IV
Meu vizinho do avião era uns bons trinta centímetros mais baixo que eu e tinha o dobro da minha largura; como eu o conhecera sentado, era difícil conciliar essas dimensões com a sua pessoa. O que me fez reconhecê-lo foi o extraordinário nariz aquilino e a testa proeminente a se projetar logo acima, que lhe davam o aspecto levemente intrigante de uma ave marinha coroada pelo seu chumaço de cabelos grisalhos quase brancos. Mesmo assim, levei alguns instantes para reconhecê-lo, em pé na sombra de um vão de porta do prédio em frente ao meu, usando uma bermuda cáqui na altura dos joelhos e uma camisa quadriculada vermelha impecavelmente passada a ferro. Havia diversos pontos dourados espalhados pela sua pessoa, um gordo anel de sinete no dedo mindinho, um relógio de ouro tipo cebolão, óculos pendurados no pescoço por uma corrente dourada, e até mesmo um brilho de ouro quando ele sorriu, tudo perceptível de imediato, mas apesar disso eu não havia reparado em nenhum deles durante nossa conversa no avião na véspera. Esse encontro fora de certa forma imaterial: acima do mundo, os objetos não tinham tanta importância, as diferenças eram menos aparentes. A realidade material do meu vizinho, que lá em cima parecera tão leve, ali embaixo se concretizava, e o resultado era que ele parecia mais desconhecido ainda, como se o contexto fosse também uma espécie de prisão.
Tive certeza de que ele me viu antes que eu o visse, mas esperou até eu acenar para me acenar de volta. Parecia nervoso. Não parava de olhar para um lado e outro da rua, onde um vendedor de frutas dava gritos guturais ao lado de uma carrocinha repleta de pêssegos, morangos e fatias de melão que pareciam sorrir no calor. Seu rosto assumiu uma expressão de surpresa satisfeita quando atravessei a rua na sua direção. Ele me beijou no rosto de maneira um pouco seca e desajeitada.
“Dormiu bem?”, perguntou ele.
Estava quase na hora do almoço e eu havia passado a manhã inteira na rua, mas ficou patente que ele desejava criar uma esfera de intimidade na qual nosso conhecimento um do outro era ininterrupto, e na qual nada me acontecera desde que havíamos nos despedido na fila de táxis do aeroporto na noite anterior. Na verdade, eu tinha dormido muito pouco no pequeno quarto azul. Havia um quadro pendurado na parede em frente à cama, de um homem de chapéu de feltro jogando a cabeça para trás e rindo. Quando você olhava, via que ele não tinha rosto, apenas um oval liso com o buraco risonho da boca no meio. Fiquei esperando seus olhos e nariz se tornarem visíveis à medida que o quarto clareava, mas isso nunca aconteceu.
Meu vizinho disse que o seu carro estava estacionado logo depois da esquina, e após uma hesitação tocou a base das minhas costas com a mão para me guiar na direção certa. Suas mãos eram muito grandes e um pouco parecidas com garras, além de serem cobertas por pelos brancos. Ele estava preocupado que eu não fosse gostar muito do seu carro, falou. Ocorrera-lhe que eu talvez fosse ter imaginado algo bem mais luxuoso, e ele estava constrangido, se a situação fosse essa; no entanto, ele próprio não ligava muito para carros. E para andar por Atenas havia constatado que aquilo era tudo de que precisava. Mas nunca se podia saber o que os outros esperavam, falou; estava torcendo para eu não ficar decepcionada, só isso. Chegamos ao carro, que era pequeno, limpo e sem nenhuma outra característica marcante, e entramos. O barco, disse ele, estava atracado depois de um trajeto de quarenta minutos pelo litoral. Ele antes o deixava numa marina bem mais perto da cidade, mas o aluguel era muito caro, então uns dois anos antes decidira transferi-lo. Perguntei-lhe onde ficava sua casa em relação ao centro, e ele fez um gesto vago com a mão em direção à janela e disse que ficava a meia hora mais ou menos naquela direção.
Tínhamos entrado na larga avenida de seis pistas ao longo da qual o tráfego não parava de rugir pela cidade, onde o calor e o barulho eram extremos. As janelas do carro estavam bem abertas, e meu vizinho dirigia com uma das mãos no volante e a outra apoiada no peitoril da janela, fazendo a manga da sua camisa esvoaçar intensamente com o vento. Era um motorista errático, que vivia se jogando de uma faixa para a outra, virava a cabeça quando falava e perdia de vista o caminho, de modo que sinais vermelhos e traseiras de outros veículos se aproximavam depressa do para-brisa antes que ele notasse. Fiquei com medo e parei de falar, e pus-me a observar os terrenos poeirentos e canteiros de grama que a essa altura já tinham substituído os grandes prédios reluzentes do centro. Passamos por um cruzamento num arco de concreto em meio a uma profusão de buzinas e barulhos de motos, com o sol a socar o para-brisa e o cheiro de gasolina, asfalto e esgoto se derramando pelas janelas abertas, e passamos algum tempo avançando ao lado de um homem montado numa scooter com um menino de cinco ou seis anos sentado na garupa. O menino segurava o homem pela cintura com os dois braços. Parecia muito pequeno e desprotegido, com os carros, cercas de metal e imensos caminhões abarrotados de quinquilharias que passavam zunindo a poucos centímetros de sua pele. Usava apenas um short e uma camiseta sem mangas, e nos pés calçava chinelos de dedo, e pela janela olhei para suas pernas frágeis, seus braços morenos desprotegidos e para os cabelos castanhos e macios que esvoaçavam ao vento. A estrada então fez uma curva e começou a descer, e o mar surgiu, azul e resplandecente, após uma extensão marrom coalhada de construções baixas abandonadas, estradas inacabadas e os esqueletos de casas que nunca haviam sido concluídas, onde árvores magrelas agora cresciam pelas janelas sem vidraça.
Fui casado três vezes, disse meu vizinho, enquanto o pequeno carro descia zunindo a encosta em direção à água reluzente. Disse saber que na conversa da véspera havia reconhecido apenas duas, mas fora até ali naquele dia jurando dizer a verdade. Houve três casamentos e três divórcios. Sou um desastre completo, falou. Eu estava pensando em como responder quando ele disse que outra coisa que precisava mencionar era o filho, que atualmente estava morando na casa da família na ilha e não andava muito bem. Encontrava-se num estado de ansiedade extrema, e passara a manhã inteira ligando para o pai. Essas ligações sem dúvida iriam continuar pelas próximas horas, e embora ele não quisesse atendê-las, seria naturalmente obrigado a fazê-lo. Perguntei o que havia de errado com seu filho, e seu rosto de ave ficou sério. Eu conhecia o distúrbio chamado esquizofrenia? Bem, era disso que o seu filho padecia. Desenvolvera o distúrbio na casa dos vinte anos após sair da faculdade, e fora hospitalizado várias vezes ao longo da última década, mas por diversos motivos complicados demais para explicar encontrava-se atualmente sob os cuidados do pai. Meu vizinho avaliara que ele estava seguro o suficiente na ilha, contanto que não tivesse acesso a nenhum dinheiro. As pessoas lá eram solidárias, e ainda nutriam estima suficiente pela família para tolerar pequenas dificuldades, das quais já houvera muitas. Poucos dias antes, contudo, ocorrera um episódio mais grave, em consequência do qual meu vizinho tive­ra de pedir ao rapaz que contratara como acompanhante do seu filho para mantê-lo, por assim dizer, em prisão domiciliar. O filho não suportava estar encarcerado, daí os telefonemas constantes, e quando não era o filho ligando, era o acompanhante, que sentia que o emprego estava extrapolando os termos de seu contrato e queria renegociar o salário.
Perguntei se aquele era o mesmo filho que sua segunda mulher havia trancado no porão, e ele respondeu que sim. Ele antes era um menino encantador, mas depois tinha ido para a universidade, na Inglaterra aliás, e lá desenvolvera um certo vício em drogas. Deixara a faculdade sem concluir o curso e voltara sem rumo na vida para a Grécia, onde haviam sido feitas várias tentativas de lhe arrumar um emprego. Ele morava com a mãe na grande propriedade nos arredores de Atenas, onde ela vivia com o marido instrutor de esqui, e meu vizinho não duvidava que ela o houvesse considerado um estorvo e um empecilho à sua liberdade, uma vez que o comportamento do rapaz piorava a cada dia; mesmo assim, sua primeira atitude, mandar interná-lo sem primeiro conversar com o pai, fora um tanto exagerada. O rapaz recebera uma medicação que o havia deixado tão gordo e inerte que ele de fato tinha se tornado um vegetal; e a mãe fora embora de Atenas com o marido para iniciar sua costumeira temporada de inverno nos Alpes. Isso já fazia muitos anos, claro, mas a situação permanecia fundamentalmente a mesma. A mãe do rapaz não queria mais ter nenhum envolvimento com o filho; se o pai decidisse tirá-lo do hospital e deixá-lo viver no mundo exterior, a responsabilidade era sua.
Eu disse que me espantava o fato de a sua primeira mulher, que meu vizinho parecera idealizar um pouco durante nossa conversa anterior, se comportar com tamanha frieza. Isso não parecia condizer com a impressão que eu havia formado sobre o caráter dela. Ele pensou a respeito, então disse que ela não era assim na época do seu casamento; tinha mudado, se tornado uma pessoa diferente da que ele conhecia. Quando ele falava dela com carinho, era à versão anterior que estava se referindo. Falei que não acreditava que as pessoas fossem capazes de mudar de modo tão completo, de desenvolver uma moral irreconhecível; essa parte delas estava apenas adormecida, à espera de ser despertada pelas circunstâncias. Disse que na minha opinião a maioria de nós não sabia o quanto éramos bons ou maus, e que a maioria de nós nunca seria analisada o bastante para descobrir. Mas devia ter havido ocasiões em que ele vislumbrara — ainda que apenas de modo passageiro — aquilo que ela iria se tornar. Não, disse ele, não achava que tivesse havido ocasiões assim: ela sempre fora uma excelente mãe, dedicada acima de tudo aos filhos. Sua filha fora muito bem-sucedida, e havia ganhado uma bolsa para estudar em Harvard; depois de formada, fora fisgada por uma empresa de software multinacional e estava agora no Vale do Silício, lugar do qual eu certamente devia ter ouvido falar. Eu disse que tinha, sim, embora sempre houvesse achado aquele um lugar difícil de imaginar; nunca conseguia estabelecer até que ponto era conceitual, e até que ponto um lugar de verdade. Perguntei se ele já tinha ido visitá-la; ele confessou que não. Nunca havia estado naquela parte do mundo e, além do mais, ficaria preocupado em deixar o filho pelo tempo que uma viagem dessas exigiria. Mas era verdade que não via a filha fazia muitos anos, uma vez que ela não voltara à Grécia. Parece que o sucesso leva você para longe daquilo que conhece, disse ele, enquanto o fracasso o condena a isso. Perguntei se a filha tinha filhos, e ele respondeu que não. Tinha uma parceria — era assim que se dizia? — com outra mulher, e tirando isso o trabalho era tudo para ela.
Ele supunha, falou, pensando bem, que sua mulher fosse uma espécie de perfeccionista. Afinal de contas, bastara uma discussão para pôr fim ao casamento; se houvera um sinal daquilo em que ela iria se transformar, talvez fosse o fato de ser incapaz de tolerar o fracasso. Após sua separação, disse ele, arrumara imediatamente um namorado muito rico e famoso, um dono de navio parente de Onassis; esse homem era de fato dono de uma fortuna fabulosa, e bonito, e também amigo do pai dela, e meu vizinho jamais conseguira descobrir por que o namoro havia terminado, pois tinha a impressão de que esse homem era tudo que ela sempre quisera. De certa forma, isso o ajudara a entender o fracasso do seu casamento, o fato de ela ter escolhido esse bilionário bonitão; contra um adversário desses, conseguia aceitar a própria derrota. Kurt, por sua vez, o instrutor de esqui, era incompreensível, um homem sem charme nem dinheiro, um homem que só ganhava a vida alguns meses por ano, quando havia neve nas montanhas; um homem, além do mais, de crenças e práticas religiosas fanáticas, às quais aparentemente insistia para que a sua mulher e os filhos dela — enquanto ainda vivessem na casa — se curvassem. As crianças lhe contavam histórias sobre rezas e silêncios obrigatórios, sobre serem obrigadas a se sentar à mesa — durante horas, se preciso fosse — até terem terminado cada pedacinho de comida no prato, de terem de chamá-lo de “pai” e serem proibidas de ver televisão e se divertir aos domingos. Meu vizinho certa vez cometera a temeridade de lhe perguntar o que ela via em Kurt, e ela havia respondido: ele é o exato oposto de você.
Nós agora já estávamos avançando em paralelo ao mar, passando por praias de aspecto meio sujo onde famílias faziam piqueniques e nadavam, por lojas de beira de estrada que vendiam guarda-sóis, máscaras de snorkel e roupas de banho. Meu vizinho disse que estávamos quase lá; torcia para que eu não tivesse achado a viagem longa demais. Ele deveria esclarecer, falou, caso eu estivesse esperando algo luxuoso, que o seu barco era bem pequeno. Era seu havia vinte e cinco anos e firme como um rochedo na tormenta, mas era de proporções modestas. Tinha uma pequena cabine onde uma pessoa podia pernoitar confortavelmente, “ou duas”, disse ele, “se estiverem muito apaixonadas”. Ele próprio muitas vezes passava a noite lá, e em determinadas épocas do ano navegava com o barco até a ilha, uma viagem de três ou quatro dias. Em certo sentido, ali era a sua ermida, seu lugar de solidão; ele podia navegar com o motor apenas até se afastar da costa, ancorar o barco, e ficar completamente sozinho.
Por fim, avistamos a marina, e meu vizinho saiu da estrada e estacionou o carro junto a um cais flutuante de madeira no qual uma fila de embarcações estavam amarradas. Pediu-me que esperasse ali enquanto ia comprar alguns mantimentos. Além disso, falou, o barco não tinha banheiro, de modo que eu ficasse à vontade antes de partirmos. Observei-o subir a pé de volta em direção à estrada, então me sentei num banco ao sol para esperar. Os barcos se moviam para lá e para cá na água brilhante. Depois deles eu podia ver o contorno nítido e recortado da costa, e de vários rochedos e ilhotas situados mais para dentro do mar, espalhados por toda a baía. Ali estava mais fresco do que na cidade. A brisa produzia um ruído seco de algo se arrastando na vegetação que formava tufos emaranhados entre o mar e a estrada. Olhei para as embarcações e pensei qual delas pertenceria ao meu vizinho. Todas pareciam mais ou menos semelhantes. Havia pessoas por perto, a maioria homens da idade do meu vizinho, subindo e descendo o atracadouro calçados com dock siders ou então fazendo reparos em suas embarcações, peitos grisalhos desnudos sob o sol. Alguns deles me encararam, boquiabertos, com os grandes braços musculosos pendurados junto ao corpo. Peguei meu celular e digitei o número da empresa de hipoteca na Inglaterra, que estava avaliando a proposta de aumento no valor do empréstimo que eu havia feito pouco antes de viajar para Atenas. A mulher que estava avaliando a proposta chamava-se Lydia. Tinha me dito para lhe telefonar nesse dia, mas toda vez que eu tentava caía na sua caixa postal. A mensagem dizia que ela estaria de férias até uma data que já tinha passado, o que dava a impressão de que não escutava com frequência suas mensagens de voz. Sentada ali no banco, escutei de novo a mensagem, mas dessa vez — talvez por não ter mais nada para fazer — deixei um recado dizendo que estava ligando conforme o combinado e lhe pedindo para responder à ligação. Depois dessa providência aparentemente inútil, olhei em volta e vi que meu vizinho estava voltando com uma sacola de compras na mão. Ele me pediu para segurá-la enquanto aprontava o barco, e então atravessou o cais flutuante, ajoelhou-se e tirou de dentro da água um pedaço de corda encharcado com o qual começou a puxar na sua direção o barco preso à outra ponta. O barco era branco, revestido de madeira e com um toldo azul vivo. Na frente havia um grande leme de couro preto, e na parte de trás um banco estofado. Quando o barco chegou perto o suficiente, meu vizinho pulou a bordo pesadamente e estendeu a mão para a sacola. Passou algum tempo ocupado guardando as coisas, em seguida estendeu a mão outra vez para me ajudar a embarcar. Espantei-me ao constatar que não havia realizado a manobra com muita firmeza. Sentei-me no banco enquanto ele retirava as capas protetoras do leme, baixava o motor para dentro da água e amarrava e desamarrava diversas cordas, então se postava em frente ao leme e ligava o motor, que produziu um gorgolejo aguado, e começamos a recuar devagar para longe da marina.
Passaríamos um tempo navegando, disse meu vizinho, mais alto do que o barulho do motor, e quando chegássemos a um lugar agradável que ele conhecia pararíamos para mergulhar. Ele havia tirado a camisa, e suas costas nuas estavam na minha frente enquanto ele guiava. Eram umas costas muito largas e carnudas, com a pele grossa por causa do sol e da idade, e marcadas por várias verrugas, cicatrizes e tufos de pelos cinzentos e ásperos. Ao olhar para elas, senti-me tomada por uma tristeza que era em parte perplexidade, como se as costas dele fossem um país estrangeiro no qual eu estivesse perdida; ou melhor, perdida não, exilada, uma vez que a sensação de estar perdida não vinha acompanhada pela esperança de em algum momento encontrar algo que eu reconhecesse. Suas costas envelhecidas pareciam nos isolar ambos em nossas histórias distintas e imutáveis. Ocorreu-me que algumas pessoas poderiam me considerar desmiolada por sair de barco sozinha com um homem que não conhecia. Mas o que os outros pensavam não tinha mais nenhuma serventia para mim. Esses pensamentos existiam apenas dentro de determinadas estruturas, e eu definitivamente havia abandonado essas estruturas.
Estávamos agora em mar aberto, e meu vizinho mudou a marcha do barco, o que o fez de repente saltar para a frente com tanta força que, sem ele perceber, eu quase caí pela amurada traseira. O ruído estrondoso do motor dispersou na mesma hora qualquer outra visão ou som. Agarrei a amurada que corria por uma das laterais e fiquei me segurando ali enquanto atravessávamos rugindo a baía, e a frente do barco subia e tornava a descer até a água com um baque repetidas vezes, e um grande rastro de espuma se abria num leque para todo lado. Fiquei com raiva por ele não ter me avisado sobre o que estava prestes a acontecer. Não conseguia me mexer nem falar; tudo que consegui fazer foi ficar me segurando, com os cabelos arrepiados e o rosto cada vez mais duro por causa da pressão do vento. O barco subia e batia, e a visão de suas costas nuas ao volante foi me deixando cada vez com mais raiva. Havia uma certa afetação na postura de seus ombros; aquilo era então uma performance, um ato de exibicionismo. Ele não olhou para mim nem sequer uma vez, pois os momentos em que as pessoas estão demonstrando o próprio poder sobre as outras são aqueles em que têm menos consciência delas. Perguntei-me o que teria sentido caso houvesse chegado ao seu destino e descoberto que eu não estava mais ali; imaginei-o explicando esse seu último ato de descuido para a mulher seguinte que encontrasse num avião. Ela não parou de insistir comigo para sair de barco, diria ele, mas no fim das contas não sabia absolutamente nada sobre andar de barco. Para ser bem sincero, diria ele, foi um desastre completo: ela caiu no mar, e eu agora estou muito triste.
Por fim, o barulho do motor se dissipou; o barco diminuiu a velocidade e seguiu resfolegando até uma ilhota rochosa que despontava íngreme da superfície do mar. O telefone do meu vizinho tocou, e ele encarou a tela com um ar intrigado antes de atender. Começou a falar em grego com uma voz melíflua enquanto andava para lá e para cá pelo pequeno convés e de vez em quando verificava o leme com um dedo. Vi que estávamos nos aproximando de uma pequena e límpida enseada com muitas aves marinhas pousadas nos promontórios rochosos, e onde a água cintilante batia e recuava numa minúscula meia-lua de areia. A ilha era pequena demais para ter qualquer coisa humana: era intocada e deserta, com exceção das aves. Esperei a conversa do meu vizinho ser concluída, o que levou um tempo considerável. Por fim, contudo, ele desligou. Era alguém com quem eu não falava há anos, disse ele — na verdade, fiquei muito surpreso com a ligação dela. Ele passou um tempo calado, com o dedo no leme e o semblante grave. Ela acabou de saber da morte do meu irmão e estava ligando para dar os pêsames. Perguntei quando o irmão dele tinha morrido. Ah, há uns quatro, cinco anos, disse ele. Mas ela mora nos Estados Unidos, e faz muito tempo que não vem à Grécia. Agora está aqui em visita, então acaba de saber a notícia. O telefone dele tornou a tocar quase no mesmo instante, e mais uma vez ele atendeu. Outra conversa em grego, essa também demorada, mas um pouco mais profissional. Trabalho, explicou ele ao concluí-la, fazendo com a mão um gesto de quem descarta o assunto.
O barco ficou flutuando até parar na água calma. Ele foi até a parte de trás e abriu um compartimento dentro do qual havia uma pequena âncora, e jogou-a no mar por cima da amurada. Aqui é um bom lugar para mergulhar, falou, se você quiser. Observei a âncora afundar pela água transparente. Uma vez o barco preso, meu vizinho foi até a popa e mergulhou pesadamente pela lateral. Depois que ele pulou, enrolei-me numa toalha e desajeitadamente vesti minha roupa de banho. Então também pulei e nadei na direção oposta até chegar junto da ilha, de modo a poder ver o mar aberto mais além. Do outro lado, a margem distante era uma linha cheia de pequenas formas e personagens a se balançar. No meio tempo, outro barco havia chegado e estava ancorado não muito longe do nosso, e eu podia ver as pessoas sentadas no convés e ouvi-las conversando e rindo. Era um grupo familiar, com várias crianças em trajes de banho de cores vivas pulando e subindo da água, e de vez em quando o barulho de um bebê chorando ecoava debilmente pela enseada. Meu vizinho havia tornado a subir no barco e estava em pé a bordo, protegendo os olhos com a mão, observando meu progresso. Foi bom nadar depois da tensão de ficar sentada sem me mexer, do calor de Atenas e da convivência com desconhecidos. A água era muito transparente, calma e fresca, e o contorno do litoral, muito suave e antigo, com a pequena ilha ali perto que não parecia pertencer a ninguém. Tive a sensação de que poderia nadar quilômetros, até o alto-mar; um desejo de liberdade, um impulso de me mover me puxava como se fosse um fio amarrado no meu peito. Era um impulso que eu conhecia bem, e havia aprendido que não era o chamado de um mundo maior, como eu antes acreditava que fosse. Era simplesmente um desejo de escapar do que eu tinha. O fio não conduzia a lugar nenhum exceto a vastidões de anonimato que não paravam de crescer. Eu podia nadar mar adentro até onde quisesse, se o meu desejo fosse me afogar. No entanto, esse impulso, esse desejo de ser livre, continuava a me atrair; de alguma forma eu ainda acreditava nele, apesar de ter provado que tudo nele era ilusório. Quando voltei para o barco, meu vizinho disse que não gostava quando as pessoas nadavam até tão longe: isso o deixava nervoso; lanchas podiam surgir do nada, sem aviso, e colisões desse tipo não eram tão raras assim.
Ele me ofereceu uma Coca do cooler que tinha no convés, e em seguida me estendeu uma caixa de lenços de papel da qual ele próprio tirou um bolo grande. Assoou o nariz de modo completo e demorado enquanto ambos observávamos a família no barco vizinho. Dois meninos e uma menina pequenos brincavam, dando gritinhos ao pular pela amurada e depois subindo um após o outro pela escada, com os corpos molhados reluzentes. Uma mulher lia um livro no convés usando um chapéu de aba larga, e ao seu lado, debaixo da sombra do toldo, havia um berço de bebê. Um homem de bermuda comprida e óculos de sol andava para lá e para cá pelo convés falando ao telefone. Eu disse que hoje em dia achava as aparências mais incompreensíveis e angustiantes do que em qualquer outro momento anterior da minha vida. Era como se eu houvesse perdido alguma capacidade especial de filtrar minhas próprias percepções, capacidade que só percebera depois de ela não estar mais ali, como uma vidraça faltando numa janela pela qual o vento e a chuva entram livremente. De modo bem parecido, sentia-me exposta ao que via, constrangida. Pensava com frequência no capítulo de O morro dos ventos uivantes no qual Heathcliff e Cathy espiam do jardim escuro pelas janelas da sala dos Linton e veem a bem iluminada cena familiar lá dentro. O que essa visão tem de fatal é a sua subjetividade: ao olhar pela janela, os dois veem coisas diferentes, Heathcliff aquilo que teme e odeia, e Cathy aquilo que deseja e de que se sente privada. Mas nenhum deles consegue ver as coisas como realmente são. Da mesma forma, eu estava começando a ver meus próprios medos e desejos manifestados fora de mim mesma, estava começando a ver na vida dos outros um comentário sobre a minha própria vida. Ao olhar para a família no barco, via uma imagem daquilo que eu não tinha mais: em outras palavras, via algo que não estava ali. Aquelas pessoas estavam vivendo no seu presente, e embora eu pudesse ver isso, não podia retornar àquele momento, da mesma forma que não podia andar por cima da água que nos separava. E dessas duas formas de vida — viver no presente e viver fora dele —, qual era a mais real?
As aparências eram muito valorizadas na sua família, disse o meu vizinho, mas ele havia aprendido — de modo talvez fatal — a vê-las como um mecanismo de engodo e disfarce. E era nos relacionamentos mais próximos que o engodo precisava ser mais importante, por motivos óbvios. Por exemplo, ele sabia que muitos homens com a sua experiência — seus tios e pessoas do mesmo círculo social que eles — tinham uma série de amantes ao mesmo tempo que permaneciam a vida inteira casados com a mesma mulher. Só que jamais lhe ocorrera que seu pai tivesse sustentado da mesma forma o casamento com sua mãe. Imaginava o pai e a mãe como unitários, enquanto sabia, por exemplo, que seu tio Theo era um enganador, embora cada vez mais se perguntasse se essa distinção de fato existira; se, em outras palavras, ele passara toda a vida adulta tentando seguir um modelo de casamento que na verdade tinha sido uma ilusão.
Havia um hotel em que Theo gostava de se hospedar, não muito longe do colégio interno do meu vizinho, e seu tio muitas vezes aparecia e o levava para tomar chá, sempre acompanhado por uma “amiga” diferente. Essas amigas eram tão perfumadas e lindas quanto sua tia Irini era escura e atarracada; sua tia tinha várias verrugas no rosto das quais brotavam pelos pretos e grossos de espessura e comprimento extraordinários, e meu vizinho passara a vida inteira fascinado por essa característica, que para ele continuava real, embora Irini houvesse morrido trinta anos antes, e simbolizava a natureza duradoura da repulsa, enquanto a beleza era vista uma vez e depois nunca mais. Quando Irini morreu, aos oitenta e quatro anos de idade e após sessenta e três de casamento, tio Theo se recusou a permitir que ela fosse enterrada, e em vez disso mandou encerrá-la num caixão de vidro e guardá-lo na catacumba de uma capela grega em Enfield, onde a visitou todos os dias dos seis meses que lhe restavam. Meu vizinho nunca havia encontrado Theo e Irini sem testemunhar cenas da mais extraordinária violência: até mesmo um telefonema para casa em geral incluía uma discussão, na qual um deles pegava a extensão para insultar o outro enquanto a pessoa que havia ligado bancava o juiz. Seus pais, embora intensamente belicosos, jamais haviam sequer se aproximado do nível de Theo e da mulher — a deles era uma guerra mais fria, embora talvez mais amarga. Seu pai foi o primeiro a morrer, em Londres, e o corpo foi guardado na mesma catacumba onde ficara o de Irini, pois sua mãe havia cismado de mandar construir um mausoléu de família na ilha, empreitada tão grandiosa que sofrera um grande atraso e não estava pronta para recebê-lo quando ele morreu. Ela tivera essa ideia assim que seu pai adoecera, e o último ano de vida dele foi gasto recebendo boletins quase diários sobre o progresso do mausoléu que estava sendo construído para abrigá-lo. Esse método de tortura singular poderia ter parecido o último golpe da sua discussão de uma vida inteira, mas na verdade, quando chegara a vez de a sua mãe morrer — exatamente um ano depois do pai, como ele acreditava já ter me contado —, o mausoléu ainda não estava pronto. Ela foi se juntar ao marido na catacumba em Enfield, e somente meses depois os dois corpos foram transportados juntos de avião de volta para a ilha em que ambos haviam nascido. Coubera ao meu vizinho supervisionar o sepultamento, bem como a exumação de outros membros da família — seus avós de ambos os lados, vários tios e tias — de seus túmulos no cemitério e sua transferência para o imenso mausoléu novo. Ele pegou o avião de volta, com os corpos dos pais no compartimento de carga, e passou o dia mergulhado junto com os coveiros na horripilante tarefa de transportar e organizar os diversos caixões. Ficara particularmente abalado ao presenciar o retorno à superfície da terra do avô, pai de sua mãe, que tinha sido um homem muito mau e a causa — até o fim dos dias do casal — de muitas das discussões de seus pais, pelo poder que, mesmo na lembrança, continuava a exercer sobre a filha. No final da tarde, seus pais foram os últimos a serem baixados para a imensa estrutura de mármore. Meu vizinho estava com um táxi à espera para levá-lo de volta ao aeroporto, e pegaria um voo para Londres no mesmo dia. No meio do trajeto, porém, sentado dentro do táxi, algo terrível lhe ocorreu. Com toda a reorganização das ossadas da família, de algum modo havia deixado de posicionar os pais lado a lado; pior ainda, recordou distintamente, ali no banco de trás do táxi, era o caixão do avô que repousava entre os dois. Na mesma hora, mandou o taxista dar meia-volta e levá-lo novamente ao cemitério. Quando estavam chegando, disse ao homem que ele teria de ajudá-lo, pois já era quase noite e todos os outros já deviam ter ido para casa. O taxista aceitou, mas assim que os dois entraram pelos portões do cemitério no escuro, ficou com medo e fugiu, deixando meu vizinho sozinho. Ele não se lembrava exatamente de como conseguira abrir o mausoléu sozinho, disse meu vizinho; ainda era um homem bastante jovem, mas mesmo assim naquele momento devia ter sido imbuído de uma força sobre-humana. Subiu na borda e desceu para dentro do jazigo, e lá, dito e feito, viu os caixões do pai e da mãe com o avô entre eles. Não foi tão difícil assim fazê-los deslizar para os lugares certos, mas uma vez isso feito ele percebeu que, devido à inclinação e à profundidade do túmulo, seria impossível sair. Chamou e gritou, mas não teve sucesso; pulou e arranhou as paredes lisas da sepultura para tentar encontrar um apoio.
Mas imagino que eu deva ter dado um jeito de sair, disse ele, pois com certeza não passei a noite inteira lá dentro, embora tenha pensado que fosse ter de passar. Talvez o taxista no fim das contas tenha voltado — eu não me lembro. Ele sorriu, e durante algum tempo ficamos os dois observando a família no outro barco, do outro lado da água cintilante. Falei que, quando meus filhos tinham a mesma idade daqueles meninos saltitantes, eram tão grudados que teria sido difícil desenredar suas duas naturezas distintas. Costumavam brincar juntos sem parar desde o instante em que abriam os olhos de manhã até aquele em que tornavam a fechá-los. Suas brincadeiras eram uma espécie de transe compartilhado no qual eles criavam mundos imaginários inteiros, e viviam entretidos em jogos e projetos cujo planejamento e execução eram tão reais para eles quanto invisíveis para todos os outros: às vezes eu mudava de lugar ou jogava fora algum item aparentemente sem importância, e eles vinham me dizer que aquilo era um objeto sagrado no faz de conta em andamento, uma narrativa que parecia correr feito um rio mágico pela nossa casa, inexaurível, e da qual eles podiam sair e reingressar sempre que quisessem, cruzando esse limiar que ninguém mais conseguia ver até adentrar um outro elemento. Então, um belo dia, o rio secou: seu mundo imaginário compartilhado deixou de existir, e o motivo foi que um deles — nem sequer me lembro qual — deixou de acreditar na sua existência. Em outras palavras, não foi culpa de ninguém; mesmo assim, porém, compreendi o quanto de belo em suas vidas era resultado de uma visão comum de coisas que, a rigor, não se podia dizer que existissem.
Imagino que essa seja uma das definições do amor, falei, a crença em algo que só vocês dois conseguem ver, e nesse caso ela se revelou uma base instável para a vida. Sem sua história compartilhada, os dois meninos começaram a brigar, e enquanto a sua brincadeira os havia afastado do mundo, às vezes os tornando inacessíveis durante horas a fio, suas discussões os traziam constantemente de volta para ele. Eles recorriam a mim, ou então ao pai, em busca de intervenção e justiça. Começaram a dar maior importância aos fatos, ao que tinha sido feito e dito, e a montar uma argumentação a seu favor e contra o outro. Era difícil não ver essa transposição do amor para os fatos como um espelho de outras coisas que estavam acontecendo em nossa casa na época, falei. O mais impressionante foi o potencial absolutamente negativo de sua antiga intimidade: era como se tudo que antes era interno houvesse sido trazido para o lado de fora, pedacinho por pedacinho, feito peças de mobília retiradas de uma casa e postas na calçada. Parecia haver muita coisa, pois o que antes era invisível estava agora visível; o que antes fora útil era agora obsoleto. Seu antagonismo tinha a medida exata da sua antiga harmonia, mas enquanto a harmonia havia sido atemporal, sem peso, o antagonismo ocupava espaço e tempo. O intangível se tornava sólido, o visionário ganhava corpo, o privado virava público; quando a paz se torna guerra, quando o amor vira ódio, algo nasce para o mundo, uma força de pura mortalidade. Se o amor é aquilo que nos torna imortais, como dizem, o ódio é o contrário. E o mais impressionante é quantos detalhes ele atrai para si, de modo que nada permanece intocado. Eles estavam lutando para se libertar um do outro, mas apesar disso a última coisa que conseguiam fazer era deixar o outro em paz. Brigavam por tudo, disputavam a posse dos objetos mais insignificantes, ficavam enfurecidos com as mais ínfimas nuances do discurso, e quando finalmente ficavam enlouquecidos pelos detalhes partiam para a violência física, batiam um no outro e se arranhavam; o que naturalmente os levava de volta à loucura dos detalhes outra vez, pois a violência física acarreta os demorados processos da justiça e da lei. A história de quem tinha feito o que com quem precisava ser contada, e as questões da culpa e da punição precisavam ser estabelecidas, embora isso tampouco jamais os deixasse satisfeitos; na verdade piorava mais ainda as coisas, pois parecia prometer uma solução que nunca chegava. Quanto mais os pormenores eram especificados, maior e mais real se tornava a sua briga. Cada um deles desejava mais do que tudo ser declarado certo, e o outro errado, mas era impossível atribuir a culpa de modo completo a qualquer um deles. E acabei me dando conta, falei, de que aquilo jamais poderia ser resolvido, não enquanto o objetivo fosse estabelecer a verdade, pois não existia mais uma única verdade, a questão era essa. Não existia mais uma visão comum, ou sequer uma realidade comum. Cada um deles agora via as coisas somente da sua própria perspectiva; só havia um ponto de vista.
Meu vizinho passou algum tempo calado. Pouco depois, disse que no seu caso os filhos tinham sido o seu esteio ao longo de todos os altos e baixos da sua carreira conjugal. Ele sempre havia sentido que era um bom pai; na verdade, imaginava ter sido mais capaz de amar os filhos e se sentir amado por eles do que fora o caso com as diversas mães deles. Mas a sua própria mãe um dia tinha lhe dito, na fase posterior ao término do seu primeiro casamento, quando ele estava profundamente preocupado com o efeito do divórcio sobre as crianças, que a vida familiar era um misto de alegria e tristeza a despeito do que você fizesse. Se não fosse o divórcio seria outra coisa, disse ela. Não existia infância perfeita, embora as pessoas façam de tudo para convencer você do contrário. Uma vida sem dor era algo que não existia. Quanto ao divórcio, ainda que você vivesse como um santo iria vivenciar todas as mesmas perdas, por mais que tentasse explicá-las. Eu seria capaz de chorar só de pensar que nunca mais vou ver você como era aos seis anos de idade — daria tudo, disse ela, para encontrar esse menino de seis anos mais uma vez. Mas tudo passa, por mais que se tente impedir. E por aquilo que voltar para você, seja lá o que for, sinta-se grato. Então ele havia tentado se sentir grato, até mesmo pelo filho, que fracassara de modo tão espetacular ao tentar sobreviver no mundo lá fora. Como muitas pessoas vulneráveis, seu filho desenvolvera uma obsessão por animais, e meu vizinho tivera mais dores de cabeça do que conseguia se lembrar ao acatar os incessantes pedidos para esta ou aquela criatura indefesa ser resgatada e acolhida. Cães, gatos, ouriços, passarinhos, até certa vez um cordeiro bebê quase morto por uma raposa, em cuja boca meu vizinho havia passado uma noite inteira acordado dando leite morno de colher. Durante essa vigília, falou, desejara que o cordeiro vivesse, não especialmente para o bem do animal em si, mas pela afirmação que isso teria proporcionado da solitária estrada escolhida por ele em relação ao filho, que era tratá-lo com a maior sensibilidade e indulgência possíveis. Se o cordeiro sobrevivesse, talvez isso tivesse significado uma espécie de aprovação — nem que fosse apenas do universo — da decisão do meu vizinho de agir em contradição direta com a mãe do menino, que o teria abandonado num hospital psiquiátrico. Mas é claro que no dia seguinte ele se vira enterrando o bicho enquanto Takis ainda dormia; e esse fora apenas um dos incontáveis incidentes devido aos quais ele acabara se sentindo tolo por ter decidido tratar o menino sem recorrer à crueldade. Pelo visto, disse ele, o universo privilegia pessoas como a sua ex-mulher, que negam aquilo que tem um reflexo negativo sobre elas próprias; embora nas histórias, claro, as coisas ruins retornem para assombrá-las. Seus problemas atuais advinham de uma noite na semana anterior, quando o acompanhante do filho havia se isolado para trabalhar no seu doutorado e Takis aproveitara a escuridão para fugir e assumira a tarefa de tentar libertar vários animais mantidos em cativeiro na ilha, entre os quais uma espécie de jardim zoológico excêntrico que um empreendedor local estava criando como um projeto pessoal, de modo que agora havia diversos animais selvagens soltos pela ilha — avestruzes, lhamas, tamanduás e até mesmo uma tropa de minúsculos pôneis do tamanho de cachorros. Seu dono era um recém-chegado, menos respeitoso da ancestralidade familiar, e ficara muito zangado com os danos causados à sua propriedade e aos seus animais: aos seus olhos, Takis era um vândalo, um criminoso, e não havia muita coisa que meu vizinho pudesse dizer ou fazer em sua defesa. Aprende-se muito depressa, disse ele, que nossos filhos só são imunes ao nosso próprio julgamento. Se o mundo os considera deficientes, você tem de aceitá-los de volta. Embora isso, é claro, seja algo que ele imagina sempre ter sabido, pois seu irmão deficiente mental, agora um homem de setenta e poucos anos, nunca sequer saiu do lugar em que nasceu.
Ele perguntou se eu gostaria de dar outro mergulho antes de voltarmos para o continente, e dessa vez permaneci dentro do campo de visão dos dois barcos e nadei mais perto da enseada, onde o choro do bebê ecoava nas pedras altas. O pai andava para lá e para cá pelo convés com o pequeno corpinho apertado junto ao ombro, e a mãe se abanava com as três crianças sentadas de pernas cruzadas aos seus pés. Havia diversos panos e tecidos em cores claras pendurados pelo barco para proporcionar sombra, e a brisa de vez em quando os enfunava e os fazia murchar outra vez, de modo que o grupo era ocultado por alguns instantes e em seguida revelado outra vez. Eles mantinham cada qual sua posição, e pude ver que esperavam o bebê parar de chorar, que o instante os libertasse e o mundo avançasse outra vez. Do outro lado da enseada, meu vizinho saíra nadando numa linha reta e curta e voltara imediatamente, e observei-o galgar a pequena escada para subir outra vez no barco. Ao longe, ele ficou andando pelo convés com seu passo levemente cadenciado enquanto secava as costas carnudas com uma toalha. A alguns metros de mim, um biguá negro pousado numa pedra fitava o mar sem se mexer. O bebê parou de chorar e a família na mesma hora começou a se mover, mudando de posição no espaço confinado como se fossem pequenos personagens mecânicos rodopiando num porta-joias. O pai se curvou e pôs o filho no berço, a mãe se levantou e se virou, os dois meninos e a menina esticaram as pernas e uniram as mãos até formar uma roda, com os corpos cintilando e reluzindo ao sol. De repente senti medo, sozinha dentro da água, e voltei para o barco, onde meu vizinho guardava coisas e abria o compartimento, pronto para puxar a âncora. Ele sugeriu que eu me deitasse no banco estofado, uma vez que devia estar cansada, e tentasse dormir durante a travessia até o continente. Deu-me uma espécie de xale para eu me cobrir, e eu o puxei por cima da cabeça até tampar o céu, o sol e a água dançante; e dessa vez, quando o barco deu seu salto para a frente em meio ao ruído ensurdecedor do motor, encontrei nisso certo conforto e constatei que de fato comecei a cochilar. De vez em quando abria os olhos e via o tecido desconhecido bem na frente deles, e tornava a fechá-los; e ao sentir meu corpo ser projetado às cegas pelo espaço, experimentei a sensação de que tudo na minha vida tinha sido atomizado, todos os elementos separados como se uma explosão os houvesse feito sair voando a partir do centro em várias direções. Pensei nos meus filhos e me perguntei onde estariam naquele momento. A imagem da família no barco, o círculo brilhante do porta-joias a girar, tão mecânica e fixamente compacto, e ao mesmo tempo tão gracioso e correto, se movia atrás das minhas pálpebras. Aquilo me lembrou, com extraordinária clareza, estar deitada quando criança, meio adormecida, no banco de trás do carro dos meus pais durante a interminável e sinuosa viagem de volta da praia para casa, onde muitas vezes íamos passar o dia no verão. Não havia uma rodovia direta entre os dois lugares, apenas um emaranhado de estradinhas rurais que, no mapa, pareciam as ilustrações embaralhadas de veias e capilares num livro escolar, de modo que não fazia nenhuma diferença especial que caminho você pegava, contanto que a direção geral estivesse certa. Apesar disso, meu pai tinha um caminho preferido, porque este lhe parecia ser ligeiramente mais curto do que os outros, então nós íamos sempre pelo mesmo lugar, cruzando e recruzando as estradas alternativas e passando por placas de lugares pelos quais já tínhamos passado ou que jamais iríamos ver, pois a ideia que meu pai fazia da viagem havia se transformado, com o tempo, numa realidade intransponível, a ponto que teria parecido errado se por acaso houvéssemos passado por aqueles vilarejos desconhecidos, embora na verdade não teria feito a menor diferença. Nós, crianças, íamos deitadas no banco de trás, sonolentas e enjoadas por causa do balanço do carro, e às vezes eu abria os olhos e via a paisagem de verão passando pelas janelas empoeiradas, tão plena e madura naquela época do ano que parecia impossível algum dia ser destruída e transformada em inverno.
O ímpeto da embarcação começou a diminuir, e o barulho do motor, a se extinguir. Quando me sentei, meu vizinho me perguntou educadamente se eu tinha conseguido desligar um pouco. Estávamos nos aproximando da marina, com seus barcos brancos a contrastar fortemente com o fundo azul, e depois deles a paisagem marrom, desfocada no calor, tudo parecendo se mover incessantemente para cima e para baixo sob o sol, embora na verdade o movimento fosse nosso. Se eu estivesse com fome, disse o meu vizinho, ele conhecia um restaurante bem perto dali que servia souvlaki . Eu já tinha comido souvlaki ? Era muito simples, mas podia ser muito bom. Se eu tivesse um pouco de paciência enquanto ele atracava o barco e fazia os procedimentos necessários, poderíamos comer dali a pouco, e depois ele me levaria de carro de volta para Atenas.