Vinte

WILLY QUASE PULOU O CAFÉ DA MANHÃ, mas evitá-lo era um adiamento. O que impunha que ela se sentasse à mesma mesa que Max; escolher outro lugar teria sido ainda mais esquisito. Geralmente com bom apetite, Max estava debruçado diante de somente uma xícara, o rosto exaurido e inexpressivo. A temporada de verão estava no auge; os gritos desordenados e as brigas das crianças mexiam com os nervos de Willy. Boa parte dos admitidos naquele ano estava acima do peso. Os pais não poderiam esperar que aqueles balofos jogassem em Wimbledon tanto quanto simplesmente ficassem mais magros antes de voltarem para casa. O fato de que o Sweetspot tinha se transformado em clínica de emagrecimento sem dúvida deprimia o dono, ou o teria deprimido nas manhãs em que tinha consciência de que tinha alunos.

Willy o cumprimentou inclinando a cabeça e sentou-se diante dele, mexendo o café e soprando dentro da xícara. Max permaneceu imóvel. Parecia relaxado. Se na noite anterior era “superior à ambição”, naquela manhã parecia superior a alguma outra coisa.

— Você imagina — ele iniciou num tom monocórdio e áspero — que vai correr um pouco, puxar peso, e depois, é claro, que eu vou passar algumas horas na quadra contigo.

— A não ser que você tenha…

— Mas é isso o que você imagina.

O café estava horrível.

— É que nós geralmente…

Willy não conseguia encará-lo por muito tempo, mas Max a fitava sem desviar o olhar.

— Depois de tamanho deslize, seu atrevimento continua intacto. Talvez esse seu vazio não seja tão cavernoso assim. Seu ego é de uma fibra notável. Queria poder dizer isso do meu.

Willy abaixou a cabeça, sentindo uma azia. A borra escura em sua xícara parecia medo líquido.

— Já que temos uma relação comercial — ele continuou —, você poderia dar uma passada em meu escritório? Antes de usar minhas instalações? Considere que você tem uma hora marcada comigo.

No escritório, Max se entrincheirou atrás da escrivaninha, cercado de cópias de cartas de cobradores cheias de números de cinco dígitos. Este era o Max Upchurch implacável que recebia os pais das crianças gordas, pais que dariam os olhos da cara por cada grama que ele arrancasse de seus filhos. Este era o Max Upchurch que não tinha intenção alguma de gravar em seu troféu do All England nenhum outro nome que não Maximilian E. Upchurch.

— Nosso contrato — ele começou, juntando as mãos — me obriga a cobrir suas despesas em troca de uma parte de seus lucros durante os primeiros cinco anos de sua carreira profissional. Você se tornou profissional aos 21 anos. Está com 27. Nosso contrato — ele fez uma pausa — expirou.

— O que você quer fazer a respeito? — ela não se sentou.

— No começo eu tinha em mente um arranjo um pouco diferente, mas na noite passada você me informou que a proposta alternativa não era adequada — pronunciou a última palavra com sotaque britânico.

— Eu te falei anos atrás que não era adequado — ela enunciou no mesmo sotaque.

— Eu demoro muito a captar a mensagem.

— Mas agora você captou.

— Perfeitamente — ele afirmou, passando o dedo por um arranhão avermelhado no braço esquerdo. — Então talvez a gente deva prosseguir usando uma base mais à la carte. Você pode alugar um quarto no alojamento das nossas dependências por 700 dólares por mês, ou 1.000 dólares com refeições incluídas. A quadra, 15 dólares por hora…

— Me poupe…

Meu tempo — ele falou por cima dela — é 100 dólares por hora, e isso com desconto.

— Não acredito no que estou ouvindo — um suor frio, leve, começava a brotar da testa de Willy.

— Uma notinha de cem não chegaria nem perto de me recompensar, te garanto.

— Tudo isso é porque me recusei a trepar contigo ontem à noite? É vingança?

— Eu chamaria de justiça — declarou Max, dissimulando ressentimento. — Seu ranking não é digno da renovação do nosso acordo. Meus investidores ficariam irados, e com razão. Não posso nem argumentar que você é um caso de má sorte; seu marido ganha muito bem. Este ano, posso dar baixa em você como se fosse uma dedução no imposto de renda… Você está sorrindo?

— Por levar baixa. Literalmente.

— Meu negócio envolve calcular riscos.

— E você está fazendo as contas.

— E você não.

— Então eu devia ter continuado a tirar a roupa? Para que o nosso contrato continuasse valendo.

— Talvez funcionasse por um tempo — admitiu Max. — Mas integridade custa caro. Por isso que a maioria decide deixá-la para lá.

— E quanto à sua?

— Que motivo eu tenho para me envergonhar? Carreguei você por mais de um ano sem precisar. E tem uma cláusula referente a lesões no seu contrato. Depois que você rompeu os ligamentos, eu podia ter evitado os prejuízos. Na verdade, se eu tivesse documentado que você estava acabada, seu seguro teria me pagado o montante de 50 mil.

— E por que não fez isso?

— Porque sou um cara legal? — supôs Max.

— Não parece que você acredita nisso.

— Já me senti melhor. Pergunte à Angela: no que diz respeito a dividir os bens, sou impiedoso.

— É isso que estamos fazendo?

— Você é o bem. E, numa atitude atípica, estou renunciando a todos os meus direitos. Por favor, não ache que estou te expulsando. Estou te tratando como trataria qualquer outro tenista com seu ranking, sua idade e suas perspectivas. Não era o que você queria? E o Eric pode bancar umas horas de treinamento para você, alugar o seu quarto. Maridos vêm financiando os hobbies excêntricos e dispendiosos das esposas há séculos.

Por um instante, cega pela mesma fúria chamejante que o marido era capaz de provocar, Willy foi obrigada a ponderar se não amava Max, um pouquinho, afinal de contas.

— Trabalhamos juntos por uma década — disse Willy, a boa perdedora. — Você está retirando tudo?

— Você está com uma das minhas raquetes.

Willy assentiu, olhando para as pastas sobre a mesa dele.

— Você pode ficar com a sua raquete. E todos aqueles Boa jogada, os Muito bem, Will e os Você tem tudo para conseguir, Will. Na verdade você estava querendo dizer Belos peitos?

Max estremeceu como se tivessem chegado ao ponto essencial da questão.

— Quando te encontrei em Nevada, você tinha mais talento bruto do que qualquer atleta que eu tinha assumido nos cinco anos anteriores. — O elogio parecia exigir demais dele; ele encostou no espaldar da cadeira.

— Então o que deu errado?

— Talento é só a metade do que conta, Will. Você sabe disso.

— Você dizia que eu tinha a outra metade.

— Sua cabeça já esteve no lugar — ele apertou os olhos. — Não está mais.

— Minha derrocada é culpa do Eric?

— Talvez a culpa seja em parte minha — concedeu Max, e admitir certa responsabilidade pela queda de Willy pareceu animá-lo. — Talvez eu tenha te corroído…

— É. Você corroeu.

— Irônico, não é? Meninas bonitas se jogam em cima de mim o dia inteiro. Você poderia ter se sentido lisonjeada.

— Se eu fosse a Marcella. Mas eu nunca fui uma menina muito boa.

— E é claro que tem mais uma coisa. Que pode reduzir psicologia à conversa fiada — o olhar dele era acusador. — O Tanqueray.

— Mas já sarou — ela interrompeu.

— Não totalmente, Will. Você pode enganar o Eric. Mas como é que você conseguiria me enganar? Olha só como você está, de pé.

Willy olhou para o joelho direito, dobrado. Grande parte de seu peso recaía no pé esquerdo.

— Você favorece a esquerda o tempo inteiro — observou Max. — E tem a hesitação… Você não confia mais nela, e talvez nem deva. Porque dói, não dói? Às vezes o dia todo, ou quando chove. Durante o treino, você faz umas vinte caretas por hora. Seu estoicismo admirável não serve de muita coisa.

— Eu fiz meus exercícios — insistiu Willy. Em pé, numa postura simétrica, ela piscava com força.

— E como. Você poderia ter se recuperado completamente se não fosse por aquela ideia estúpida de pular corda — ele acrescentou amargamente: — A série do Eric.

— Então vou ficar avariada para sempre?

— Tenistas têm uma curva de utilidade. Até os bons existem às dúzias. Não basta conseguir andar ligeiro sem cair — Max abriu os braços. — É preciso ser perfeito.

— Este é meu presente de despedida? Uma desculpa?

— Você precisa de uma.

Foi só quando estava esvaziando o quarto no alojamento que Willy se deu conta de que pela primeira vez em anos Max usara o nome verdadeiro de seu marido.

* * *

QUANDO ELA ABRIU A porta, Eric deu um pulo, num gesto culpado, como se ela o tivesse flagrado de calça arriada diante de uma revista feminina, embora estivesse apenas enrolando a proteção no cabo da raquete nova.

— Você voltou mais cedo — ele comentou, ruborizado.

— Como nós dois sabemos que só vou a Westbrook para foder com meu treinador, achei mais fácil pular a parte em que finjo que treino minhas jogadas.

— Não tem graça — Eric respondeu baixinho. Ele correu para ajudá-la com as bagagens, mas não comentou o fato de que ela havia voltado com o dobro do que levara, boa parte em sacolas de plástico. Os movimentos dele eram erráticos e ele não a olhava nos olhos. — Está com fome? Eu comprei um pouco…

— Não. — Havia naquele dia uma aridez que desejava preservar. Não queria escoras.

— Escuta — Eric exclamou, esfregando as mãos no short como se algo não desgrudasse —, tenho boas notícias.

— Que raridade — retrucou Willy.

— Para nós dois. Recebi uma oferta que não poderia recusar.

— Você não tem o hábito de recusar ofertas.

— Eu, hum, agora tenho treinador.

Willy continuou parada no meio da sala, como uma visita que ninguém convida a se sentar. O apartamento estava desarrumado. Ela não ligava; com o amontoado de roupas de patrocinadores e a conspiração de raquetes estranhas, a casa não parecia mais sua. Era angustiante ter ânsia de voltar para casa quando já se estava lá.

— Ah?

Eric recolheu o couro enrugado do cabo original da raquete. Ao rodear a mulher para ir até a lixeira, ele lhe deu bastante espaço, feito um jogador de squash no meio de um ponto, evitando a área do adversário.

— Só faltam seis semanas para o Aberto. Tenho um torneio preparatório, o Pilot Pen, em agosto. O Gary está me pressionando há meses, e talvez esteja na hora de parar de ser tão teimoso, tipo, dessa vez é importante, é um Slam… Talvez eu não saiba tudo, e se é para ter alguma, hum, ajuda, agora é a hora.

— Não consigo entender por que essa mudança de planos é uma boa notícia para mim.

— Bem — Eric ruborizou. Suas roupas tinham voltado úmidas da lavanderia; começou a dobrar as camisetas esportivas berrantes que estavam secando nas cadeiras. — É, bem… o Max.

Willy permaneceu parada no mesmo lugar. Estava exercitando a distribuição igual do peso sobre as duas pernas. Esticado, aguentando o total de 23,5 quilos, o joelho começou a doer. Um ligamento do qual se tornara íntima se contraía, devagar, feito uma corda de violino que ia aos poucos do ré ao mi.

— Assim — Eric continuou, às pressas —, você e eu podemos ir juntos para Connecticut. Passar mais tempo…

— Você não conseguiu achar — ela disse sem elevar a voz — nenhum outro treinador?

— Willy, você mesma disse que Max Upchurch é o melhor que existe nesta região do país. Por que optar por menos? E tem melhor recomendação que a sua? — Embora não fosse possível que Eric tivesse adquirido seu novo aliado muito tempo antes, o discurso parecia ensaiado. — Max falou que eu posso ir para o Sweetspot, e aí ele deixa as crianças que vão para lá no verão para os profissionais e me acompanha até o Pilot Pen. Imaginei que, se você não tivesse nada agendado, poderia ir junto.

Nada agendado. Você quer dizer: ser dispensada no qualifying de outro satélite.

— Você poderia me dar sugestões, não é? Dizer o que estou fazendo de errado?

— Acho que você sabe o que está fazendo de errado — seu tom foi sacerdotal.

Eric evitou olhar para a esposa.

— Max quer fazer um trabalho intenso em cima das minhas jogadas, pôr a mão na massa de verdade.

— Em vez de “pôr as mãos” em mim. E você vai me acompanhar até o Sweetspot. Como um guardião.

Geralmente, Eric dobrava as roupas com precisão, mas a gola da primeira camiseta da pilha estava descentrada.

— Willy, esta decisão é totalmente impessoal.

— Segundo você, tudo é impessoal. Sua subida no ranking, minha derrocada. Você não tem opção além de sucumbir ao seu talento monstruoso; eu sou destruída por um azar abstrato. Estou começando a me questionar se a gente de fato tem uma relação.

— Olha, eu preciso de um treinador e o Max é a escolha mais óbvia. O nome dele sempre surgia quando eu pedia sugestões a outros tenistas. E foi ele quem me procurou.

— Então ele te ligou hoje de manhã. E nada do que ele falou sugeriu que talvez eu levasse para o lado pessoal?

Eric se concentrou em agrupar as meias.

— Por que a gente não pode dividir um treinador? A gente divide tudo.

— A gente não divide nada, Eric. Nos últimos dois anos, duvido que tenha existido sequer um minuto em que você e eu nos sentimos da mesma forma.

— Não é verdade. Eu também me sinto frustrado, bravo, impotente…

— Por minha causa — Willy pegou a raquete cujo cabo Eric tinha acabado de enfaixar de cima da mesa de acrílico, inspecionando a marca. Wilson. Então, afinal, tinha de fato conseguido o novo patrocínio. Não que tivesse mencionado. Teria sido indecoroso. — Me diga — ela pediu calmamente. — Você vai pagar a ele cem dólares por hora? Preço com desconto, óbvio.

— Não, igual a você: porcentagem. Ele perguntou minha renda atual e disse que se contentaria com dez por cento. Se ele fizer qualquer diferença, já vai valer a pena.

— Ele faz diferença — disse Willy, arrumando as cordas do centro da raquete com um chiado. — Para mim, pelo menos. Sabe, você é realmente incrível, Underwood. Você se apropriou de meia dúzia dos golpes que eram minha marca registrada e os refinou. Se mudou para o meu apartamento e instalou todas essas roupinhas macias que você ganha. Caiu nas graças da minha família… como o verdadeiro tenista no qual poderiam acreditar, e não uma das pobres coitadas das filhas deles. Às vezes parece até que você anda transferindo os meus pontos para o seu ranking. E agora você surrupiou o meu treinador. Pelo que estou entendendo do acordo amigável que vocês fizeram, não sei por que você e o Max não se casam logo. Porque eu fui trocada por um modelo mais novo. Como a sua raquete — tirou os olhos das cordas da raquete e ergueu-os, admirada. — Você meio que é eu, não é?

— Você está louca.

— A versão nova, melhorada — ela levantou a Wilson, batendo o aro contra a palma da mão. — Willy Novinsky sem todos os defeitos humanos, desagradáveis. Sem buracos nos molares. Com um respeitável papaizinho cheio de entusiasmo, e não um zé-ninguém sorumbático de Montclair que não consegue publicar nada. E o melhor de tudo, você é menino.

Eric empurrou as roupas para o lado sobre a mesa de jantar; não tinha mais nenhuma peça para dobrar.

— Você está perdendo as estribeiras de novo…

— Este era o problema da versão antiga. A Willy obsoleta tinha sentimentos. Uns momentinhos de hesitação, grãos de dúvida quanto à possibilidade de que fosse a melhor coisa que já tinha acontecido no mundo do tênis. E o temperamento… o comportamento vergonhoso… recebemos reclamações! Portanto, nosso modelo atualizado é um cavalheiro.

Eric avançou com a mão esticada.

— Se acalme.

— Ele nunca é derrotado, o que não o impede de ser um especialista em perder sem abrir mão da classe. O Max… engraçado que agora vocês se chamam pelo nome; o que foi que aconteceu com “Upchuck”? O próprio Max disse hoje de manhã que tenistas têm de ser “perfeitos”. Achou o arquétipo dele com um só telefonema.

Eric tentou pegar a Wilson e ela se voltou para a mesa de jantar.

— Não é temperamental — ela disse, varrendo para o chão a pilha de roupas dobradas com esmero. — Está sempre preocupado com o bem-estar dos menos afortunados; tenho certeza de que você vai fazer um monte de doações para a caridade quando for milionário. E é bom em tudo! Palavras cruzadas, alemão, matemática… é como se tivessem instalado microchips em você.

A raquete em punho quebrou o vidro que cobria o pôster do New Jersey Classic, e os cacos tilintaram pelo chão.

— Willy, presta atenção — rosnou Eric.

— Não se preocupe — Willy ironizou, atirando almofadas do sofá em cima dele —, a sra. Eric Oberdorf pode limpar tudo isso. Ela pode fazer a faxina — ela chutou a dúzia de raquetes para o chão —, todos os seus equipamentos esportivos

— Se controla!

— …e fazer biscoitos! — Dessa vez, ela mirou na reprodução do MOMA de propósito, e o vidro estilhaçou.

— Me dá isso! — Costurando o caminho em meio às raquetes polvilhadas de cacos, Eric tropeçou nas cordas de pular.

— Você não é meu marido — Willy ergueu a raquete no ar —, você é meu substituto!

Willy não se lembrava de ter abaixado a Wilson. Como no fluxo de um bom jogo de tênis, a raquetada expressava a confluência absoluta de intenção e execução. Pois, se tivesse pensado, não teria feito aquilo.

Eric cobriu o olho esquerdo. Se ajoelhava, de cabeça abaixada, em meio às raquetes espalhadas pelo chão. Por um longo instante, nada fez além de respirar; Willy só fez fitá-lo; até que, por entre os dedos, o vermelho começou a gotejar, escorrendo pela mão. Pá… pá… O sangue pingava na capa de vinil da raquete assim como os primeiros pingos de chuva na quadra quando o céu já tinha escurecido, e, apesar de continuar rebatendo, você sabia que a partida estava encerrada.

— Eric! — Willy agachou e refletiu sobre o cabelo úmido e rarefeito do marido. — O que eu fiz? Ai, meu Deus, me desculpe, eu não quis… Me deixa ver! — Fraquejando, pegou nos dedos de Eric, que continuavam fechados em cima do olho. O corpo dele tremia e se encolhia numa bola fetal. Por um minuto, talvez dois, não falou nem tirou a mão da ferida, e ela soube que naqueles dois minutos ele estava entrando numa vida em que a própria esposa cegara seu olho esquerdo.

* * *

QUANDO ERIC ENFIM TIROU os dedos, havia sangue por todos os lados e era impossível dizer o grau do dano. Willy correu para molhar uma toalha e voltou para aplicá-la de leve no perímetro da órbita e ajudá-lo a caminhar até o sofá, em meio ao remorso balbuciante.

— Querido, você está enxergando? Me diz, por favor, você está enxergando?

Ele respirou fundo e, sob o sangue coagulado, a pálpebra piscou. Prendeu o ar, segurou e então expirou.

— Está embaçado… mas sim… acho que sim.

— Fecha o olho direito. Quantos dedos?

Ele pegou a toalha e enxugou o olho esquerdo.

— Seis?

— Não, dois, Eric…!

— Eu estava brincando.

* * *

AS QUATRO HORAS DE espera no pronto-socorro do St. Luke’s deu a Willy tanta oportunidade de florear seu pedido de desculpas que Eric pediu baixinho que ela desse um tempo. Willy se forçou a examinar a ferida, um corte profundo de mais de dois centímetros de comprimento, partindo a sobrancelha desgrenhada de Eric. Mais tarde, quando o médico perguntou o que tinha acontecido, Willy esteve prestes a contar toda a verdade. Eric intercedeu, declarando que havia tropeçado e batido na quina da porta aberta do armário da cozinha.

Lembrando-se do marido segurando sua mão quando de sua queda no Tanqueray, Willy enfiou a palma da mão por baixo da de Eric no instante em que o médico espirrava novocaína no supercílio, o excesso de anestésico escorrendo pelo rosto feito as lágrimas que ele não derramou. Ela queria que ele apertasse sua mão com força, assim como ela lhe espremera os dedos na quadra de New Haven, mas a mão de Eric estava fechada, relaxada e seca. Manteve os olhos fechados enquanto o médico estimava oito pontos, avisando ao paciente:

— Espero que você não seja muito vaidoso. Vai deixar cicatriz.

Ela quase gracejou que Eric era o homem mais vaidoso do mundo, mas não em relação ao rosto, porém engoliu o comentário. Fazer piada parecia inadequado.

Willy insistiu que voltassem para casa de táxi, embora fossem apenas três quarteirões. Quando entraram no apartamento, arrastando os pés, o corte já estava inchado, reduzindo o olho dele a uma fenda. A órbita estava ficando roxa. Willy realizava um desejo: queria consolar o marido, e a vida dele era tão fascinante que, para isso, ela teve de machucar sua cabeça.

O apartamento estava um pandemônio. Vidro, raquetes e camisetas de tênis espalhavam-se pelo chão. Às pressas, Willy recolheu as almofadas do sofá e colocou-as no lugar. A toalha tingida de vermelho ainda estava enrolada sobre o assento do sofá, onde a tinham abandonado em troca de uma limpa. O vermelho do sangue havia impregnado o estofado. Ao lado da poça grudenta e das digitais escuras deixadas em volta, os pingos desbotados do corte que Willy sofrera na cozinha no ano anterior pareciam insignificantes. Ela esticou um lençol limpo sobre o sofá e fez com que Eric se deitasse. Embora ele tivesse dito que cairia bem, quando ela lhe serviu um conhaque, ele se curvou, arruinado, em direção ao copo e nem tocou na bebida.

Willy se apressou em arrumar carinhosamente as raquetes num canto, recolher e redobrar as roupas, e estava começando a catar os cacos de vidro e jogá-los na lixeira quando Eric enfim falou.

— Acho que seu estado de espírito não está dos melhores para fazer isso.

Ele tinha razão. O manuseio descuidado das pontas denteadas dos cacos induziria um ferimento concorrente. Óbvio e sem classe. Willy então usou a vassoura.

— Eu podia ter ferido seu olho — ela murmurou enquanto varria.

— É.

— Teria acabado com a sua percepção de profundidade. Antes do seu primeiro Grand Slam.

— É — Eric repetiu categoricamente.

— Você jamais me perdoaria.

— Você ficaria surpresa com o que sou capaz de perdoar. Mas é melhor você não querer testar o limite.

— Como eu poderia ter te cegado, talvez eu já tenha testado.

— Até a lei reconhece a diferença entre o ato e a tentativa.

Ela segurou o cabo da vassoura como se fosse um microfone.

— Então você acha que eu tentei ferir seu olho de propósito?

— Por favor, não se exalte outra vez — rogou Eric, recostando a cabeça na almofada. Sob o clarão da luminária, a gaze brilhava. — Essa é uma pergunta que nem vale a pena fazer.

— Me tornei… perigosa. Você não está seguro no mesmo ambiente que eu.

— Normalmente, você faria um escândalo por causa da situação. Se machucaria o bastante e conseguiria criar uma reviravolta para que eu ficasse com pena de você. Supostamente, você não quer minha compaixão, mas estou começando a me questionar se isso é verdade.

— Não mereço compaixão. Sou uma bruxa.

— Tente tirar uma lição mais simples disso, assim você aumenta suas chances de aprendê-la — ele falava sem inflexão. — Como a de que você gosta demais de expressar suas emoções, mas o autocontrole também deve ter sua vez. Ou que você pode até ser mulher, mas é forte o bastante para fazer um grande estrago se não tiver cuidado. Não sou um ícone, Willy, sou um homem comum, e você pode me machucar muito.

— Se você fosse a esposa, a esta altura já estaria num abrigo para mulheres que sofrem violência doméstica. Estaria cercada de advogados te aconselhando a prestar queixa, a pedir uma medida cautelar. Nos tribunais, se você me matasse enquanto durmo você poderia escapar com a condicional.

— Se você não parar de fazer de um incidente bobo uma tragédia grega, eu vou bater em você e aí estaremos quites. É isso o que você quer?

Willy despejou outra pá cheia de vidro na lixeira e ergueu os olhos.

— Você não gostaria? — localizou a Wilson transgressora e esticou-a em direção ao sofá, com o cabo voltada para Eric. — Fique à vontade.

Para sua surpresa, ele pegou a raquete e puxou Willy para perto de si. Enroscando-a debaixo do braço, Eric jogou a raquete no chão.

— Me faça um verdadeiro favor — ele murmurou. — Minha cabeça está latejando. Estou atordoado. Estou exausto. Pegue três aspirinas e venha para a cama.

Ao cambalearem até o quarto, tiveram cinco metros de casamento modelo: seria difícil dizer quem se apoiava em quem. Willy buscou a aspirina de Eric, escovou os dentes e parou diante da pia. Sempre que os dois estavam em casa, ela botava o diafragma antes de ir para a cama, assim evitava ter de se levantar e interromper as coisas caso estivessem com disposição. O hábito otimista persistia, ainda que a disposição tivesse minguado. Mas naquela noite, recuando diante da autodefesa implícita, do descaramento que seria esperar que justamente naquela noite ele iria querer fazer amor, ela deixou o contraceptivo no estojo.

Entretanto, quando ela entrou debaixo da coberta, Eric passou a mão por seu cabelo e pressionou sua têmpora contra o coração dele. Durante alguns minutos, ele a segurou contra o torso, próximo e imóvel, seu peito inflando pouco devido à respiração lenta e superficial do medo — bem similar à forma como cobrira o olho com a palma da mão naquela tarde, como se temesse outro tipo de cegueira, que também poderia acarretar a escuridão em um lado inteiro de sua vida. Enfim, de certo modo satisfeito, capaz de visualizar pelo menos alguns dos minutos seguintes, Eric aliviou a pressão que fazia contra sua cabeça, desceu o dedo até suas costas e exalou profundamente. Segurou sua mão, mas dessa vez não tentou torcê-la para trás, elogiar sua resistência, equiparar a força dos dois. Se havia disputa, era para saber quem se sentia mais fraco ou menos interessado em qualquer espécie de competição.

Segurando-lhe os dedos com delicadeza, Eric traçou pequenos círculos ao redor dos nós. Willy se apoiou no cotovelo e sentiu o ímpeto de soltar de novo um pedido de desculpas, mas ele já estava cansado daquilo.

— Eu… — ela murmurou, e as palavras seguintes saíram com dificuldade — te amo.

Um arrepio percorreu a nuca de Willy, seus olhos esquentaram. Ainda trêmulo por causa da lesão, ele levantou a cabeça do travesseiro para beijá-la e assim ratificar a sensação que ela tinha de que Eric preferia aquela confissão conjugal mais rudimentar a mais arrependimentos. Foram tantos os pedidos de desculpas, e eles não curaram nada. Os olhos de Willy transbordaram e molharam as duas faces, limpando-a como a torrente de lágrimas derramadas por ela quando estava sozinha naquela mesma cama jamais foi capaz de fazer. Ela estremeceu e afundou. Os poucos centímetros até o ombro de Eric pareceram uma queda longa e vertiginosa.

Ao aterrissar, seu corpo relaxou — relaxou e cedeu como não acontecia há anos, portanto só naquele momento Willy se deu conta de que vinha se tensionando, que vinha lutando, mesmo durante o sono, contra alguma coisa, nunca livre. Mas todo aquele esforço servira apenas para apertar ainda mais o nó dos problemas que existiam entre eles. À medida que a tensão abandonava seus membros, suas pernas se entrelaçavam frouxamente às de Eric feito cadarços cujo emaranhado finalmente se desfaz.

Eric pôs dois dedos, como na saudação dos escoteiros, na cintura de Willy, bem no lugar onde os quadris, apesar de estreitos, se alargavam um pouco. Ele adorava aquela curva tenra, maleável, que não existia em nenhum lugar de seu corpo, desenhado com ângulos retos e firmes. O gesto era um sinal antigo, e com isto seu pênis se ergueu, traçou um arco sobre as coxas dele e, por iniciativa própria, esboçou um semicírculo e se aninhou contra as costelas dela.

— Querido — Willy o repreendeu —, você está muito cansado. E está machucado…

— Shh — ele pediu, acariciando a curva. — Eu quero.

Ele queria dizer que estava cansado, sim… em outras noites Eric sustentara todo o seu peso com aqueles braços de veias de aço, mas nesta noite todos os seus músculos haviam se relaxado, e afora o único estímulo em sua virilha seu corpo estava mole. E que estava machucado, não havia dúvida… mas que o tratamento do médico do St. Luke’s só fizera o mínimo dos reparos. O corte sobre o olho de Eric também abrira uma ferida profunda entre os dois, e Eric suturaria tal ferida com uma agulha mais rombuda, porém mais poderosa.

Willy imobilizou o marido e afofou o travesseiro em torno das orelhas para que ele não mexesse a cabeça. Pousando a mão na clavícula dele para frisar que ele não deveria fazer nada, Willy sentou sobre o quadril dele e desceu devagar em direção ao instrumento que repararia a relação dos dois. Não teve como não se lembrar da agulha do médico perfurando o supercílio de Eric, entrando e saindo, entrando e saindo, e, por um instante, sentiu enjoo, mas a náusea passou. Ela e o marido tinham feito aquilo tantas vezes, mas nesta noite Eric parecia atravessar um lugar que resistira à sua penetração havia pelo menos dois anos. Ela se perguntou por um momento onde ele a estocara todas aquelas vezes e qual teria sido a sensação, talvez como costurar um botão de camisa, golpeando cegamente por baixo do pano e batendo contra o plástico duro e inflexível, ao errar o buraco.

Ele a achara, aquela entrada pequenina, onde não havia obstáculo nem término, portanto, naquela noite, ele parecia deslizar e subir pelo seu torso, a ponto de ela senti-lo como um caroço na garganta. Willy olhou para o rosto de Eric e viu que estava inchado, ferido e, contrariando as probabilidades, bonito.

— Está tudo bem — ele disse baixinho. Por mais que já estivesse dizendo aquilo sem usar as palavras, não queria ser mal interpretado. — Você foi ficando nervosa até chegar naquele estado, só isso. Eu sei que você não faria isso de novo. Eu te amo, Wilhelm. Você teria que me dar uma pancada bem mais forte para mudar isso.

— Obrigada — sussurrou Willy, pois aprendera quando criança que esta era a melhor resposta, a mais simples, quando alguém lhe fazia algo de bom, melhor do que gaguejar, envergonhada, Você é generoso demais, não precisava. O perdão verdadeiro era sempre uma opção, não uma exigência, e ela se questionou se de fato existia a possibilidade de se ser generoso demais.

Ao examinar o curativo sobre o olho do marido ao luar, a gaze que formava um quadriculado vermelho por causa do vazamento, Willy ficou perplexa por ter confundido o único aliado de boa-fé que possuía no mundo com mais um inimigo. Não era como se não tivesse inimigos genuínos que bastassem: a irmã, que queria sua mediocridade; o treinador, que queria puni-la por ter agido com a mesma lealdade que ele reverenciava quando aplicada ao tênis; todas as adversárias oficiais que havia no circuito, que a queriam derrotada e de joelhos. Para variar, ela estava encarando não mais um aspirante traiçoeiro em busca do dinheiro do prêmio que deveria receber, mas seu companheiro e campeão: um homem alto mas não muito grande, com seus problemas, tão isolado quanto a própria Willy, tão facilmente criticado, tão propenso a cair com um único golpe quanto ela ao ser derrubada pelo tombo em New Haven. Eric também estava desesperado por uma ilha de trégua em meio à maré alta de adversários hostis, assim como Willy estava por um “porto seguro” no consultório de Edsel. Portanto, Eric era do tamanho normal, e afinal estava sozinho em conluio com ela contra o vasto e monolítico Eles que Eric identificara naquele primeiro jantar no Flor de Mayo: um pântano de humanidade que, se não lhe desejava mal, era, ao menos, totalmente indiferente ao destino de Willy Novinsky, o que poderia ser ainda pior. Infelizmente, este vislumbre perfeito do marido era raro e inevitavelmente passageiro, mas ela tentou agarrar o momento mesmo assim. Ao atingir o clímax, Willy sentiu a malha que havia entre eles sendo derrubada e um jato novo, claro e desimpedido de ar luminoso soprar quando a cortina caiu. Se, quatro anos antes, Eric lhe apresentara o tênis sem bola, nesta noite finalmente inventavam o tênis sem rede.