Vinte e um

NA MANHÃ SEGUINTE O ROSTO DE ERIC tinha virado um balão, o olho era uma lua crescente em tom de amora. A pálpebra estava gorda. Quando tiraram o curativo para trocar a gaze, ela estava grudada. O corte tinha gotejado durante a noite; o pus e o sangue periférico se solidificaram junto à crosta principal. Com medo de mexer na ferida, Eric não limpou a substância viscosa, o que fez com que o corte parecesse muito pior.

Willy poderia muito bem ter golpeado a própria cabeça. Na verdade, teria sido melhor. Por mais que a ferida de Eric latejasse, nenhuma dor sutil seria capaz de chegar perto da lancinante punhalada acusatória que era olhar para aquele galo violeta e lembrar que era tudo culpa sua. Willy alternava entre evitar o rosto dele e devorá-lo com os olhos feito um corvo.

Eric cobrou uma recompensa: Max Upchurch. E telefonou para aceitar os termos do ex-treinador da mulher ao alcance dos ouvidos dela. Willy não falou nada.

Numa penitência voluntária, insistiu em acompanhá-lo ao jantar daquela noite na casa dos sogros, que Eric não quis remarcar. Embora ele fosse de poucas palavras, talvez a atenção sofrida da mãe o atraísse. A ternura de Willy era tingida de culpa e ele esquivava-se de sua mão como se ela não estivesse limpa.

— Pode vir comigo com uma condição — ele concedeu. — De que eu bati a cabeça no armário da cozinha.

Willy se recordou das inúmeras mulheres da geração de sua mãe que tinham topado com a cara contra alguma porta.

* * *

FAZIA QUASE UM ANO que Willy evitava os Oberdorf. Não tivera energia para mais um bate-boca a respeito de se as mulheres deveriam ganhar a mesma quantia como prêmio que os homens ou se “o retorno do investimento nelas não era igual”; ou para revidar as observações sarcásticas de Axel sobre seu ranking. E se Axel já fazia propaganda do talento de Eric quando o filho estava em 972, o alarde por Eric estar na crista da onda do Aberto dos Estados Unidos era enlouquecedor.

O choque de Alma ao abrir a porta incitou Eric a se explicar antes mesmo de dizer oi.

— Meu Deus — exclamou a mulher majestosa e esbelta, tocando no cotovelo da nora. — Eu nunca deixei que ele entrasse na minha cozinha.

Alma empurrou Eric até o banheiro com acabamento em ébano, fazendo-o se sentar no tampo de alabastro da privada para que ela fizesse um novo curativo, untando o corte com mercurocromo laranja. O antisséptico fluorescente cintilava e fazia lembrar a infância. Apesar de fingir impaciência, era evidente que Eric deleitava-se com os carinhos da mãe. Portanto, durante todo esse tempo em que Willy desejava cuidar do marido, ele também desejava ser cuidado.

— Ouvi dizer que você voltou a espancar meu filho! — Axel fez uma mímica de luta com Willy e a conduziu até a sala de estar. Com as bochechas formigando, ela se atrapalhou ao tentar achar uma réplica mordaz.

Quando Eric reuniu-se a eles, Axel bancou o médico. Montando uma poltrona para si com os blocos com tiras de velcro enquanto Eric adornava o acidente no “armário da cozinha” com detalhes suculentos, Willy detectou o estranhamento que qualquer mentira, por menor que seja, gera instantaneamente entre as pessoas.

— Então, preparado para o Aberto, garotão? — Axe perguntou retoricamente. — Disse que ia arrumar um treinador. Deu algum passo nesse assunto?

— Arrumei um treinador — Eric declarou às pressas. Nos últimos dois anos, havia esgotado o arsenal de tópicos neutros. — E como vão as coisas no Mount Sinai?

Surpreendentemente, foi isso. Agora que Eric era de fato um astro, os elogios de Axel, não mais necessários, eram contidos; ele conduziu a conversa naturalmente para o aumento do índice de câncer de próstata. Embora Eric tivesse revirado os olhos várias vezes, devia sentir falta da veneração exagerada do pai. Não era verdade, portanto, que todo mundo amava um vencedor. Pouquíssimos amavam. Já que também não gostavam muito de fracassados, Willy deduziu que era muito difícil agradar as pessoas. Talvez a mediocridade inabalável de sua irmã Gert fosse um reflexo de sua vontade de ser apreciada.

Durante o jantar, eram apenas os quatro. Em comparação com a briga controvertida e turbulenta que encontrara em 1992, o silêncio cortês em torno da enorme mesa de teca era deprimente, um presságio da aposentadoria.

— Então, como vai o Steven? — perguntou Eric.

— Coloquei ele para trabalhar na campanha do Bob Dole — declarou Axel, estufando o peito. — Para aprender os fundamentos das eleições. Vai ser útil quando ele for candidato.

— Qual é a probabilidade disso acontecer a esta altura? — Alma questionou baixinho.

— O garoto tem apenas que aprender a andar com os próprios pés outra vez.

A mãe virou-se para Eric e explicou:

— O Steven está fechando os envelopes. Isto o acalma.

— Ele ainda está naquela quitinete na Avenue C?

— Fomos informados pelo psiquiatra dele — Axel se intrometeu, de cara azeda — que a capacidade do Steven de abrir a própria lata de macarrão Chef Boyardee é digna de orgulho.

À distância, Willy acompanhava o destino dos irmãos de Eric com o mesmo grau de fascínio que o pai dos meninos tinha de consternação. Para a indignação de Axel, Steven não conseguira entrar nem em Yale nem em Harvard; o garoto não tinha ilusões de que Darmouth fosse do mesmo nível. Steven se matriculava nas disciplinas mais puxadas do curso, e nos feriados hibernava no quarto para estudar. Porém, o empenho espetacular não se traduzia em notas espetaculares. Embora o garoto fosse estupendo no que dizia respeito a decorar fatos, sua capacidade irrisória de análise criativa lhe garantia constantes notas “C”.

Ao final do segundo ano de faculdade, algo aconteceu com Steven. Esquivando-se da palavra “colapso”, Axel declarava que o segundo filho que teve estava “dando-se um tempo para experimentar o mundo real”. Mas pelo que se entendia das evasivas da família, o mundo de Steven havia se tornado real demais. Não foi só uma vez que Alma fugiu da mesa de jantar em lágrimas.

Eric perguntou:

— Ele ainda está trabalhando no Departamento de Desenvolvimento da Columbia?

— A escola de medicina o dispensou — Axel declarou, taciturno. — Apesar das minhas ameaças de interromper minhas doações de ex-aluno. O garoto sempre dizia que estava doente. Caramba, ele só precisava atender a porra do telefone.

— Às vezes, atender o telefone pode ser aterrorizante — disse Alma, estudando a truta defumada, mas sem comer nem uma garfada.

— Desde quando? Alma, se você trata o menino como uma pilha de nervos, ele vai continuar uma pilha de nervos!

— E o que o Mark tem feito? — Eric interrompeu. Os Oberdorf, assim como Eric e Willy, estavam sem assuntos neutros.

— Curso de verão — rosnou Axe, o desgosto se acumulando feito uma nuvem. — Ele queria vagabundear pela Europa, para reunir material para sua futura obra cinematográfica — Axel zombou. — Bancado por mim, é óbvio. Mas eu não estava disposto a fechar os olhos de novo. No primeiro ano dele eu disse: “Suas notas vão ser enviadas para cá, camarada, e não pense que você vai interceptar os envelopes que nem você fez com os de Horace Mann.” E o que me mandaram? Em dois semestres, três reprovações por falta em cada um! Eu disse para ele: “Saiba que o Eric nunca foi reprovado em Princeton, e você está na New York University!”

— A NYU não é mamão com açúcar, pai.

— Quer ser um cineasta bambambã — Axel continuou, sem dar atenção. — O que parece que serve de desculpa para assistir a Wagon Train e Gidget Grows Up até as 5 horas da madrugada. Depois, tem a audácia de apontar para o Eric aqui e dizer: “Olha o meu irmão mais velho, ele está voando alto na base do talento.” Eu tento falar para o Mark: “O Eric treina três horas por dia, pula corda, puxa ferro, e sei lá mais o quê. Mas ele ganha o dinheiro dele, ele ganha aqueles troféus…”

— Aposto que ele adorou ouvir isso — Willy murmurou.

— Falando nisso, filho — Axel se entusiasmou —, achei que seria uma boa ideia você dar ao Steven um ingresso para a sua primeira rodada, para animá-lo. Arrumar um lugar no camarote dos jogadores?

— Pode ser — resmungou Eric. — Só não tenho certeza de que me ver jogar no Aberto dos Estados Unidos vai ser uma grande terapia para o Steven agora, pai.

Eric parecia esgotado, além da contusão em volta do curativo. Tinha de perguntar ao pai o que os garotos andavam fazendo porque nenhum dos irmãos telefonava para ele. Devia estar se perguntando se troféus vinham com o dinheiro do prêmio para compensar o que provocavam no resto da vida dele.

— Para onde você despachou o Robert este ano? — Eric completou o trio de atualizações com um entusiasmo desgastado.

— Outward Bound.

— Vai transformá-lo num homem? — Eric perguntou com melancolia.

— O que eu tinha em mente não era um salto tão revolucionário — disse Axe, arrastando a salada.

O telefone tocou. Alma sugeriu que deixassem para a secretária eletrônica, já que era tão raro verem Eric. Enquanto Alma buscava o prato principal, a mensagem era gravada no cômodo vizinho:

“Dr. Oberdorf, quem fala é John Flinders do Outward Bound. Robert foi pego usando drogas, e o senhor sabe que isto leva à expulsão imediata do programa. Será que o senhor poderia me telefonar para discutirmos o assunto? Robert foi embora ontem e está a caminho de casa.”

Nenhum dos convivas ficou surpreso.

— Jesus Cristo — Axel reclamou —, que diabos nós vamos fazer com esse garoto debaixo das nossas asas o verão inteiro, Alma?

— Ele não vai ficar debaixo das nossas asas, querido — ela lhe garantiu. — Quando ele acabar preso na delegacia, você pode se recusar a pagar a fiança, que nem da última vez.

— Já foi ruim o Robert ter sido chutado de Hotchkiss — Axel espumou. — Mas ai de mim se ele largar Williston com 16 anos. Pelo que me parece, Eric, você vai ser o único dos quatro a obter um diploma.

— O Steven só tem mais dois anos…

— É, mas, para conseguir o diploma, alguém teria de colar os cacos daquele menino por tempo o suficiente para ele conseguir assinar o nome.

— E de quem é a culpa? — disse Alma, por entre os lábios fechados.

— A culpa é dele, Alma.

— Você não pode levar crédito pelo Eric sem assumir a culpa por um incapacitado emocional, um mentiroso compulsivo e um delinquente juvenil — ela retrucou com uma raiva controlada.

— O Eric leva crédito pelo Eric! Mas você tem de admitir que eu devo ter acertado em alguma coisa…

Depois de comer muito pouco da refeição adorável de Alma, o grupo passou à sala de estar, onde a mobília modular se deteriorava. As cores dos cubos e cilindros, outrora fortes e típicas de um ambiente de jardim de infância, estavam desbotadas, o velcro não grudava mais: portanto sempre precisavam juntar as formas geométricas de novo. Outrora arrumadas pelos filhos diariamente em confabulações novas e divertidas, aquelas construções não tinham mudado desde a última vez que Willy estivera ali. Na época, debatiam a possibilidade de trocar os brinquedos avant-garde por móveis de verdade. O fato de que os Oberdorf não o fizeram sugeria o idêntico “a gente devia mesmo” desanimado de seus próprios pais e sua casa incuravelmente marrom.

Axel gesticulou em direção a seu trono habitual, insistindo que Willy sentasse nele. Constrangida, Willy ocupou a posição de centro das atenções. Lá vinha. A sobremesa.

— Eric me disse que você está subindo aquela escada pelo caminho errado. O que está havendo? — Axel endireitou os ombros contra o sofá construído, o queixo erguido como num treino de boxe, tentando o velho golpe duplo.

— Com 961 como ranking, os degraus estão se esgotando — em vez de manter os braços próximos ao peito, Willy os apoiou na cadeira e deixou o corpo aberto. Qualquer pugilista decente ficaria assustado. — Tenho mais um satélite enquanto o Eric estiver participando do Pilot Pen. Se for a mesma bomba de sempre, no final de agosto fará um ano que não passo da terceira rodada de um torneio.

— Parece muito desanimador.

— Mais patético, impossível — Willy retrucou. O sogro estava consternado. Ela não só não mostrava os punhos como dava um soco ou outro em si mesma. — Neste caso, vou sair do ranking — o sorriso de Willy foi convidativo. — Puf, eu desapareço.

— Então você tem um grande desafio pela frente — Axe disse rispidamente.

Willy cutucou um calo que tinha na palma da mão, arrancando a pele, embora ela fosse essencial para seu forehand.

— Talvez não.

— O que é isso? Você vai simplesmente desistir? Não acredito no que estou ouvindo. — Ele parecia ter sofrido um ataque pessoal, como se ele é que estivesse sendo privado do esporte.

— Há um momento em que o tênis desiste de mim.

— Mas olha para a Seles — Axel fez um punhal com dedo. — Fora do jogo por dois anos, volta dividindo o primeiro lugar com a Steffi, implacável!

— Ninguém está guardando minha posição no ranking enquanto organizo os pensamentos. E tenho 27 anos. No que se refere ao tênis, sou uma velha encarquilhada. Como você mesmo observou, eu já estava perdida quando nos conhecemos. Se eu tivesse lhe dado ouvidos, você teria me poupado de um bando de problemas.

— Caramba — resmungou Axel. — Para mim, você parece estar em ótima forma.

— Pelo contrário, estou um caco — ela reconheceu amigavelmente. — O tênis não é muito diferente do boxe… é a cabeça que leva as maiores surras.

— Ora essa, não pode ser tão ruim assim! — Axel lançou um olhar de súplica para Eric, mas os olhos do primogênito estavam fechados. Eric vinha atirando inúmeros “não pode ser tão ruim assim” havia dois anos, era óbvio que recebia de braços abertos alguém disposto a assumir o posto.

— Eu já fui da escola do “nunca perca as esperanças!” — declarou Willy —, só que não tem nada de esplêndido na negação quando a esperança já está morta e enterrada. Então, estou começando a considerar a possibilidade de implorar aos patrocinadores do Eric que me deixem vender artigos esportivos. Talvez eu tente um trabalho administrativo na WTA. Ou treine deficientes na Arthur Ashe Foundation. Alguém tem mais sugestões? — Aos próprios ouvidos, sua voz se erguia com um traço de ausência, de desapego. Talvez houvesse uma racionalidade extremada, uma sanidade desertora que era sinônimo de perder a cabeça.

— Voltar para o esporte, é claro — Axel recomendou bruscamente. — Achei que você queria ser uma estrela do tênis.

— Eu queria. Mais do que tudo. Que pena para mim — Willy lhe lançou um sorriso casual, e o sogro recuou, horrorizado. — O problema é que — ela prosseguiu com doçura — não sou qualificada para fazer mesuras. Só sei jogar tênis. Eu poderia fazer parte do séquito do Eric, mas ao que parece sou tão ruim no papel de fã quanto no de competidora.

Willy entrelaçou as mãos. Por um instante, foi invadida por um pragmatismo autossuficiente, uma clareza gerada ao se avaliar com a mesma brutalidade despreocupada que usava todos os dias ao analisar os outros. Ainda que a sensação fosse tranquila, sentia o corpo mais pesado do que de hábito e mais denso, afundando nos cubos macios. Reunir energia para ir ao banheiro era inconcebível.

— Já pensou em ter uma família? — indagou Alma.

— Não — cortou Willy.

— Mas eu entendi, quando vocês dois se casaram, que meu filho tinha encontrado uma parceira em mais de um sentido — Axe criticou. Para a surpresa de Willy, ele parecia ansioso para apagar a imagem da nora como matrona estressada com uma penca de filhos. — O Eric disse quando te trouxe aqui pela primeira vez que você dava uma surra nele.

— Ah, isso não durou. Ele me derrotou no nosso primeiro aniversário de casamento. Como poderia ter feito desde o primeiro dia, mas seu filho tem uma veia gentil. Agora, pensando nisso, ele ter entregado tantos jogos foi de uma doçura incrível.

“Eu achava que era talentosa, até ele aparecer — Willy assentiu para o marido de um jeito carinhoso. — O Eric me ensinou o que é talento de verdade. Para começar, independe de esforço. Mas, acima de tudo, ele tem o preparo mental: resiliência, tenacidade, e, se vocês me desculpam, arrogância. Ele desdenha dos outros jogadores, então eles não o intimidam. O Eric é um campeão por natureza. Eu venho da turma dos derrotados.”

— Espera aí, eu vi você jogar três anos atrás — Axel anunciou. — Talvez de início eu relutasse em admitir, mas tive de concordar com o Eric quando ele falou que tinha se casado com uma grande vencedora.

— Sim, seu filho demonstrou ser extremamente leal — Willy declarou com melancolia. — Queria poder dizer o mesmo de mim. Foi ideia dele mentir para vocês, mas esse corte horroroso? Fui eu.

Enquanto as pupilas de Alma se dilatavam com assombro, Eric enfim abriu os olhos. Estavam bravos. Agravado por anéis de manchas roxas, o olhar dele pareceu perigoso.

— Vocês vão ter que desculpar a Willy — ele interveio com seriedade. — Meu ferimento a chateou e ela está fora de si. Ela acha que tem culpa porque não fechou a porta do armário da cozinha.

— Não há necessidade nenhuma de se culpar por acidentes domésticos — murmurou Axel, mostrando que não tinha vontade de interferir numa disputa que acabara em oito pontos, como se, caso Willy fosse mesmo violenta, ele pudesse levar um soco. Em vez disso, ele ponderou: — Por que não, sei lá, voltar às raízes? Eu achava que você tinha um supertreinador.

— Nos divorciamos — anunciou Willy.

O quê? — Eric exclamou. Ele não sabia nada sobre a “reunião com hora marcada” no escritório de Max.

— E não é de se admirar — a gargalhada de Willy foi estrepitosa. — Joguei contra um italiano cheio de marra do Riverside Park no mês passado. Um amador, ou melhor, um péssimo amador, que nunca jogou uma partida profissional na vida. Ele me derrotou por 0-6, 7-6, 6-2.

Eric se inclinou para a frente.

— Willy, está ficando tarde…

— São só 10 horas da noite.

— Tudo bem: não estou me sentindo bem, ok?

Willy pegou a bolsa, numa atitude obediente.

— Escuta, por que a gente não joga uma hora dessas? — ela propôs alegremente ao anfitrião. — Do jeito que tenho jogado ultimamente, você pode se surpreender.

Com um gesto quase imperceptível, Eric fez que não para o pai.

— Não, Will — disse Axel, tocando em seu ombro com mais delicadeza que de hábito, como se a doença dela, fosse qual fosse, pudesse ser contagiosa. — Você vai me deixar esgotado, e um velho não precisa desta humilhação pública. Continue com os profissionais.

Instigar a caridade em um homem implacável como Axel Oberdorf foi a ofensa suprema da carreira de Willy.

* * *

— QUANDO VOCÊ FOI eliminada nesta semana no qualifying, como perdeu a maioria dos pontos? — Dr. Edsel cutucou.

— Erros não forçados.

— Isso não sugere uma atitude deliberada, até mesmo resoluta? Você mencionou “jogar dos dois lados da rede”. Já foi uma ótima atleta. Você não está jogando bem demais do outro lado?

— Sim, sim, eu me odeio — Willy cantarolou, entediada com a autoanálise.

— Acho que não — ele discordou. — Você tem uma queda pelo drama — explicou Edsel, o olho errante se voltando em uma direção enquanto o outro passeava pelo lado oposto do ambiente; ele a cobria de ponta a ponta. — Não é muito mais melodramático que o seu ranking se torne desprezível, inexistente, em vez de ser apenas um pouco inferior ao do seu marido? Na grandiosidade de sua derrocada, vejo sinais de afeição por si mesma.

— O que é isso? Aquela velha história de que eu gosto de chafurdar?

— O fracasso pode se tornar uma ambição por si só. Sua sedução está na possibilidade de alcançá-lo. E você tem uma faceta histriônica, sra. Novinsky. Você carrega uma bagagem histórica, como todo mundo, mas nada do que você me disse sobre seu passado sugere que você tem de perder todas as partidas que joga. Sua consistência revela que você tem um propósito.

— Tipo, melhor ser um desastre do que ser só medíocre?

— A notoriedade é uma espécie de distinção. Esta dramaticidade a mantém sob os refletores. Você alega conservar um senso de proporção, mas na verdade você incorpora totalmente a figura trágica. E furtivamente faz com que seu marido se sinta responsável. Caso você tivesse mantido seu ranking pelo menos em torno do top 200, ele teria te ultrapassado, mas a situação não lhe pareceria tão intolerável. Na verdade, ainda pareceria intolerável para você. Portanto, para frisar a indignidade de ser flanqueada, você exagera a disparidade.

Este tinha sido o discurso mais longo que Edsel proferira naquelas semanas. Willy tinha decidido manter em segredo o fato de que, ao perder a última partida, sentira-se fisicamente estranha — pesada, fraca, rígida; sua menstruação estava atrasada. Edsel estava tão contente com a própria percepção que comprometer sua glória seria grosseiro.

— Esporte é teatro — ele admoestou. — Você se pôs no papel da pessoa que tem um desempenho abaixo de seu potencial, da atleta talentosa com um defeito fatal. Teatro é uma armadilha. Suspeito que você seja tão boa atriz quanto tenista. O personagem que você está interpretando é desconsiderado, torturado, menosprezado. Tenho certeza de que a renda do seu marido é uma frustração… ela te nega uma vida na sarjeta, e deve ser por isso que você tem relutado tanto em se beneficiar do dinheiro dele. Você encara a aflição como substituta da aclamação.

Willy resmungou.

— Me soa familiar.

— Sim — disse Edsel, unindo as mãos como quem se dá uma leve salva de palmas. — Não é mesmo?

* * *

— ADMITA — WILLY disparou. — Você está feliz.

A cabeça esticada do pai completava sua postura torta; ele sempre se sentava naquela poltrona surrada como se tivesse se dividido em dois.

— Estou feliz — ele declarou — que um de vocês conseguiu ganhar a vida nesse negócio de tênis, por mais improvável que isso seja.

Willy não conseguia se sentar. Aquela toca era minúscula para andar de um lado para o outro, com o tapete marrom, o revestimento marrom, o estofado marrom — ah, meu Deus, era de uma austeridade tão fecal que ficava enjoada.

— Mas entre um de nós, você fica feliz da vida que tenha sido o Eric. Assim o fruto de seu próprio sangue não contesta sua adorada visão de mundo.

A psoríase no rosto do pai estava na fase em que descascava. Flocos pálidos caíam na gola, como se o atrito da decepção cotidiana o desgastasse.

— Eu só fico “feliz da vida”, Willow, por você ter um marido de quem pode se orgulhar.

Durante muitos anos, Willy imaginou que o aspecto imperturbável do pai era feito para desarmar; agora suspeitava de que a placidez tinha o intuito de fazer o que fazia na verdade: enervar. Da mesma forma, a ingenuidade agressivamente surda dos pais em relação ao casamento dela e a como ela devia se orgulhar de Eric constituía um sadismo, um moralismo, uma credulidade obstinada. Willy tinha ido para casa diversas vezes e relatado com tristeza as últimas conquistas do marido, mas os pais nunca reparavam em seu tom, na maneira que espumava por entre os dentes como se ela tivesse trismo.

— Mas felizmente você não foi obrigado a ter orgulho de mim — Willy rosnou. — Você já investiu demais na convicção de que é patético e absurdo ter esperanças. Se eu tivesse conseguido, você teria de questionar se, caso tivesse sido realmente determinado e tivesse mandado aqueles editores para aquele lugar, você afinal poderia ter se tornado um escritor. Meu Deus, você nem contou para a gente que escreveu aquela pilha de livros. Eu encontrei por acaso, no sótão!

— Eu não via razão para sobrecarregar vocês duas com as minhas aspirações natimortas — ele retrucou, tranquilo. — Mas sim, uma pilha de livros. Isso não sugere um pouco de dedicação? Que não deu frutos. É verdade que “invisto”, como você disse, na crença de que a meritocracia no mercado editorial de Nova York é imperfeita, que certos talentos não são reconhecidos. Mas também considerei a possibilidade de que eu não tenho o que é necessário.

— Então essa ideia deveria me ajudar a dormir à noite? “Ah, bom, acho que não sou boa o bastante, que nem meu pai?” Que foi o que eu ouvi, incessantemente, quando criança. Tênis é metade confiança… ou falta de confiança… e você com certeza fez um bom trabalho nesta área. Agora estou recolhendo os inúmeros frutos desse trabalho duro.

— Ultimamente eu tinha a impressão de que você responsabilizava seu marido. Agora seu ranking é culpa minha? — Willy imaginou ter percebido um sorrisinho. Teorias sobre os seus pais pareciam mais críveis quando eles não estavam por perto.

— Você não ajudou — murmurou Willy, em dúvida.

O pai dobrou o jornal cuidadosamente, formando o tubo que aprendera a fazer quando era menino e entregava jornais de porta em porta. Era um hábito antigo, compulsivo, pelo qual Willy sentia uma pontada relutante de afeto.

— Tente imaginar uma menininha de 8 anos — o pai esticou a mão acima do braço da poltrona. — Desta altura. Ela ama jogar tênis, você a leva ao parque, ela é misteriosamente boa naquilo. Mas acabou de perder o dentinho de leite, e há pouco tempo você trocava as fraldas dela. Ela vê uns tenistas profissionais na tevê e diz que é isso o que ela quer ser quando crescer. É uma fofura. Você a leva a sério? Você começa a jogar milhares de dólares na fantasia dela ou será que isso seria uma canalização óbvia demais da vaidade do próprio pai?

— Você começa a levá-la a sério quando ela começa a vencer torneios de juniores a torto e a direito. Quando ela chega a terceiro lugar em Nova Jersey, apesar de você não deixá-la competir nem na Pensilvânia!

— Nós tivemos duas filhas, Willow. Acho que nunca faltou nada a nenhuma das duas, mas meu salário em Bloomfield era pequeno. Como você se sentiria no lugar da Gert, com seus pais sacrificando suas férias de verão, suas viagens à praia, para que sua irmã pudesse jogar tênis pelo país inteiro? Você não teria motivo para ficar zangada, e não passaria a odiar a irmã?

— Sua diplomacia não funcionou. Ela me odeia do mesmo jeito — Willy esparramou-se na poltrona vizinha.

— A Gert realmente te acha uma prima-dona — concordou o pai. — Mas eu não entendo que culpa tenho nisso.

Willy lhe lançou um olhar furioso.

— Se eu tivesse te pressionado — o pai continuou amavelmente —, o tênis poderia ter virado uma obrigação, um sofrimento. Do jeito que foi, você se pressionou, o que cria uma confiança mais real. Na verdade, eu me pergunto se você não se pressionou tanto que agora você se ressente da pressão tanto quanto se ressentiria caso ela tivesse partido de mim.

Willy passou da fúria ao pânico. Viera espumando no ônibus 66, balbuciando acusações que fazia com que as pessoas dos bancos vizinhos a olhassem de soslaio, mas agora tudo o que o pai dizia soava tão sensato.

— Ei — o pai lhe deu uma palmadinha no joelho. — É uma bela noite de verão. Está abafado aqui dentro. Que tal uma caminhada?

— Não estou muito a fim.

Ele se levantou e avaliou a filha.

— Nunca te vi tão pálida a esta altura do ano. Você geralmente fica com um bronzeado lindo.

— Não posso mais treinar no Sweetspot — Willy tentou em vão controlar o tremor da voz. — Meu contrato no Forest Hills expirou este mês e o Max não renovou. Só posso treinar nas quadras públicas, e perdi tão feio para um idiota do Riverside que tenho vergonha de dar as caras.

— Venha — o pai persuadiu num tom doce. — Você nunca recusou uma caminhada comigo numa noite como esta.

De cabeça baixa, Willy se levantou da poltrona feito uma moradora do asilo da mãe.

Percorrendo a Walnut Street, uma brisa morna banhou o rosto de Willy, silenciando os carvalhos e os bordos. As casas e celeiros nos estilos do Segundo Império ou colonial holandês serviam de fortaleza para a rua, dando-lhe um ar duradouro e seguro. Vaga-lumes brilhavam e, num breve lampejo de inspiração infantil, ela capturou um deles. Submetera-se com tamanha docilidade ao aprisionamento que Willy amoleceu e deixou que ele partisse.

— Se isso significa alguma coisa para você, me desculpe por não ter partilhado minha frustração de não ter me tornado um grande escritor — a voz do pai era grave e calma, como o vento nas árvores. — Eu simplesmente fechei essa página, considerei uma outra vida. Você é jovem demais para compreender, mas a maioria das vidas é formada por várias. Eu deixei aqueles livros para trás. Não é que nunca pense neles, e você sabe muito bem que considero boa parte do que é publicado atualmente uma porcaria. Mas eu odiaria pensar que você concluiu que, por causa disso, a minha vida é apenas amargura e crueldade. A vida é muito mais que o sucesso profissional.

— Tipo o quê? — ela perguntou, amuada.

Ele apontou para a vizinhança no momento em que se aproximavam da Park Street.

— Uma caminhada numa bela noite de verão. Música… aquele Samuel Barber que você ouvia sem parar. Nhoque de espinafre no Rispoli’s, um filme antigo do Sherlock Holmes de madrugada. Ou a expressão no rosto da sua mãe quando anunciei que finalmente iríamos ao Japão — ele deu de ombros. — E perdão por ressuscitar um assunto espinhoso… mas tênis.

Haviam seguido instintivamente para o parque público onde Willy aprendera a jogar. O poste lançava uma mancha de luz laranja sobre a quadra decrépita, como uma paisagem cuja lembrança era apenas parcial. A pista estava rachada e esfarelada. O portão, outrora trancado após o anoitecer, estava fora das dobradiças em certos pontos e balançava, abrindo-se totalmente. Willy arrastou os pés pelo piso de asfalto, tocando os escombros do fundo da quadra com a ponta dos dedos. Parecia sua própria vida, em ruínas.

— Ainda jogo de vez em quando — disse o pai.

— Nós não jogamos juntos há anos.

— Bom, eu não tinha esperança nenhuma de te proporcionar um grande jogo. Desde os 10 anos você me dá uma sova.

Willy estava prestes a acrescentar algum comentário gratuito em que diria que agora talvez ele tivesse chance, mas decidiu. Já chega disso.

— Adoraria jogar com você. Só por diversão.

— É isso o que eu gosto de escutar. Por diversão.

— Eu não deveria estar aqui, pai — ela assumiu. Willy não conseguia se lembrar de ter jogado tênis naquela quadra após o anoitecer. Parecia errado, burro. Sempre relembrava aquelas linhas quando iluminadas pelo sol. — Hoje o Eric está jogando as quartas do Pilot Pen. Eu deveria ter ido. Eu não iria suportar.

— Você tem razão, deveria ter ido. O Eric merece seu apoio. Ele precisa disso.

— Ele merece, sim, mas não precisa de jeito nenhum.

Os Novinsky não eram uma família dada a contatos físicos, e Willy estranhou ao sentir a mão do pai em seu ombro.

— Você me preocupa, Willow. Não te vejo curtindo essa coisa de amor eterno. Me desculpe se minha tentativa, tola, eu imagino, de protegê-la da possibilidade de que suas esperanças fossem frustradas saiu pela culatra, e por você ter pensado que eu não tinha fé em seu talento. Eu só não queria que você pensasse que nosso amor por você estava condicionado a você conquistar a glória para a nossa família. O afeto do resto do mundo já é condicional o suficiente.

“Mas você não pode apostar tudo o que tem no tênis. Não que não deva continuar tentando. Mas qualquer carreira é cheia de ciladas, boa e má sorte, a influência às vezes nociva ou negligente das outras pessoas. Se você deixar que esse lado da sua vida seja tudo, você entrega aos outros e às forças que não têm sentimentos nem lealdade o poder de derrotá-la completamente. A profissão é só um jogo. No seu caso, literalmente um jogo. Mas as melhores coisas da vida não só são de graça como você não pode ganhá-las: vaga-lumes numa noite de verão; ver sua filha aprender o backhand com a mesma facilidade que as outras crianças têm para pegar piolhos. E agora você tem o dom mais raro de todos: um rapaz que te ama. Dava para ver nos olhos dele na primeira vez que ele entrou na nossa casa, e por isso nós fomos atenciosos, e não porque gostamos das histórias que ele conta sobre o tênis. Estou te avisando: se você perder isso, a coisa mais preciosa do mundo, que não só você não pode sair e comprar outra como não pode sair e procurar…”

— Pai — Willy interrompeu —, ele está prestes a participar do Aberto dos Estados Unidos!

— Querida, eu sei que deve ser meio duro de engolir. Mas você tem que achar um jeito. Se não achar, você nunca vai se perdoar.

Abstratamente, sabia que ele tinha razão — como sempre soube, abstratamente, que, ao se preparar para correr no inverno, a tentação era se agasalhar muito, e agora ela estava ofegando pela pista com todas aquelas peças de roupa, derretendo, com um calor claustrofóbico. Mas uma vez após a outra, a informação abstrata não tinha utilidade. Uma vez após a outra, ela se cobria de casacos porque naquele instante sentia frio, e acabava sufocada ao longo de dez quilômetros porque não tinha acreditado no que era apenas uma noção e não uma agonia imediata. Informações clínicas muitas vezes eram recebidas a tempo; confirmações viscerais sempre chegavam tarde demais.

Abstratamente, reconhecia que o amor era primordial, que a devoção de um homem bom não poderia ser mensurada através de algo tão banal quanto troféus de tênis. Abstratamente, compreendia que a melhor recompensa para a ambição frustrada era o beijo de Eric em sua têmpora depois de um nhoque e um Sherlock Holmes. Abstratamente, percebia que se permitisse que angústias passageiras descarrilhassem a única outra coisa que tinha valor em sua vida, ela nunca se perdoaria. Mas todas aquelas percepções flutuavam, soltas, pairando sobre a quadra esmigalhada de sua infância — tão inútil e impertinente para o momento quanto os princípios da física quântica. Incapaz de se guiar por esse conselho bem-intencionado, mas, em última análise, desperdiçado, Willy se jogou nos braços do pai e chorou, sofrendo pela própria falta desastrosa de perspicácia.