I
Antes do voo, fui convidada para almoçar num clube londrino com um bilionário que, segundo haviam me prometido, tinha um histórico liberal. Com sua camisa de colarinho aberto, ele discorreu sobre o novo software que estava desenvolvendo e poderia ajudar empresas a identificar os empregados com maior chance de roubá-las ou traí-las no futuro. A ideia era conversar sobre uma revista literária que ele estava pensando em criar; infelizmente, tive de ir embora antes de chegarmos ao assunto. Ele insistiu em pagar meu táxi até o aeroporto, o que veio a calhar, pois eu estava atrasada e minha mala era pesada.
Entusiasmado, o bilionário me havia feito o esboço da sua história de vida, que começara sem grandes atrativos e terminara — claro — com sua transformação no homem relaxado e rico sentado à mesa na minha frente nesse dia. Fiquei pensando se na verdade o que ele queria agora era ser escritor, e a revista literária lhe serviria de entrada nesse universo. Muita gente quer ser escritor; não havia motivo para pensar que não fosse possível pagar por isso. Aquele homem tinha pagado para entrar, bem como para sair, de um sem-número de coisas. Comentou sobre um projeto em que estava trabalhando para eliminar os advogados da vida pessoal dos indivíduos. Estava também desenvolvendo um modelo de usina de energia eólica flutuante grande o suficiente para acomodar toda a comunidade de pessoas necessárias para operá-la e admi­nistrá-la: a gigantesca plataforma poderia ficar em alto-mar, acabando assim com as feiosas turbinas da faixa de litoral onde ele estava torcendo para implementar o piloto da proposta, e onde, por coincidência, tinha uma casa. Aos domingos, tocava bateria numa banda de rock, só por diversão. Estava esperando seu décimo primeiro filho, o que não era tão ruim quanto parecia considerando que ele e a mulher já tinham adotado quádruplos guatemaltecos. Eu estava achando difícil assimilar tudo que ele dizia. As garçonetes não paravam de trazer mais coisas, ostras, conservas, vinhos especiais. Ele se distraía com facilidade, como uma criança que acabou de ganhar presentes de Natal em excesso. Ao me acomodar no táxi, porém, falou: divirta-se em Atenas, embora eu não me lembrasse de ter dito a ele que era para lá que estava indo.
Na pista do aeroporto de Heathrow, o avião cheio de gente aguardou em silêncio o momento da decolagem. Em pé no corredor, a comissária de bordo fez sua mímica com seus apetrechos enquanto a gravação tocava. Estávamos com os cintos apertados, um mar de desconhecidos, num silêncio que parecia o silêncio dos fiéis na leitura da liturgia. Ela nos mostrou o colete salva-vidas com sua pequena válvula, as saídas de emergência, a máscara de oxigênio pendurada num pedaço de tubo transparente. Guiou-nos pela possibilidade da morte e da tragédia, da mesma forma que o padre conduz os fiéis pelos detalhes do purgatório e do inferno, e ninguém se levantou num pulo para fugir enquanto era tempo. Em vez disso, ficamos ouvindo, ou entreouvindo, enquanto pensávamos em outras coisas, como se alguma firmeza especial nos houvesse sido conferida por essa aliança entre formalidade e destruição. Quando a voz gravada chegou à parte relativa às máscaras de oxigênio, o silêncio continuou intacto: ninguém protestou, nem ergueu a voz para discordar daquele mandamento de que era preciso cuidar dos outros somente depois de cuidar de si mesmo. No entanto, eu não tinha certeza se isso era totalmente verdadeiro.
De um dos meus lados estava sentado um menino de pele bem morena e joelhos bem abertos, cujos polegares gordos se moviam velozes pela tela de um videogame. Do outro, havia um homem baixo vestido com um terno de linho claro, muito bronzeado, com um topete de cabelos prateados. Lá fora, a tarde tórrida de verão pairava imóvel sobre a pista; pequenos veículos do aeroporto corriam livremente pelo espaço plano, derrapando, virando e traçando círculos como brinquedos, e mais longe ainda se via a fita prateada da autoestrada a correr e reluzir feito um riacho ladeado pelos campos monótonos. O avião começou a se mover e avançou pesadamente, dando a impressão de que a vista descongelava e adquiria movimento, passando a fluir por fora das janelas, primeiro devagar, depois mais depressa, até a sensação de uma subida sem esforço, quase hesitante, quando a aeronave se desprendeu do chão. Houve um segundo em que isso parecia impossível de acontecer. Mas então aconteceu.
O homem à minha direita se virou e perguntou o motivo da minha visita a Atenas. Eu disse que estava indo a trabalho.
“Espero que fique hospedada perto do mar”, disse ele. “Vai estar muito calor em Atenas.”
Eu disse que infelizmente não seria o caso, e ele arqueou as sobrancelhas, que eram grisalhas e brotavam da sua testa de modo inesperadamente áspero e revolto, como capim num terreno rochoso. Fora essa excentricidade que me levara a lhe responder. O inesperado às vezes parece um convite do destino.
“O calor chegou cedo este ano”, disse ele. “Em geral estamos seguros até bem mais tarde. Pode ser bem desagradável para quem não está acostumado.”
Na cabine que vibrava, as luzes se acenderam com um tremeluzir espasmódico; ouviu-se o barulho de portas se abrindo e batendo, grandes estalos metálicos, e pessoas começaram a se mexer, conversar, ficar em pé. Uma voz masculina falava no sistema de som; um cheiro de café e comida surgiu no ar; as comissárias de bordo começaram a andar decididas de um lado para outro do estreito corredor acarpetado, e suas meias-calças de náilon produziam um som áspero quando elas passavam. Meu vizinho me contou que fazia aquela viagem uma ou duas vezes por mês. Antes tinha um apartamento em Londres, em Mayfair, “mas hoje em dia”, falou, com uma expressão pragmática da boca, “prefiro ficar no Dorchester”.
Ele falava um inglês refinado e formal que não parecia de todo natural, como se em algum momento lhe houvesse sido aplicado com cuidado por meio de um pincel, feito tinta. Perguntei-lhe qual era a sua nacionalidade.
“Me mandaram estudar num colégio interno inglês aos sete anos de idade”, respondeu ele. “Pode-se dizer que eu tenho as idiossincrasias de um inglês, mas o coração de um grego. Dizem”, acrescentou ele, “que seria bem pior se fosse ao contrário.”
Tanto seu pai quanto sua mãe eram gregos, continuou ele, mas em determinado momento haviam transferido a família inteira — eles próprios, quatro filhos, os respectivos pais e uma penca de tios e tias — para Londres, e passaram a se comportar no estilo das classes superiores inglesas, mandando os quatro meninos estudarem num colégio interno e organizando um lar que se transformou num ambiente propício para relações sociais vantajosas, com um fluxo inexaurível de aristocratas, políticos e financistas a cruzar a soleira. Perguntei como eles haviam conseguido acesso a esse universo estrangeiro, e ele encolheu os ombros.
“O dinheiro é um país em si”, falou. “Meus pais eram donos de navio; os negócios da família eram um empreendimento internacional, apesar do fato de até ali termos morado na pequena ilha onde os dois tinham nascido, ilha da qual a senhora certamente não deve ter ouvido falar, apesar da sua prolixidade em relação a alguns destinos turísticos conhecidos.”
Proximidade, falei. Acho que o senhor quer dizer proximidade.
“Queira me desculpar”, disse ele. “Quis dizer proximidade, claro.”
Mas, como todas as pessoas ricas, continuou ele, seus pais tinham superado havia muito as próprias origens e evoluíam numa esfera desprovida de fronteiras entre outras pessoas ricas e importantes. Mantinham, é claro, uma casa luxuosa na ilha, e esta seguiu sendo a sua sede doméstica enquanto os filhos eram pequenos; quando chegou a hora de mandar os filhos homens para a escola, porém, eles se transferiram para a Inglaterra, onde tinham muitos contatos, entre os quais alguns, disse ele com uma dose razoável de orgulho, que lhes permitiam acessar pelo menos os arredores do Palácio de Buckingham.
Sua família sempre fora a mais importante da ilha: dois ramos da aristocracia local haviam se unido com o casamento de seus pais, e além disso duas fortunas do transporte marítimo haviam se consolidado. Mas a cultura do lugar tinha a particularidade de ser matriarcal. Quem detinha a autoridade eram as mulheres, não os homens; os bens passavam não de pai para filho, mas sim de mãe para filha. Isso, disse o meu vizinho, gerava tensões familiares que eram o oposto daquelas que ele havia encontrado ao chegar à Inglaterra. No mundo da sua infância, um filho homem por si só já era uma decepção; ele próprio, o último de uma vasta linhagem de tais decepções, fora tratado com especial ambivalência, pois sua mãe queria acreditar que ele fosse uma menina. Seus cabelos foram deixados compridos e cacheados; punham-lhe vestidos, e ele era chamado pelo nome de menina escolhido pelos pais na esperança de ganharem enfim uma herdeira. Essa situação incomum, afirmou meu vizinho, tinha causas antigas. Desde os primórdios, a economia da ilha havia girado em torno da extração de esponjas do fundo do mar, e os rapazes da comunidade haviam se especializado em mergulho em profundidade. Tratava-se, contudo, de uma atividade perigosa, e a sua expectativa de vida era portanto extraordinariamente baixa. Nessa situação, devido à morte recorrente dos maridos, as mulheres haviam assumido o controle dos negócios, e além disso transmitiram esse controle para as filhas.
“É difícil”, disse ele, “imaginar o mundo como era no auge da vida dos meus pais, sob certos aspectos tão prazerosa, e sob outros tão cruel. Por exemplo, meus pais tiveram um quinto filho, outro menino, que sofreu uma lesão cerebral durante o parto, e quando a família se mudou ele simplesmente foi deixado lá na ilha, sob os cuidados de uma sucessão de enfermeiras cujos antecedentes — naquela época, e àquela distância — temo que ninguém tenha se dado ao trabalho de investigar muito a fundo.”
Ele ainda morava lá, um homem já avançado em anos com a idade mental de uma criança pequena, incapaz, é claro, de dar a sua própria versão da história. Enquanto isso, meu vizinho e os irmãos adentraram as águas gélidas de uma educação nos colégios internos da Inglaterra, e aprenderam a pensar e falar como meninos ingleses. Os cachos do meu vizinho foram cortados, para seu grande alívio, e pela primeira vez na vida ele vivenciou a crueldade, e junto com ela alguns novos tipos de tristeza: a solidão, a saudade de casa, a falta da mãe e do pai. Ele vasculhou o bolso da frente do paletó e sacou uma carteira de couro preto macio da qual extraiu uma foto dos pais vincada, em preto e branco: um homem de postura rígida e ereta, vestido com uma espécie de sobrecasaca justa abotoada até o pescoço, cujos cabelos repartidos e o grande bigode curvo, de tão negros, lhe davam um aspecto de ferocidade extraordinária; e ao seu lado uma mulher de rosto sério tão redondo, duro e inescrutável quanto uma moeda. A foto fora tirada no final dos anos 1930, disse meu vizinho, antes de ele próprio nascer. O casamento, porém, já estava infeliz, uma vez que a ferocidade do pai e a intransigência da mãe eram mais do que mera aparência. Entre os dois se travava uma tremenda batalha de vontades na qual ninguém jamais conseguia separar os combatentes; exceto, por um tempo muito curto, quando eles morreram. Mas essa é uma história para outra ocasião, disse ele com um sorriso débil.
Durante todo esse tempo, a comissária de bordo avançava lentamente pelo corredor, empurrando um carrinho de metal do qual distribuía bandejas plásticas de comida e bebida. Ela agora havia chegado à nossa fileira: entregou-nos as bandejas de plástico branco, e eu ofereci uma ao menino à minha esquerda, que sem dizer nada levantou seu videogame com as duas mãos para que eu pudesse pousá-la na mesa dobrável à sua frente. Meu vizinho da direita e eu tiramos as tampas das nossas, para que o chá pudesse ser servido nas xícaras de plástico branco que acompanhavam a bandeja. Ele começou a me fazer perguntas, como alguém que aprendeu a se lembrar de fazê-lo, e eu me perguntei quem teria lhe ensinado essa lição, que muitas pessoas nunca aprendem. Respondi que eu morava em Londres, para onde tinha me mudado muito recentemente de uma casa no campo em que havia morado sozinha com meus filhos nos últimos três anos, e na qual durante os sete anos anteriores havíamos morado todos juntos, com o pai deles. Em outras palavras, aquele tinha sido o lar da nossa família, e eu ficara para vê-lo se transformar no túmulo de algo que não podia mais chamar com certeza nem de realidade, nem de ilusão.
Fez-se uma pausa durante a qual ficamos bebendo nosso chá e comendo os biscoitinhos macios com textura de bolo que o acompanhavam. Do outro lado das janelas via-se o roxo de uma escuridão quase completa. As turbinas emitiam um rugido constante. O interior do avião também havia ficado mais escuro, entrecortado pelos fachos das luzes de leitura do teto. Era difícil examinar o rosto do meu vizinho do assento ao lado, mas na escuridão riscada de luz ele havia se tornado uma paisagem de cumes e fendas no centro da qual se erguia o gancho extraordinário de seu nariz, lançando profundas ravinas de sombra de um lado e outro, a ponto de eu mal conseguir ver seus olhos. Ele tinha os lábios finos e a boca larga e levemente entreaberta; o trecho entre o nariz e o lábio superior era comprido e carnudo, e ele o tocava com frequência, de modo que até mesmo quando sorria seus dentes permaneciam escondidos. Era impossível, falei, em resposta à sua pergunta, citar os motivos que tinham feito o casamento acabar: entre outras coisas, um casamento é um sistema de crenças, uma narrativa, e embora se manifeste em coisas razoavelmente reais, o impulso que o move é, em última instância, um mistério. O real, no fim das contas, fora a perda da casa, transformada na localização geográfica de coisas que haviam se tornado ausentes e que representava, supunha eu, a esperança de que elas um dia pudessem voltar. Mudar-nos da casa equivalia a declarar, de certo modo, que tínhamos parado de esperar; não podíamos mais ser encontrados no telefone de sempre, no endereço de sempre. Meu filho mais novo, eu lhe contei, tem o hábito muito irritante de ir embora imediatamente do lugar em que você combinou de encontrá-lo caso você não esteja lá quando ele chegar. Em vez de esperar, ele sai à sua procura, e acaba ficando frustrado e perdido. Não encontrei você, lamenta ele depois, invariavelmente perdido. Mas a única esperança de encontrar alguma coisa é ficar exatamente onde se está, no lugar combinado. É apenas uma questão de quanto tempo você consegue aguentar.
“Meu primeiro casamento”, respondeu meu vizinho após uma pausa, “muitas vezes me parece ter acabado pelo mais bobo dos motivos. Quando eu era menino, via as carroças de feno voltarem dos campos, tão abarrotadas que parecia um milagre não emborcarem. Elas sacudiam para cima e para baixo e balançavam de modo alarmante de um lado para outro, mas o incrível é que nunca viravam. E então um dia eu vi a carroça caída de lado, o feno espalhado por toda parte, pessoas correndo aos gritos. Perguntei o que tinha acontecido, e o homem me disse que eles haviam passado num buraco na estrada. Nunca me esqueci disso”, falou ele, “de como parecia inevitável, e ao mesmo tempo bobo. E foi a mesma coisa comigo e minha primeira mulher”, disse ele. “Nós passamos num buraco na estrada e capotamos.”
Aquele tinha sido, ele percebia agora, um relacionamento feliz, o mais harmonioso de sua vida. Ele e a mulher haviam se conhecido e ficado noivos na adolescência; nunca tinham discutido até a discussão na qual tudo entre eles se rompeu. Tinham dois filhos, e haviam acumulado uma riqueza considerável: eram donos de uma ampla casa nos arredores de Atenas, um apartamento em Londres, outro em Genebra; tinham cavalos, esqui nas férias e um iate de quarenta pés atracado nas águas do Egeu. Eram ambos ainda jovens o bastante para acreditar que esse princípio de crescimento fosse exponencial; que a vida era apenas expansiva e rebentava os sucessivos recipientes nos quais você tentava contê-la em sua necessidade de se expandir mais. Após a discussão, relutante em sair definitivamente de casa, meu vizinho foi morar no iate atracado. Era verão, e o iate era luxuoso; ele podia nadar, pescar, receber amigos. Por algumas semanas, viveu num estado de pura ilusão que na verdade era uma dormência, como a dormência que sucede um ferimento antes de a dor começar a atravessá-la até abrir de modo lento, porém implacável, um caminho na densa bruma de analgesia. O tempo piorou; o iate ficou frio e desconfortável. O pai de sua mulher o chamou para um encontro no qual lhe pediram para abrir mão de qualquer reivindicação em relação a seus bens comuns, e ele aceitou. Acreditava poder se dar ao luxo de ser generoso, que ganharia tudo outra vez. Tinha trinta e seis anos de idade, e ainda sentia nas veias a força do crescimento exponencial, da vida lutando para rebentar o recipiente no qual fora contida. Podia ter tudo outra vez, com a diferença de que dessa vez iria querer o que tinha.
“Mas eu descobri”, disse ele, tocando o carnudo lábio superior, “que isso é mais difícil do que parece.”
Tudo isso não aconteceu como ele havia imaginado, claro. O buraco na estrada não fizera só perturbar seu casamento; fizera-o enveredar por uma estrada totalmente diferente, estrada que não passava de um longo desvio sem rumo, estrada na qual ele na verdade não deveria estar, e que às vezes ainda sentia percorrer até hoje. Como o fio solto que faz a peça de roupa inteira desfiar, era difícil remontar essa cadeia de acontecimentos até sua falha original. No entanto, esses acontecimentos haviam constituído a maior parte da sua vida adulta. Fazia quase trinta anos do fim de seu primeiro casamento, e quanto mais ele se distanciava dessa vida, mais real ela se tornava para ele. Ou não exatamente real, disse ele — o que acontecera desde então tinha sido real o suficiente. A palavra que ele estava buscando era autêntico: o seu primeiro casamento fora autêntico de um jeito que nada mais havia sido. Quanto mais velho ficava, mais esse casamento representava para ele uma espécie de lar, um lugar para o qual ele ansiava voltar. Quando ele o recordava com franqueza, porém, e mais ainda quando de fato falava com a primeira mulher — coisa rara ultimamente —, os antigos sentimentos de constrangimento retornavam. Mesmo assim, parecia-lhe agora que a vida fora vivida de maneira quase inconsciente, que ele havia se perdido nela, fora absorvido por ela, como se pode ser absorvido por um livro, acreditar nos seus acontecimentos e viver inteiramente por meio de seus personagens e junto com eles. Nunca mais desde então ele conseguira se deixar absorver; nunca mais conseguira acreditar dessa forma. Talvez fosse isso — o fato de perder a fé — que constituísse o seu anseio pela antiga vida. Fosse o que fosse, ele e a mulher haviam construído coisas que tinham prosperado, juntos haviam expandido a soma daquilo que eram e daquilo que tinham; a vida lhes correspondera de bom grado, fora generosa com eles, e isso — ele agora via — era o que lhe dera a segurança para desfazer tudo, desfazer tudo com o que agora lhe parecia uma extraordinária casualidade, pois ele pensava que havia mais.
Mais o quê?, perguntei.
“Mais vida”, respondeu ele, abrindo as mãos num gesto de quem recebe. “E mais afeto”, acrescentou, após uma pausa. “Eu queria mais afeto.”
Ele tornou a guardar a foto dos pais na carteira. As janelas agora eram pura escuridão. Na cabine, pessoas liam, dormiam, conversavam. Um homem de bermuda folgada comprida subia e descia o corredor sacudindo um bebê no ombro. O avião parecia parado, quase imóvel; havia tão pouca interface entre o lado de dentro e o de fora, tão pouca fricção, que era difícil acreditar que estivéssemos avançando. A luz elétrica, com a escuridão absoluta lá fora, fazia as pessoas parecerem muito materiais e reais, seus detalhes muito sem mediação, impessoais, infinitos. A cada vez que o homem do bebê passava, eu via a trama dos vincos da sua bermuda, seus braços sardentos cobertos por uma grossa penugem avermelhada, a pele clara e arredondada de sua barriga no ponto em que a camiseta havia subido, e os tenros pezinhos enrugados do bebê no seu ombro, as pequenas costas curvas, a cabeça macia com sua penugem primitiva de cabelos.
Meu vizinho tornou a se virar para mim e perguntou que trabalho era aquele que estava me levando a Atenas. Pela segunda vez, senti o esforço consciente da pergunta, como se ele houvesse treinado a si mesmo para recuperar objetos que lhe caíssem das mãos. Lembrei-me de como, quando cada um de meus filhos era bebê, eles derrubavam as coisas do cadeirão de propósito para vê-las cair no chão, atividade tão prazerosa para eles quanto eram terríveis as suas consequências.
Fitavam o objeto caído — um biscoito mordido ou uma bola de plástico — e iam ficando cada vez mais agitados porque ele não retornava. Depois de algum tempo, começavam a chorar, e em geral constatavam que por essa via o objeto caído voltava para a sua mão. Sempre me surpreendia que a sua reação a essa cadeia de acontecimentos fosse repeti-la: com o objeto de novo em mãos, eles o largavam outra vez, e se inclinavam para vê-lo cair. Seu prazer nunca diminuía, e tampouco seu sofrimento. Eu sempre imaginava que em algum momento eles fossem entender que o sofrimento era desnecessário e decidiriam evitá-lo, mas isso nunca acontecia. A lembrança do sofrimento não tinha absolutamente nenhum efeito sobre o que eles resolviam fazer: pelo contrário, instigava-os a repeti-lo, pois o sofrimento era a mágica que fazia o objeto voltar e tornava o prazer de largá-lo possível outra vez. Se eu tivesse me recusado a devolvê-lo da primeira vez que eles o deixassem cair, imagino que teriam aprendido algo bem diferente, embora eu não soubesse ao certo o que poderia ter sido.
Contei-lhe que era escritora, e que estava indo passar dois dias em Atenas para dar um curso de verão numa faculdade de lá. O curso se chamava “Como escrever”: vários escritores diferentes davam aula nele, e como não existe um só jeito de escrever, eu supunha que fôssemos dar conselhos contraditórios aos alunos. A maioria deles eram gregos, eu fora informada, embora para os objetivos do curso esperava-se que escrevessem em inglês. Outras pessoas se mostravam céticas em relação a essa ideia, mas eu não via nada de errado nela. Eles podiam escrever no idioma que quisessem; para mim não fazia diferença. Às vezes, falei, a perda de transição se transfor­mava em ganho de simplicidade. Lecionar era apenas uma forma de ganhar a vida, continuei. Mas eu tinha um ou dois amigos em Atenas que talvez encontrasse quando estivesse lá.
Escritora, disse meu vizinho, inclinando a cabeça num gesto que poderia ter significado respeito pela profissão, ou total ignorância em relação a ela. Eu havia percebido, assim que me sentara ao seu lado, que ele estava lendo um Wilbur Smith já bem surrado; o livro, disse ele então, não era totalmente representativo do seu gosto literário, embora fosse verdade que lhe faltasse critério no que dizia respeito à ficção. Interessavam-lhe livros de informação, sobre fatos e a interpretação dos fatos, e ele tinha segurança de que nesse quesito suas preferências não eram simplórias. Era capaz de reconhecer um bom estilo de prosa; um de seus autores preferidos, por exemplo, era John Julius Norwich. Em ficção, porém, admitia que lhe faltava cultura. Ele tirou o Wilbur Smith do bolso da poltrona, onde o livro ainda permanecia, e o mergulhou dentro da pasta de trabalho aos seus pés de modo a fazê-lo sumir, como se desejasse renegá-lo, ou talvez pensando que eu fosse esquecer que o tinha visto. Na verdade, eu não estava mais interessada na literatura como forma de esnobismo ou mesmo como uma forma de autodefinição — não tinha desejo algum de demonstrar que um livro era melhor do que outro; na verdade, se eu lesse alguma coisa que admirasse, me via cada vez menos inclinada a mencioná-la. O que eu sabia pessoalmente ser verdade passara a parecer em tudo distinto do processo de convencer os outros. Eu não queria convencer ninguém de nada, não mais.
“Minha segunda mulher”, disse meu vizinho pouco tempo depois, “nunca tinha lido um livro na vida.”
Ela era inteiramente ignorante, continuou ele, mesmo em relação a noções básicas de história e geografia, e costumava dizer as coisas mais constrangedoras na frente dos outros sem o menor sentimento de vergonha. Pelo contrário, ficava brava quando as pessoas falavam de coisas que ela ignorava: por exemplo, quando um amigo venezuelano foi nos visitar, ela se recusou a acreditar que esse país existisse, pois nunca tinha ouvido falar nele. Ela era inglesa, e dona de uma beleza tão sublime que era difícil não lhe atribuir algum refinamento interior; entretanto, embora a sua índole de fato guardasse algumas surpresas, estas não eram de um tipo particularmente agradável. Ele muitas vezes convidava os pais dela para irem à sua casa, como se, ao observá-los, quem sabe conseguisse decifrar o mistério da filha. Os dois iam para a ilha, onde a casa da família ainda permanecia, e lá ficavam semanas a fio. Ele nunca na vida tinha conhecido pessoas tão extraordinariamente sem graça, tão pouco interessantes; por mais que se exaurisse tentando estimulá-los, seus sogros se mostravam tão sem reação quanto um par de poltronas. No final, afeiçoou-se muito a eles, do mesmo jeito que alguém pode se afeiçoar a poltronas; principalmente ao pai, cuja reserva desmedida era tão extrema que aos poucos meu vizinho começou a compreender que ele devia padecer de algum tipo de lesão psíquica. Comovia-o ver alguém tão machucado pela vida. Quando era mais jovem, é quase certo que não teria sequer reparado naquele homem, quanto mais se questionado sobre os motivos do seu silêncio; e assim, ao reconhecer o sofrimento do sogro, começou a reconhecer o seu próprio sofrimento. Soa trivial, mas seria quase possível dizer que, por meio desse reconhecimento, ele sentiu sua vida inteira girar no eixo: por uma simples revolução de perspectiva, a história da sua determinação lhe aparecera como uma jornada moral. Ele tinha se virado, como um alpinista se vira e olha para baixo da montanha, revendo o caminho percorrido, não mais absorto na subida.
Muito tempo antes — tanto que esquecera o nome do autor — ele tinha lido algumas linhas memoráveis numa história sobre um homem que está tentando traduzir outra história de um autor muito mais famoso. Nessas linhas — que segundo o meu vizinho ele recordava até hoje — o tradutor afirma que uma frase nasce para este mundo nem boa, nem ruim, e que estabelecer sua natureza depende dos ajustes mais sutis possíveis, um processo intuitivo em que o exagero e a força são fatais. Essas linhas diziam respeito à arte da escrita, mas ao olhar em volta, no começo da meia-idade, meu vizinho passou a ver que se aplicavam igualmente à arte da vida. Para onde quer que ele olhasse, via pessoas por assim dizer estragadas pelo caráter extremo das próprias experiências, e seus novos sogros pareciam um exemplo disso. O que estava claro, em todo caso, era que a mulher o havia tomado por um homem bem mais rico: o fatídico iate, onde ele fora se esconder como fugitivo conjugal e único bem que lhe restava dessa época, fora o que a havia atraído. Ela precisava muito de luxo, e ele começou a trabalhar como nunca na vida, às cegas, com frenesi, gastando todo seu tempo em reuniões e a bordo de aviões, negociando e fechando acordos, assumindo cada vez mais riscos para poder lhe proporcionar a riqueza que ela partira do princípio que existia. Na verdade, ele estava alimentando uma ilusão: o que quer que fizesse, o abismo entre ilusão e realidade jamais poderia ser transposto. Gradualmente, disse ele, esse abismo, essa distância entre como as coisas eram e como eu queria que fossem, começou a me corroer. Eu me senti esvaziar, disse ele, como se até ali tivesse vivido das reservas acumuladas ao longo dos anos e elas houvessem aos poucos se exaurido.
Foi nessa época que a retidão de sua primeira mulher, a riqueza e prosperidade de sua vida em família e a profundidade de seu passado compartilhado começaram a afetá-lo. A primeira mulher, depois de uma fase infeliz, havia se casado outra vez: depois do seu divórcio, havia desenvolvido uma fixação pelo esqui, ia para o norte da Europa e para as montanhas sempre que podia, e em pouco tempo havia se declarado casada com um instrutor de Lech que, segundo ela, tinha lhe devolvido a confiança em si mesma. Esse casamento, admitiu meu vizinho, continuava incólume até hoje. No início, porém, meu vizinho havia começado a perceber que cometera um erro, e tentara retomar contato com a primeira mulher, não sabia ao certo com que intenções. Seus dois filhos, um menino e uma menina, eram ainda bem pequenos: era natural, afinal de contas, que os dois mantivessem contato. Ele se lembrava de modo difuso que, na fase imediatamente posterior à separação, era ela quem vivia tentando entrar em contato com ele; e se lembrava também que evitava suas ligações, pois estava entretido correndo atrás da mulher que era agora sua segunda esposa. Estava indisponível, havia adentrado um mundo novo no qual a primeira mulher mal parecia existir, no qual ela era uma espécie de boneco de papelão ridículo cujos atos — assim convenceu a si mesmo e outros — eram os atos de uma louca. Mas agora era ela que não podia ser encontrada: estava se lançando de frias montanhas brancas no maciço de Arlberg, onde ele não existia mais para ela do que ela existira para ele. Não atendia suas ligações, ou as atendia de modo sucinto, distraído, e dizia que precisava desligar. Não podia ser forçada a reconhecê-lo, e isso era o mais estarrecedor de tudo, pois o fazia se sentir inteiramente irreal. Fora com ela, afinal, que a sua identidade se constituíra: se ela não o reconhecia mais, então quem era ele?
O estranho, disse ele, é que até hoje, quando esses acontecimentos pertencem a um passado distante e ele e a primeira mulher se comunicam com mais regularidade, ela só precisa falar por mais de um minuto para começar a irritá-lo. E ele não duvidava que, caso ela houvesse voltado correndo das montanhas na época em que ele parecia ter mudado de ideia, teria rapidamente passado a irritá-lo tanto que todo o fim do seu relacionamento teria sido reencenado. Em vez disso, eles envelheceram distantes um do outro: quando ele fala com ela, imagina com bastante clareza a vida que os dois teriam tido, a vida que estariam dividindo agora. É como passar em frente a uma casa onde se morou: o fato de ela ainda existir, tão concreta, faz tudo o que aconteceu desde então parecer de algum modo imaterial. Sem estrutura, os acontecimentos são irreais: a realidade da sua mulher, assim como a realidade da casa, era estrutural, determinante. Tinha limites, nos quais ele esbarra ao ouvir a mulher ao telefone. No entanto, a vida sem limites tem sido exaustiva, tem sido uma longa história de despesas concretas e emocionais, como trinta anos morando numa sucessão de hotéis. O que lhe custou foi a sensação de impermanência, de não ter um lar. Ele gastou rios de dinheiro para se livrar desse sentimento, para pôr um teto acima da própria cabeça. E o tempo todo vê ao longe o seu lar — a sua mulher — parados ali, essencialmente intactos, mas agora pertencentes a outras pessoas.
Eu disse que o modo como ele havia contado sua história demonstrava em grande medida esse fato, pois eu não conseguia ver a segunda mulher nem com metade da clareza com a qual conseguia ver a primeira. Na verdade, eu não acreditava totalmente nela. Ela era apresentada como uma vilã genérica, mas na realidade que mal havia feito? Ela jamais fingira ser uma intelectual, como por exemplo meu vizinho fingira ser rico, e como fora valorizada inteiramente por sua beleza, era natural — alguns diriam sensato — querer atribuir um preço a essa beleza. Quanto à Venezuela, quem era ele para dizer o que alguém deveria ou não saber? Eu estava certa de que havia muitas coisas que ele próprio não sabia, e o que ele não sabia não existia mais para ele do que a Venezuela para sua bela mulher. Meu vizinho enrugou tanto a testa que sulcos semelhantes aos de um palhaço surgiram de ambos os lados de seu queixo.
“Eu reconheço”, disse ele após uma longa pausa, “que em relação a esse tema posso estar sendo um pouco parcial.”
A verdade era que ele não conseguia perdoar a segunda mulher pelo modo como ela havia tratado seus filhos, que passavam com eles as férias escolares, em geral na velha casa da família na ilha. Ela nutria um ciúme especial em relação ao mais velho, um menino, de quem criticava todo e qualquer movimento. Observava-o com uma obsessão sempre bastante extraordinária de ver, e vivia obrigando-o a trabalhar pela casa, culpando-o pelo menor indício de bagunça e insistindo no seu direito de puni-lo por aquilo que somente ela considerava suas falhas. Certa vez, ao chegar em casa, ele havia encontrado o menino trancado no imenso porão semelhante a uma catacumba que ocupava todo o espaço sob a casa, um lugar escuro e sinistro na melhor das situações, aonde ele próprio costumava ter medo de ir quando criança. Seu filho estava deitado de lado, tremendo, e disse ao pai que tinha sido posto ali por não ter tirado o prato da mesa. Era como se ele representasse tudo que constituía um estorvo no seu papel de esposa, como se encarnasse alguma injustiça pela qual ela se sentia presa; e ele era também a prova de que, com relação ao marido, ela não havia chegado primeiro nem jamais poderia chegar.
Ele nunca conseguira entender aquela sua necessidade de primazia, pois afinal de contas não era culpa sua ele ter vivido a vida antes de conhecê-la; no entanto, ela parecia cada vez mais decidida a destruir essa história, e a destruir as crianças que eram as suas provas impossíveis de erradicar. Àquela altura, os dois tinham também um filho em comum, outro menino, mas longe de amenizar as coisas, isso parecera apenas piorar o ciúme da mulher. Ela o acusava de não amar seu filho tanto quanto amava os mais velhos; sempre o observava à espreita de indícios de preferência, e na realidade favorecia explicitamente o filho em comum, mas com frequência ficava brava com o menininho também, como se sentisse que uma criança diferente poderia ter vencido aquela batalha para ela. E, de fato, ela praticamente abandonou o filho quando o fim chegou. Eles estavam passando o verão na ilha, e os pais dela — as duas poltronas — também estavam lá. Ele àquela altura sentia mais afeto por eles do que nunca, pois considerava sua insipidez uma prova da índole tempestuosa da filha. Os dois eram como uma paisagem continuamente assolada por tufões; viviam num estado de semidevastação permanente. Sua mulher meteu na cabeça que queria voltar para Atenas; ele supunha que estivesse entediada na ilha. Provavelmente havia festas às quais desejava ir, coisas que desejava fazer; estava cansada de passar os verões sempre ali, no mausoléu da família; além do mais, seus pais em breve pegariam o avião de volta para a capital, de modo que poderiam viajar todos juntos, disse ela, e deixar as crianças mais velhas ali, aos cuidados da governanta. Meu vizinho respondeu que não podia voltar para Atenas naquele momento. Não tinha como deixar os filhos — eles ainda iriam passar mais duas ou três semanas com ele. Como poderia abandoná-los, quando aquele era o único período que tinha com eles? Bem, disse ela, se ele não fosse, poderia pura e simplesmente considerar o casamento acabado.
Esse foi, portanto, o duelo final: ele afinal estava sendo obrigado a escolher, e é claro que sentiu não ter a menor escolha. Aquilo parecia totalmente irracional, e seguiu-se um bate-boca horroroso ao fim do qual sua mulher, seu filho e os pais dela embarcaram num navio de volta para Atenas. Antes de irem, seu sogro fez uma rara incursão na oralidade. O que ele disse foi que conseguia ver a situação do ponto de vista do meu vizinho. Foi a última vez que meu vizinho viu os dois, e praticamente a última vez que viu a esposa, que voltou para a Inglaterra com os pais e de lá lhe pediu o divórcio. Contratou um advogado muito bom, e meu vizinho se viu quase falido pela segunda vez na vida. Vendeu o iate e comprou um pequeno barco a motor que refletia com mais exatidão o estado de suas finanças. O filho do casal, porém, tornou a aparecer depois que a mãe se casou outra vez, após arrumar um aristocrata inglês dono de uma fortuna comprovadamente imensa, e descobrir que o menino atrapalhava seu segundo matrimônio de modo bem parecido com o que os filhos do meu vizinho haviam atrapalhado o seu. Nesse último detalhe havia uma prova, se não da integridade da sua ex-mulher, no mínimo de uma certa coerência.
Muita coisa se perde num naufrágio, disse ele. O que resta são fragmentos, e se você não os segura o mar os carrega também. Apesar disso, falou ele, eu ainda acredito no amor. O amor restaura quase tudo, e quando não consegue restaurar, leva a dor embora. Por exemplo a senhora, disse-me ele — a senhora agora está triste, mas se estivesse apaixonada a tristeza iria cessar. Sentada ali, tornei a pensar nos meus filhos em seus cadeirões de alimentação, e na sua descoberta de que o sofrimento magicamente fazia a bola voltar. Nesse instante, o avião deu sua primeira e suave guinada para baixo na escuridão. Uma voz começou a falar no sistema de som; as comissárias se puseram a andar de lá para cá para direcionar os passageiros de volta aos seus assentos. Meu vizinho pediu meu número de telefone; quem sabe poderíamos jantar um dia quando eu estivesse em Atenas?
Continuei insatisfeita com a história do seu segundo casamento. Faltara-lhe objetividade; a história se apoiava excessivamente em extremos, e as propriedades morais que atribuía a esses extremos muitas vezes eram incorretas. Não era errado, por exemplo, sentir ciúme de um filho, embora com certeza fosse muito doloroso para todos os envolvidos. Eu constatava que não havia acreditado em determinados fatos importantes, que a ex-mulher tinha trancado o filho dele no porão, por exemplo, e tampouco ficara inteiramente convencida quanto a sua beleza, que mais uma vez me parecia ter sido equivocadamente utilizada. Se não era errado sentir ciúme, por certo não era errado ser bonita; o erro consistia no fato de a beleza ter sido, por assim dizer, roubada pelo narrador sob um falso pretexto. A realidade podia ser descrita como o eterno equilíbrio entre positivo e negativo, mas naquela história os dois polos haviam se dissociado e a eles tinham sido atribuídas identidades distintas e em conflito. A narrativa invariavelmente mostrava certas pessoas — o narrador e seus filhos — sob uma luz favorável, enquanto a esposa só aparecia quando era necessário se condenar mais ainda. Às traiçoeiras tentativas do narrador de entrar em contato com a primeira esposa, por exemplo, era atribuído um status positivo, de empatia, enquanto a insegurança da segunda esposa — bem fundamentada, como agora sabíamos — era tratada como um crime incompreensível. A única exceção era o amor do narrador por seus sogros maçantes e assolados pelo tufão, detalhe ambivalente em que o positivo e o negativo recuperavam o equilíbrio. Fora isso, era uma história na qual eu sentia que a verdade estava sendo sacrificada em nome do desejo de vencer do narrador.
Meu vizinho riu e disse que eu provavelmente estava certa. Meus pais passaram a vida inteira brigando, disse ele, e ninguém jamais venceu. Mas ninguém tampouco fugiu. Quem fugiu foram as crianças. Meu irmão se casou cinco vezes, disse ele, e passa o dia de Natal sentado sozinho em seu apartamento de Zurique, contando seu dinheiro e comendo um sanduíche de queijo. Me diga a verdade, falei: ela trancou mesmo seu filho no porão? Ele inclinou a cabeça.
“Ela sempre negou”, respondeu. “Dizia que Takis tinha se trancado lá dentro para lhe criar problemas.”
Mas reconheço, disse ele, que não era irracional ela querer que eu fosse para Atenas. Ele não me contara exatamente a história toda — na verdade, a mãe dela tinha adoecido. Nada muito sério, mas ela precisava ser internada no hospital no continente, e o grego da esposa não era lá grande coisa. Mas ele achava que sua mulher e o pai dela juntos fossem conseguir dar conta. O comentário do sogro ao se despedir, portanto, era mais ambivalente do que havia parecido na primeira versão da história. A essa altura nós já tínhamos apertado os cintos, como a voz no sistema de som nos instruíra a fazer, e pela primeira vez vi luzes lá embaixo à medida que descíamos oscilantes, uma grande floresta de luzes surgindo e desaparecendo misteriosamente em meio à escuridão.
Na época, eu vivia o tempo todo preocupadíssimo com meus filhos, disse meu vizinho. Não conseguia pensar naquilo de que eu ou ela precisávamos; achava que eles precisavam mais de mim. As palavras dele me fizeram pensar nas máscaras de oxigênio, que não tinham, claro, feito aparição alguma nas últimas horas. Era uma espécie de cinismo mútuo, falei, que tivera como resultado as máscaras de oxigênio serem fornecidas, com o entendimento tácito de que jamais seriam necessárias. Meu vizinho disse ter constatado que isso era verdade em relação a muitos aspectos da vida, mas que mesmo assim a lei das médias não era algo em que valesse a pena basear nossas expectativas pessoais.