetas. Enquanto ele os guardava, Willy olhou para o closet e seu coração se derreteu. Eric tinha jogado os próprios troféus, desembrulhados, em uma caixa sem tampa que estava caindo aos pedaços.

— Underwood? — ela chamou timidamente, jurando que prepararia um café fresco: quando ele terminasse, a cafeteira já teria esfriado. — Se você fosse casado com outra pessoa… por exemplo, uma dona de casa de verdade, ou uma empresária de área de seguros, ou uma jogadora muito bem-sucedida… você guardaria seus troféus desse jeito, como se fossem segredos sórdidos?

— É claro — ele afirmou com rispidez. — São vulgares.

— Então os meus também são…

Eric amassou um chumaço de papel e atirou a bolinha na cama.

— Eles não são tão importantes para mim quanto são para você! O tênis não é tão importante para mim. É uma coisa em que sou bom, mas que não amo. E daqui a pouco vou estar decrépito e não vou poder mais jogar profissionalmente, e então vou ter de fazer outra coisa, e tudo bem.

Willy olhou para as mãos.

— Que ironia, não é?

— Não, não é. Existe uma relação. Você quer demais ser campeã. É por isso que você empaca. Se você não desse tanta importância, talvez chegasse mais longe.

— A solução é a apatia?

— Não, mas uma dose de indiferença não faria nada mal. Alguns prazeres extracurriculares.

— Tipo o quê?

Eric segurou seus ombros e fez com que ela se virasse para ele.

— Tipo eu.

* * *

O DESTINO DUVIDOSO DE Willy podia ter transformado o marido em mais uma de suas angústias, mas também tinha alterado por completo a visão que tinha de si mesma. Características que outrora considerava estabelecidas, impermeáveis, se mostravam sujeitas às condições atmosféricas, como um chapéu debaixo da chuva. Revelava que aquela segurança que tinha, por exemplo, não era um traço intocável, mas sim um produto de acontecimentos animadores e, portanto, vulnerável ao desastre. Willy nunca tinha se considerado uma pessoa comedida, mas o enfraquecimento de sua voz era mensurável — a não ser quando gritava —, e assim se tornou comum que Eric tivesse que repetir “O quê?” nas ligações interurbanas. A tonalidade de sua fala teria sido transcrita musicalmente em um tom menor, e havia em suas afirmações uma hesitação que em qualquer outra mulher Willy acharia de uma obsequiosidade censurável. Sem dúvida, sempre se julgou cheia de energia, mas agora dormia muitas horas, como jamais dormira, e raramente conseguia reunir o vigor necessário para ir ao cinema. Se ele fizesse a proposta de irem ao cinema, em uma das semanas cheias de compromissos que Eric passava em casa, ela concordava no início do dia, mas, ao anoitecer, na hora de atravessar a porta, se esparramava na poltrona e alegava, honestamente, que estava cansada. Embora Willy antigamente se orgulhasse de seu cinismo, sempre fora, com relação a si própria e à beleza da vida em geral, uma otimista. Mas agora essa atitude amarga tinha se voltado para dentro, fazendo pichações nas paredes de sua cabeça. Enquanto antes esperava — talvez esperasse por ingenuidade, por estupidez — que por fim as coisas se ajeitassem, ultimamente tinha a crença inteligente no potencial de cada dia para catástrofes. Era um aprendizado indesejável. Daria um dente para voltar a ser uma idiota.

Vivendo com uma estranha, às vezes relembrava com carinho a Willy Desimpedida, assim como se recordaria de uma amiga de infância com quem perdera o contato — sua Davis Imperial. Por outro lado, estava desiludida com a alegria de viver que a sósia exalara. O entusiasmo não era inerente a Willy, no final das contas, e sim uma mera consequência da ocasião. Melancólica, Willy imaginou o dinamismo que teria caso estivesse numa maré de vitórias — consumindo cadernos de esportes e revistas de tênis; dividindo fofocas sobre brigas com namorados em vestiários; disposta a provar comidas étnicas, ver peças polêmicas e entrar às escondidas nas piscinas dos hotéis que ficavam trancadas de madrugada. Agora, ainda que a garota travessa voltasse, Willy jamais tornaria a confiar nessa vivacidade. Olharia com receio seus passos leves, que poderiam facilmente ser atrapalhados por uma partida de tênis calamitosa. Na primavera de 1996, Willy foi obrigada a aceitar que a personalidade não era uma constante inexpugnável, mas sim o acúmulo misturado de massacres e estímulos, não apenas a causa, mas também a consequência. Até pessoas felizes eram vítimas, de certo modo.

Pois, se vistos como um todo, os bem-sucedidos eram alegres e olhavam o lado bom da situação, será que o temperamento despreocupado era mérito deles? Ora, tinha dias que Eric precisava fingir que estava de mau humor. Da mesma forma, era pura coincidência que os frustrados formassem um coletivo de misantropos, famosos pela abstenção veemente e arredia e o prazer sádico de destruir as ilusões dos outros? Vítimas de tortura testemunham que o partidário capaz de resistir a qualquer mutilação e manter a integridade é um mito de James Bond. Em algum momento, todo mártir cede. Ninguém escapa.

Enquanto isso, o mundo inteiro lá fora demonstrava uma subjetividade traiçoeira. Nem bom nem sinistro, nem insípido nem fascinante, nem luminoso nem sombrio, o universo externo não possuía qualidades inatas, e sim dependia tenebrosamente da textura de sua lente interna. O fato de que a baía do Riverside Park não iria ao menos continuar sendo um bosque tranquilo e sublime cheio de cães amistosos a aborrecia, pois a mesma passarela à margem do Hudson poderia se metamorfosear em uma pista lúgubre e suja, com cães imundos e hostis, o panorama horroroso e de uma simplicidade ofensiva de Nova Jersey. O Sweetspot também poderia sofrer uma reviravolta da noite para o dia, passando de um abrigo elegante de ripas de madeira a um reino elitista e polido para vagabundos mimados. Willy sentia-se mal por ter responsabilidade sobre a paisagem volúvel que existia tanto dentro quanto fora de sua mente; não havia opção. Assim como o marinheiro suspira pela terra firme, ela almejava algo inevitável e verdadeiro, inalterável de uma forma ou de outra. Contudo, Willy se impressionava com a terrível descoberta de que até a cor de um poste de luz era suscetível a seu gênio asqueroso.

Em raras noites no Riverside Park, Willy lembrava-se de si mesma. Conseguia esquecer que seu ranking estava à beira da obscuridade, e a personalidade, maleável ou não, é, dentre outras coisas, um hábito. Mesmo que só por tê-lo feito tantas vezes no passado, Willy balançava a mão de Eric e brincava de encurralá-lo contra o parapeito à margem do rio, provocando com uma prolixidade lunática enquanto o sol retornava à sua vermelhidão suntuosa original e descia afavelmente sobre Hackensack. Dava para notar pela expressão de Eric que nesses crepúsculos ela voltava a ser bela, sua testa lisa, os músculos ao redor da boca relaxados, de modo que os cantos se erguiam naturalmente feito aves marinhas que voam de barcos que servem de morada, o cabelo solto, livre do austero elástico de náilon. Mas havia, aos olhos dele, um novo princípio — de gratidão, de tristeza, como se a visse de longe ou olhasse as fotografias juvenis de uma amante que havia se tornado intratável.

Talvez Willy também ficasse agradecida por essas tréguas, que atestavam a impossibilidade química do sofrimento ininterrupto. Claro que os vislumbres da mulher por quem se apaixonara devem ter dissuadido o marido de abreviar suas perdas e disparar em direção à porta. Mas, de certo modo, a ressuscitação era cruel — como uma laranja presenteada a um prisioneiro que logo voltaria a se alimentar de pão e água, ou a perversidade de uma remissão curta demais em um caso terminal.

O fato rudimentar da derrocada de Willy ofuscava suas motivações. Mas no vasto tempo livre à disposição dos rejeitados nas primeiras rodadas, era impossível não ponderar: o que tinha dado errado? Willy só podia supor que estava derrotando a si própria. No último ano, as adversárias mal precisaram levantar o dedo: Willy jogava de ambos os lados da rede. Toda a força que antes apontava para fora de si agora apontava na direção oposta, como nos desenhos do Pernalonga em que o bacamarte do Hortelino Troca-Letras está virado ao contrário e explode em sua cara. Por que entortaria o cano de sua própria arma de forma premeditada era outro mistério, mas uma carreira no tênis era curta demais para permitir o desnudamento da alma — assim como, sem dúvida, era a vida de qualquer um. Quando você a entendia, ela já estava encerrada. Portanto, Willy só podia tirar conclusões das estatísticas básicas: estava prestes a completar 27 anos; estava em 864 no ranking. Portanto, sua carreira havia terminado.

No entanto, se a personalidade é até certo ponto um hábito, o mesmo pode ser dito sobre a ambição. Numa atitude maquinal, Willy continuava a fazer inscrições nos torneios desprezíveis que a aceitariam. Pegava o trem para o Sweetspot, seguia para o treino em meio ao torpor e corria dez quilômetros por dia em uma bruma anestesiante. A fé em si tinha todos os atributos da religião, e era igualmente suscetível a crises; Willy era uma sonâmbula em meio aos mecanismos da aspiração, assim como uma pessoa que frequentou a igreja a vida inteira continua a se levantar e se vestir nas manhãs de domingo muito tempo depois de ter deixado de crer em Deus. No mínimo, não sabia o que fazer com o dia. Desde a infância, seu objetivo era Flushing Meadow. Sem ter mapeado algum destino alternativo, Willy caminhava a passos morosos na mesma direção, feito um piloto que cai no deserto e não tem chance de alcançar a civilização antes que a água acabe, mas continua caminhando pelas dunas porque a alternativa impensável é se deitar debaixo do sol e esperar a morte.