V
À noite eu iria encontrar um velho amigo, Paniotis, num restaurante do centro da cidade. Ele ligou para me explicar como chegar lá, e também para dizer que uma outra pessoa — uma escritora de quem eu talvez tivesse ouvido falar — provavelmente se juntaria a nós. Ela insistira muito; ele estava torcendo para eu não me importar. Ela não era alguém que ele quisesse desagradar; eu moro em Atenas há tempo demais, falou. Explicou o caminho de forma meticulosa, duas vezes. Estava preso numa reunião, falou, caso contrário teria ido ele mesmo me buscar. Não gostava de me deixar encontrar o caminho sozinha, mas esperava ter explicado tudo suficientemente bem. Se eu contasse os sinais de trânsito como ele me instruíra e virasse à direita entre o sexto e o sétimo, não iria errar.
À noite, já sem o sol no céu, o ar adquiria uma espécie de viscosidade na qual o tempo parecia se imobilizar por completo, e o labirinto da cidade, não mais cindido pela luz e pela sombra e sem a perturbação das brisas vespertinas, parecia suspenso numa espécie de sonho, parado numa atmosfera de extraordinária palidez e untuosidade. Em determinado momento a noite caía, mas tirando isso os finais de dia eram estranhamente desprovidos da sensação de continuidade: a cidade não esfriava, nem ficava mais silenciosa ou mais vazia; o zum-zum das conversas e risadas vazava incontido das varandas iluminadas dos restaurantes, o tráfego era um rio caudaloso de luzes cheio de buzinas, crianças pequenas andavam de bicicleta pelas calçadas sob os postes de luz cor de bile. Apesar do escuro, era sempre dia, com os pombos ainda arrulhando nas praças acesas de néon, as bancas de jornal abertas nas esquinas das ruas, o cheiro de massa assada ainda permeando o ar exausto ao redor das padarias. No restaurante de Paniotis, um homem gordo usando um pesado terno de tweed, sentado sozinho numa mesa de canto, cortava delicadamente uma fatia de melancia rosada em pedacinhos pequenos com seu garfo e faca e os depositava com cuidado na boca. Aguardei, correndo os olhos pelo interior e seus painéis de madeira escura com janelinhas de vidro bisotado nas quais o mar de mesas e cadeiras vazias se multiplicava em reflexos. Aquele não era um lugar da moda, reconheceu Paniotis ao chegar; Angeliki, que em breve se juntaria a nós, ficaria contrariada, mas pelo menos ali era possível conversar, e dava para ter certeza de não encontrar nenhum conhecido que pudesse interromper. Eu talvez não compartilhasse seus sentimentos — na verdade, ele torcia para que não —, mas ele não tinha mais interesse em socializar; na verdade, cada vez mais achava os outros decididamente incompreensíveis. As pessoas interessantes são como ilhas, disse ele: não se esbarra com elas numa rua ou numa festa, é preciso saber onde estão e combinar de ir ao seu encontro.
Ele pediu que eu me levantasse de modo a poder me dar um abraço, e quando saí de detrás da mesa, me encarou com atenção. Vinha tentando se lembrar, falou, de quanto tempo fazia que não nos víamos — eu por acaso sabia? Devia fazer mais de três anos, falei, e ele aquiesceu enquanto eu falava. Almoçamos num restaurante em Earls Court, num dia quente para os padrões ingleses, e por algum motivo meu marido e meus filhos também estavam presentes. Estávamos a caminho de algum outro lugar: paramos para encontrar Paniotis, que estava em Londres por causa da feira do livro. Eu saí daquele almoço com a sensação de que a minha própria vida tinha sido um fracasso, disse ele. Você parecia tão feliz com a sua família, tão completa, era uma imagem de como as coisas deveriam ser.
Quando ele me abraçou, senti seu corpo extremamente leve e frágil. Ele estava usando uma camisa puída de cor lilás e um jeans tão grande que pendia em camadas de tecido. Deu um passo para trás e tornou a me olhar com atenção. O rosto de Paniotis tem um quê de personagem de desenho animado: tudo nele é exagerado, as bochechas muito descarnadas, a testa muito larga, as sobrancelhas enviesadas como pontos de exclamação, os cabelos a se projetar em todas as direções, de modo que se tem a curiosa sensação de estar olhando para uma ilustração de Paniotis em vez de para o próprio Paniotis. Mesmo quando relaxado, ele ostenta a expressão de alguém que acaba de ouvir algo extraordinário, ou de alguém que abriu a porta e levou um grande susto com o que encontrou atrás dela. Os olhos, no meio dessa expressão que lembra um esgar, são muito irrequietos, cambiantes, e muitas vezes exageradamente saltados, como se um dia pudessem sair voando de seu rosto, tamanha a surpresa com o que testemunharam.
E agora posso ver que alguma coisa aconteceu, disse ele, e devo dizer que não esperava por isso. Eu não entendo, não mesmo. Naquele dia no restaurante, disse ele, eu tirei uma foto de você com a sua família — você se lembra? Sim, falei, me lembro sim. Disse torcer para ele não estar prestes a me mostrar a fotografia, e a expressão dele se fez grave. Se você não quiser, falou. Mas é claro que eu a trouxe comigo; está aqui dentro da minha pasta. Eu lhe disse que, na verdade, o que se destacava na minha lembrança daquele dia era ele ter tirado uma fotografia. Lembrava-me de pensar que era algo incomum de se fazer, ou pelo menos algo que a mim mesma não teria ocorrido. Aquilo estabelecia uma diferença entre mim e ele, no sentido de que ele estava observando algo enquanto eu, logicamente, estava de todo imersa em ser aquela coisa. Fora um daqueles instantes que, em retrospecto, passaram a me parecer muito proféticos, falei. E de fato, por estar tão imersa, eu não reparei que Paniotis foi embora do nosso encontro sentindo que a sua vida tinha sido um fracasso, não mais do que a montanha repara no alpinista que perde o pé e cai num de seus desfiladeiros. Às vezes já me pareceu que a vida é uma série de punições para tais momentos de desatenção, que uma pessoa molda o próprio destino com aquilo em que não repara ou pelo que não sente compaixão; que aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer. Enquanto eu falava, Paniotis ia ficando cada vez mais horrorizado. Essa é uma ideia horrível que só uma católica teria sido capaz de inventar, disse ele. Embora eu não possa dizer que não haja bastante gente que eu gostasse de ver punida de modo tão deliciosamente cruel. São esses, porém, que se pode afirmar que chegarão ao fim de seus dias sem que o sofrimento os ilumine. Eles fazem questão, disse ele, pegando o cardápio e virando-se com um dedo erguido para o garçom, um homem imenso, de barba cinza, vestido com um longo avental branco, que havia passado todo esse tempo entrincheirado no canto do salão quase vazio em tamanha imobilidade que eu nem sequer tinha reparado nele. O garçom se aproximou e postou-se diante da nossa mesa com os braços portentosos cruzados diante do peito, e ficou meneando a cabeça enquanto Paniotis falava com ele depressa.
Naquele dia em Londres, retomou Paniotis, virando-se outra vez de frente para mim, eu entendi que o meu pequeno sonho de ter uma editora estava fadado a permanecer apenas isto, uma fantasia, e na verdade o que essa consciência me fez sentir foi nem tanto decepção com a situação quanto espanto diante da fantasia em si. Pareceu-me incrível que eu, aos cinquenta e um anos de idade, ainda fosse capaz de produzir, em total ingenuidade, uma esperança de todo impossível de realizar. A capacidade humana de se autoiludir é aparentemente infinita — e se for assim, como é que podemos saber, a não ser existindo num estado de pessimismo absoluto, que mais uma vez estamos enganando a nós mesmos? Depois de ter vivido a vida inteira neste país trágico, eu pensava que não havia mais nada com o que pudesse me iludir mas, como você frisou de modo tão infeliz, é justamente aquilo que você não vê, aquilo a que não dá valor, que acaba por enganá-lo. E como você pode nem sequer saber que não dava valor a alguma coisa até ela não estar mais lá?
O garçom se materializou ao nosso lado com vários pratos na mão, e Paniotis se calou com um último gesto exagerado de consternação e se recostou na cadeira para deixá-lo dispor tudo sobre a mesa. Havia uma garrafa de vinho amarelo-claro, uma travessa de azeitonas verdes pequeninas com seus cabinhos, que pareciam amargas mas eram adocicadas e deliciosas, e uma travessa de mexilhões frios e delicados dentro de suas conchas pretas. Para nos fortalecer antes da chegada de Angeliki, disse Paniotis. Você vai constatar que Angeliki se tornou muito cheia de si depois que um de seus romances ganhou algum prêmio em algum lugar da Europa, disse ele, e agora é considerada, ou pelo menos se considera, uma celebridade literária. Findos os seus sofrimentos, fossem lá quais fossem, ela elegeu a si mesma uma espécie de porta-voz da feminilidade sofredora em geral, não só na Grécia, mas em outros territórios que demonstraram interesse pelo seu trabalho. Seja para onde for convidada, ela vai. O romance, disse ele, é sobre uma pintora cuja vida artística está aos poucos sendo sufocada por sua vida doméstica: o marido é diplomata, e a família vive sendo desenraizada e transferida para outro lugar, de modo que a pintora passa a ter a sensação de que o seu trabalho é apenas decorativo, um passatempo, enquanto o de seu marido é considerado não só por ele, mas pelo mundo, algo importante, algo que cria acontecimentos em vez de proporcionar apenas um comentário a seu respeito, e que quando há um conflito entre os dois, algo que acontece com frequência, uma vez que se trata de um romance de Angeliki, as necessidades dele se sobrepõem às necessidades dela. E depois de algum tempo o trabalho dela começa a se tornar mecânico, uma farsa; não há paixão, mas a necessidade que ela tem de se expressar perdura. Em Berlim, onde a família agora vive, ela conhece um rapaz, um pintor, que reacende sua paixão tanto pela pintura quanto por todo o resto — mas agora o problema é que ela se sente velha demais para esse rapaz, e sente-se também terrivelmente culpada, sobretudo por causa dos filhos, que pressentiram algo errado e começaram a ficar abalados. Mais do que tudo, ela sente raiva do marido por tê-la colocado nessa situação, por tê-la feito perder a paixão para começo de conversa e a deixado inteiramente responsável pelas consequências. E o jovem pintor ainda a faz se sentir velha, com suas festas que varam a noite, suas drogas recreativas e seu assombro diante das marcas que a experiência deixou no seu corpo de mulher. Não há ninguém com quem ela possa conversar, ninguém para quem possa contar — que lugar solitário, diz Paniotis com um sorriso de desdém. É este o título, aliás:
Um lugar solitário.
Minha desavença com Angeliki, diz ele, tem a ver com o fato de ela substituir a escrita pela pintura, como se as duas fossem intercambiáveis. Na minha experiência, os pintores são bem menos convencionais do que os escritores. Escritores precisam se esconder na vida burguesa, do mesmo jeito que carrapatos precisam se esconder no pelo de um animal: quanto mais profundamente enterrados estiverem, melhor. Eu não acredito na pintora que há nela, diz ele, preparando a merenda dos filhos na sua cozinha alemã high tech enquanto tem fantasias sexuais com um jovem de jaqueta de couro andrógino e musculoso.
Perguntei a ele o que, em Londres, o tinha feito deixar de acreditar na sua editora, que ele acabara de abrir e que de fato, pouco depois — assim eu ficara sabendo —, fora comprada por uma empresa maior, de modo que Paniotis era agora um editor dessa empresa, em vez do diretor da própria editora. Minha reverência por tudo o que é inglês não foi correspondida, respondeu ele após um silêncio, e seus olhos ficaram marejados e se reviraram nas órbitas. Foi quando as coisas começaram a ficar difíceis aqui, continuou ele, embora na época ninguém soubesse até que ponto iriam piorar. A editora devia se dedicar exclusivamente a traduzir e lançar autores de língua inglesa desconhecidos na Grécia, escritores pelos quais as editoras comerciais não se interessavam, por cujas obras Paniotis tinha profunda admiração e que estava decidido a tornar disponíveis para os seus conterrâneos. Em algum momento, porém, começou a não conseguir pagar os adiantamentos desses autores, cujos livros muitas vezes ele próprio traduzira de modo a cortar custos. Em Londres, viu-se criticado, até mesmo pelos próprios autores, por não pagar um dinheiro que os livros, a rigor, ainda não tinham de fato rendido; passou a ser tratado por todos com o mais grave desprezo, foi ameaçado com processos na justiça e, o pior de tudo, acabou com a impressão de que esses escritores, que antes venerava como os artistas do nosso tempo, eram na realidade pessoas frias, sem solidariedade alguma, dedicadas à autopromoção e acima de tudo ao dinheiro. Deixou bastante claro para elas que, se fosse forçado a pagar, sua editora iria falir antes mesmo de começar, o que de fato aconteceu; esses mesmos escritores são rejeitados regularmente pela editora para a qual ele agora trabalha, que só se interessa por sucessos de venda. Assim aprendi, disse ele, que é impossível melhorar as coisas, e que as pessoas boas são tão responsáveis por isso quanto as más, e que a melhora em si talvez não passe de uma fantasia pessoal, tão solitária à sua maneira quanto o lugar solitário de Angeliki. Somos todos viciados nela, disse ele, extraindo um marisco da concha com os dedos trêmulos e levando à boca, na história da melhora, a tal ponto que ela tem dominado a nossa mais profunda noção da realidade. Ela infestou até o romance, embora talvez agora o romance esteja nos infestando de volta, de modo que esperamos de nossas vidas o que passamos a esperar de nossos livros; mas essa noção da vida como progressão é algo que eu não quero mais.
Ele percebia agora que, no seu casamento, o princípio do progresso estava sempre em ação, na aquisição de casas, bens, carros, no ímpeto rumo a um status social mais elevado, a mais viagens, a um círculo de amigos mais amplo, e até mesmo a produção de filhos parecia um ponto obrigatório dessa louca viagem; e era inevitável, ele agora via, que quando já não houvesse mais coisas para acrescentar ou melhorar, nenhum outro objetivo a ser alcançado ou estágio a atravessar, a viagem pareceria ter chegado ao fim, e ele e sua mulher seriam acometidos por um grande sentimento de inutilidade e pela sensação de alguma doença, que na verdade era apenas a sensação de imobilidade após uma vida com excesso de movimento, como o que os marinheiros sentem ao andar em terra firme após passar tempo demais no mar, mas que para ambos havia assinalado que eles não estavam mais apaixonados. Se ao menos nós tivéssemos tido o bom senso, disse ele, de nos reconciliar um com o outro naquela época, de partir do princípio sincero de que éramos duas pessoas não apaixonadas, mas que mesmo assim não queriam o mal uma da outra; bem, disse ele, com os olhos outra vez marejados, se tivesse sido esse o caso, eu acredito que poderíamos ter aprendido a realmente nos amar e a amar a nós mesmos. Em vez disso, porém, vimos isso como mais uma oportunidade de progresso, vimos a jornada se desdobrando de novo, só que dessa vez era uma viagem pela destruição e pela guerra, para a qual ambos demonstramos a mesma energia e a mesma aptidão de sempre.
Hoje em dia eu vivo de modo muito simples, disse ele. Pela manhã, quando o sol nasce, pego o carro e vou até um lugar que conheço, a vinte minutos de Atenas, e nado até o final da baía, ida e volta. À noite, sento-me na varanda de casa e fico escrevendo. Ele fechou os olhos por um breve instante e sorriu. Perguntei-lhe o que estava escrevendo, e seu sorriso se alargou. Estou escrevendo sobre a minha infância, respondeu ele. Eu era tão feliz quando criança, continuou, e dei-me conta faz pouco tempo de que não havia nada que desejasse tanto quanto recordar isso pedacinho por pedacinho, com todos os detalhes possíveis. O mundo no qual essa felicidade existia desapareceu por completo, não apenas na minha própria vida, mas na Grécia como um todo, pois, quer tenha consciência disso ou não, a Grécia é um país que está de joelhos e morrendo uma morte lenta e agonizante. No meu próprio caso, às vezes me pergunto se foi justamente a felicidade da minha infância que me fez precisar aprender a sofrer. Eu pareço ter sido excepcionalmente lento para entender de onde vem a dor, e como ela aparece. Levei muito tempo para aprender a evitá-la. Outro dia li no jornal, disse ele, sobre um menino acometido por um curioso distúrbio mental que o leva a buscar o risco físico, e portanto a se ferir sempre que possível. Esse menino vive pondo a mão no fogo, jogando-se de muros e trepando em árvores para delas cair; já quebrou praticamente todos os ossos e, é claro, tem o corpo coberto por cortes e hematomas, e o jornal perguntou aos pobres pais qual era o seu comentário sobre essa situação. O problema, disseram eles, é que ele não tem medo. Mas a mim parece que na verdade é exatamente o contrário: ele tem medo demais, tanto que é levado a fazer aquilo que teme para evitar o risco de que isso venha a acontecer por conta própria. Acho que se eu, quando criança, tivesse sabido o que era possível em termos de dor, talvez tivesse tido uma reação bem parecida. Talvez você se lembre, na
Odisseia
, disse ele, do personagem de Elpenor, o marinheiro companheiro de Ulisses, que cai do telhado da casa de Circe porque está tão feliz que esquece que precisa usar uma escada para descer. Ulisses o encontra no Hades mais tarde, e lhe pergunta por que cargas-d’água ele morreu de modo tão bobo. Paniotis sorriu. Sempre achei isso um detalhe encantador, disse ele.
Uma mulher que com certeza era Angeliki — uma vez que não havia outros clientes, e ninguém mais havia entrado no restaurante durante todo esse tempo — acabara de entrar pela porta e estava interrogando o garçom num tom bastante enérgico; seguiu-se uma conversa de duração inexplicável, durante a qual os dois saíram do restaurante e dali a pouco tornaram a entrar, quando a conversa então prosseguiu com mais vigor do que nunca, e os cabelos louros e bem cortados da mulher balançavam com os movimentos rápidos de sua cabeça e seu lindo vestido cinza — feito de um tecido de seda finíssimo — girava quando ela passava o peso do corpo de um pé para o outro, impaciente como um pônei indócil. Ela calçava belíssimas sandálias de salto de couro prateado e carregava uma bolsa no mesmo feitio, e teria sido um retrato da elegância caso não tivesse, ao se virar para olhar na direção do braço com que o garçom apontava — e ver, no final deste, a nossa mesa —, exibido um semblante tão extraordinariamente ansioso que qualquer um que o visse não poderia deixar de sentir ansiedade por ela também. Como Paniotis previra, sua escolha de restaurante desagradou a Angeliki; ela só tinha entrado, aliás, para pedir indicações sobre como chegar ao lugar que Paniotis escolhera, sem perceber que era ali mesmo, e o garçom tivera de levá-la até o lado de fora e lhe mostrar o letreiro para convencê-la; e mesmo assim ela estava certa de que algum local mais adequado deveria existir ali perto com o mesmo nome. Mas eu escolhi este especialmente para você, disse Paniotis com os olhos esbugalhados. O chef é da sua cidade, Angeliki; o cardápio tem todos os seus pratos bálticos preferidos. Por favor, queira desculpá-lo, disse Angeliki, tocando meu braço com uma das mãos de unhas feitas. Ela então reclamou rapidamente com Paniotis em grego, tirada que se encerrou com ele pedindo licença para se levantar da mesa e desaparecendo na direção dos toaletes.
Sinto muito não ter conseguido chegar antes, continuou Angeliki, ofegante. Tive de ir a uma recepção, depois passei em casa para pôr meu filho na cama — não o tenho visto muito ultimamente, já que estou em turnê com meu livro. Uma turnê pela Polônia, acrescentou ela antes de eu conseguir perguntar, principalmente Varsóvia, mas visitei outras cidades também. Ela perguntou se eu já tinha ido à Polônia, e quando respondi que não, meneou a cabeça com certa tristeza. Os editores de lá não têm dinheiro para convidar muitos escritores, disse ela, o que é uma pena, porque eles lá precisam de escritores de um jeito que as pessoas daqui não precisam. No último ano, disse ela, eu visitei muitos lugares pela primeira vez, mas a Polônia foi a turnê que mais me afetou, porque me fez ver meus livros não apenas como entretenimento para a classe média, mas como algo vital, em muitos casos uma boia salva-vidas, para pessoas — em grande parte mulheres, é preciso reconhecer — que se sentem muito sozinhas nas suas vidas cotidianas.
Angeliki pegou a garrafa e se serviu melancolicamente uma colherinha de chá de vinho antes de encher meu copo quase até a borda.
“Meu marido é diplomata”, disse ela, “então nós viajamos muito por causa do trabalho dele, claro. Mas a sensação de viajar por causa do meu trabalho e de estar viajando de modo independente é completamente diferente. Admito que senti medo algumas vezes, mesmo em lugares que conheço bem. E na Polônia fiquei muito nervosa, porque lá havia muito pouca coisa que eu reconhecesse — a começar pela língua. Mas parte disso, no início, se deu pelo simples fato de eu estar desacostumada a ser eu mesma. Por exemplo”, continuou ela, “nós moramos seis anos em Berlim, mas mesmo quando estive lá sozinha como escritora a cidade me pareceu de certa forma estrangeira. Em parte foi porque eu estava vendo um novo aspecto dela, a cultura literária — da qual eu estava inteiramente fora antes —, e em parte porque estar lá sem meu marido fez que eu me sentisse, de modo inteiramente novo, aquilo que de fato sou.”
Respondi que não sabia se, num casamento, era possível saber o que você de fato era, ou até mesmo separar o que você era daquilo em que havia se transformado por meio da outra pessoa. Eu achava que todo o conceito de um eu “real” talvez fosse ilusório; em outras palavras, a gente podia sentir dentro de nós a existência de algum eu separado, autônomo, mas talvez esse eu na verdade não existisse. Minha mãe certa vez admitira, falei, que ficava doida que fôssemos para a escola, mas que depois que saíamos, não sabia o que fazer e queria que voltássemos. E até hoje, mesmo agora que os filhos são adultos, ela ainda encerrava nossas visitas de modo um tanto forçado e nos enxotava para nossas próprias casas como se algo terrível pudesse acontecer caso ficássemos. No entanto, eu tinha quase certeza de que experimentava aquela mesma sensação de perda depois que saíamos, e me perguntava o que ela estaria procurando e por que tinha nos mandado embora para poder encontrar. Angeliki começou a remexer dentro da sua elegante bolsa prateada, e dali a pouco sacou um bloquinho e uma lapiseira.
“Por favor, com licença”, disse ela. “É que eu preciso anotar isso.” Passou alguns segundos escrevendo, então ergueu os olhos e disse: “Você poderia repetir a segunda parte?”.
Reparei que o caderninho dela era muito organizado, assim como o restante da sua aparência, com as páginas escritas em linhas retas e ordenadas. Sua lapiseira também era de prata, com um grafite retrátil que ela empurrou com firmeza de volta para dentro do tubo. Ao terminar, falou: “Devo admitir que me espantei com a reação na Polônia, me espantei muito. Suponho que você saiba que as mulheres na Polônia são extremamente politizadas; as minhas plateias eram noventa por cento femininas”, disse ela, “e todas muito cheias de opiniões. É claro que as gregas também são muito cheias de opiniões…”.
“Mas elas se vestem melhor”, disse Paniotis, que a essa altura já tinha voltado. Para minha surpresa, Angeliki levou o comentário a sério.
“Sim”, disse ela, “as mulheres na Grécia gostam de estar bonitas. Mas na Polônia eu constatei que isso era uma desvantagem. As mulheres de lá são muito pálidas e sérias; têm rostos largos e frios, embora a pele em geral seja ruim, decerto por causa do clima, e também da dieta, que é um horror. E os dentes”, acrescentou ela com uma leve careta, “os dentes não são bons. Mas elas têm uma seriedade que eu invejei, como se não tivessem, como se nunca tivessem sido distraídas da realidade das próprias vidas. Eu passei muito tempo em Varsóvia com uma jornalista”, prosseguiu ela, “uma pessoa mais ou menos da minha idade e também mãe, que era tão magra e sem contornos e dura que achei difícil acreditar que fosse mulher mesmo. Tinha uns cabelos lisos castanho-claros que desciam pelas costas inteiras, e um rosto tão branco e ossudo quanto um iceberg, e usava jeans folgados de operário e grandes sapatos toscos, e era límpida, incisiva e linda como um cristal de gelo. Ela e o marido vinham se alternando rigorosamente a cada seis meses, um trabalhando enquanto o outro cuidava dos filhos. Às vezes ele reclamava, mas até ali havia aceitado o arranjo. Mas ela me confessou, com orgulho, que quando saía para trabalhar, o que fazia com frequência, as crianças dormiam com a sua foto debaixo dos travesseiros. Eu ri”, disse Angeliki, “e lhe disse que tinha certeza de que o meu filho preferiria morrer a ser pego dormindo com uma foto minha debaixo do travesseiro. E Olga me olhou de tal jeito que de repente me perguntei se até mesmo os nossos filhos teriam sido infestados pela arrogância das nossas políticas de gênero.”
O rosto de Angeliki tinha uma suavidade, quase uma nebulosidade, que era ao mesmo tempo atraente e também o motivo de seu aspecto aflito. Parecia que qualquer coisa poderia deixar uma impressão naquela suavidade. Os traços dela eram miúdos e precisos como os de uma criança, mas tinha a pele vincada como se fosse pela preocupação, o que lhe conferia um aspecto inocente com a testa franzida, como uma menina bonita que não conseguiu o que queria.
“Ao conversar com essa jornalista”, continuou ela, “cujo nome, como eu já disse, era Olga, fiquei me perguntando se toda a minha existência — e até mesmo o meu feminismo — teriam sido um meio-termo. Senti que lhes faltava seriedade. Até mesmo a minha escrita tem sido tratada como uma espécie de hobby. Perguntei-me se eu teria tido a coragem de ser como ela, pois parecia haver na sua vida tão pouco prazer, tão pouca beleza — a simples feiura física dessa parte do mundo é impressionante — que não estava certa de que eu, em circunstâncias semelhantes, teria tido energia para me importar. Por isso me espantei com a quantidade de mulheres que foram assistir às minhas leituras — era quase como se o meu trabalho fosse mais importante para elas do que era para mim!”
O garçom veio tirar nosso pedido, processo que foi demorado, pois Angeliki parecia debater todos os itens do cardápio, um após o outro, fazendo várias perguntas à medida que descia pela lista enquanto o garçom respondia de modo sério e às vezes elaborado, sem jamais demonstrar a menor impaciência. Sentado ao seu lado, Paniotis revirava os olhos e de vez em quando repreendia os dois, o que só fazia tornar o processo ainda mais lento. Por fim, a coisa pareceu chegar a uma conclusão, e o garçom se afastou pesada e vagarosamente, mas Angeliki então o chamou de volta com um leve arquejo e um dedo erguido no ar, aparentemente após ter se lembrado de mais algumas coisas. Seu médico havia lhe imposto uma dieta especial, disse-me ela depois que o garçom tinha ido embora pela segunda vez e desaparecido pelas portas de venezianas de mogno no outro extremo do restaurante, pois ela havia começado a se sentir mal ao voltar de Berlim para a Grécia. Sentira-se subjugada por uma extraordinária letargia e — não tinha problema em confessar — pela tristeza, algo que imaginava ser uma espécie de exaustão física e emocional cumulativa após tantos anos no exterior, e havia passado seis meses praticamente incapacitada na cama; meses durante os quais descobrira, afirmou, que o marido e o filho conseguiam se virar sem ela muito melhor do que ela poderia ter imaginado, de modo que quando tornou a se levantar e voltou à vida normal descobrira que seu papel na casa tinha diminuído. O marido e o filho haviam se acostumado a fazer — ou a deixar por fazer, disse ela — grande parte do que antes era o seu trabalho dentro de casa, e na verdade haviam desenvolvido novos hábitos próprios, muitos dos quais não lhe agradavam; mas ela admitira, naquele momento, que estava diante de uma escolha, e que se quisesse escapar da sua antiga identidade, aquela era a sua chance. Para algumas mulheres, disse ela, isso seria a concretização de seu maior medo, descobrir-se não necessária, mas para ela a coisa tivera o efeito contrário. Ela também havia constatado que a doença lhe permitira ver com objetividade a própria vida e as pessoas nessa vida. Ela percebeu que não estava tão atrelada a elas quanto pensara, em especial ao filho, por quem sempre havia sentido, desde o instante do seu nascimento, uma imensa preocupação, considerando-o particularmente sensível e vulnerável a ponto de ser incapaz — ela agora via — de deixá-lo sozinho por um minuto sequer. Ao voltar para o mundo após a doença, seu filho lhe parecera, se não totalmente estranho, no mínimo menos dolorosamente ligado a ela por cada filamento. Ela ainda o amava, claro, mas não via mais a ele e à sua vida como algo que precisasse trabalhar até alcançar a perfeição.
“Para muitas mulheres”, disse ela, “ter um filho é sua experiência criativa central, mas a criança jamais irá permanecer um objeto criado; a menos”, disse ela, “que o sacrifício de si feito pela mãe seja absoluto, coisa que o meu jamais poderia ter sido, e hoje em dia o de nenhuma mulher deveria ser assim. Minha própria mãe vivia por meu intermédio de um modo inteiramente desprovido de crítica”, disse ela, “e em consequência cheguei à idade adulta despreparada para a vida, porque ninguém me considerava importante do mesmo jeito que ela, e era dessa forma que eu estava acostumada a ser vista. Então você conhece um homem que a considera importante o suficiente para se casar com você, de modo que parece correto aceitar. Mas é quando você tem um bebê que a sensação de importância realmente volta”, disse ela, cada vez mais exaltada, “mas um dia você percebe que tudo isso — a casa, o marido, o filho —, tudo isso não é importância, na verdade é exatamente o contrário: você se tornou uma escrava, você foi apagada!” Ela fez uma pausa dramática, com o rosto erguido e as mãos espalmadas sobre a mesa em meio aos talheres. “A única esperança”, retomou ela, numa voz mais baixa, “é tornar seu filho e seu marido importantes o suficiente na sua própria mente, de modo que o seu ego tenha alimento bastante para permanecer vivo. Mas na verdade”, disse ela, “como observa Simone de Beauvoir, uma mulher assim não passa de um parasita, um parasita do marido, um parasita do filho.
“Em Berlim”, continuou ela depois de algum tempo, “meu filho frequentava uma escola particular cara paga pela embaixada, onde conhecemos muitas pessoas ricas e bem relacionadas. As mulheres eram de um tipo que eu nunca havia conhecido antes na vida: quase todas tinham profissão — eram médicas, advogadas, contadoras — e a maioria tinha vários filhos, cinco ou seis cada uma, cujas vidas elas supervisionavam com diligência e energia assombrosas, administrando as famílias como se fossem empresas de sucesso paralelamente às carreiras exigentes que a maioria já tinha. E não só isso, essas mulheres eram também tão bem cuidadas e arrumadas quanto possível: iam à academia diariamente, corriam maratonas para instituições de caridade, eram magras e musculosas feito galgos e usavam sempre as roupas mais caras e elegantes, embora seus corpos cheios de tendões e músculos fossem muitas vezes curiosamente assexuados. Elas iam à igreja, assavam bolos para a festa da escola, presidiam grupos de discussão, organizavam jantares nos quais eram servidos seis pratos, liam todos os romances mais recentes, iam a espetáculos de música, jogavam tênis e vôlei nos finais de semana. Uma dessas mulheres só já teria bastado”, disse ela, “mas em Berlim conheci várias. E o mais engraçado era que nunca conseguia recordar seus nomes, nem os de seus maridos: na verdade”, disse ela, “não me lembro do rosto de nenhuma delas, nem do rosto de ninguém das suas famílias, a não ser o de uma das crianças, um menino mais ou menos da mesma idade do meu filho, que tinha uma deficiência terrível e andava numa espécie de carrinho motorizado com uma prateleira para ele apoiar o queixo, de modo que a sua cabeça — que do contrário imagino desabaria para a frente até o peito — ficava sempre sustentada.” Ela fez uma pausa, incomodada, como se estivesse vendo o rosto do menino na sua frente outra vez. “Não me lembro de a mãe dele”, continuou, “reclamar da vida sequer uma vez; pelo contrário, ela era uma arrecadadora incansável para instituições de caridade em prol de pessoas com a mesma doença que ele, isso além de todas as outras coisas que tinha para fazer.
“Às vezes”, disse ela, “chego a pensar se a exaustão que senti ao voltar de Berlim foi na verdade a exaustão coletiva de todas essas mulheres, que elas próprias se recusavam a sentir e que, portanto, haviam me transmitido. A impressão que se tinha era de vê-las sempre correndo: elas viviam correndo, para o trabalho e de volta do trabalho, para o supermercado, em grupo no parque — conversando com a mesma desenvoltura como se estivessem paradas —, e se fosse preciso parar num sinal de trânsito, continuavam a correr sem sair do lugar com seus imensos tênis brancos até o sinal abrir e elas poderem avançar outra vez. No restante do tempo, usavam sapatos sem salto com solado de borracha, extremamente práticos e extremamente feios. Os sapatos eram a única coisa não elegante nelas”, disse Angeliki, “mas mesmo assim eu sentia que constituíam a chave de todo o mistério em relação à sua natureza, pois eram os sapatos de uma mulher sem vaidade.
“Eu mesma”, prosseguiu, estendendo o pé prateado de debaixo da mesa, “desenvolvi uma fraqueza por calçados delicados quando voltamos para a Grécia. Talvez tenha sido porque comecei a entender as virtudes de ficar parada. E, para a personagem do meu romance, sapatos desse tipo representam algo proibido. São o tipo de coisa que ela jamais usaria. Além do mais, quando ela vê mulheres calçadas com sapatos assim, isso a deixa triste. Até agora, ela achava que fosse porque tinha pena dessas mulheres, mas na verdade, quando pensa honestamente a respeito, é porque se sente excluída ou privada do conceito de feminilidade que os sapatos representam. Ela se sente quase como se não fosse mulher. Mas, se ela não é mulher, o que é então? Ela está vivendo uma crise de feminilidade que é também uma crise criativa, e no entanto sempre procurou separar as duas coisas por acreditar que fossem mutuamente excludentes, que uma desqualificava a outra. Olha pela janela do apartamento para as mulheres correndo no parque, sempre correndo, e se pergunta se elas estão correndo em direção a algo ou para longe de algo. Se passa tempo suficiente olhando, vê que estão simplesmente correndo em círculo.”
Carregando uma enorme bandeja prateada, o garçom se aproximou. Pegou as travessas uma a uma e as pôs sobre a mesa. Após ter tido tanto trabalho para pedir a comida, Angeliki se serviu apenas porções minúsculas, com a testa toda franzida enquanto mergulhava a colher em cada prato. Paniotis serviu uma seleção de coisas no meu prato e me explicou o que eram. Disse que a última vez que estivera naquele restaurante fora na véspera da partida de sua filha para os Estados Unidos, quando da mesma forma não quisera ser interrompido por conhecidos, dos quais hoje tinha em Atenas um número excessivo. Enquanto compartilhavam a comida, os dois tinham recordado umas férias que haviam tirado certa vez no litoral ao norte de Tessalônica, de onde vinham muitos daqueles pratos. Ele manteve a colher no ar e perguntou a Angeliki se ela não queria mais um pouco, mas ela semicerrou os olhos e inclinou a cabeça em resposta, como um santo que recusa pacientemente a tentação. E você, disse ele para mim, você também se serviu muito pouco. Expliquei que tinha comido
souvlaki
no almoço. Paniotis fez uma careta, e Angeliki torceu o nariz.
“
Souvlaki
é pura gordura”, disse ela. “Além da preguiça, é por isso que os gregos são tão gordos”, acrescentou.
Perguntei a Paniotis quanto tempo fazia que ele tinha viajado para o norte com a filha, e ele respondeu que fora logo depois do seu divórcio. Na verdade, fora a primeira vez que ele levara os filhos sozinhos para onde quer que fosse. Lembrava-se que no carro, ao sair de Atenas em direção às montanhas, não parava de olhar para os dois no banco de trás, sentindo-se tão culpado quanto se os estivesse raptando. Imaginava que eles a qualquer momento fossem descobrir seu crime e exigir voltar na mesma hora para Atenas e para a mãe, mas eles não o fizeram; na verdade, não comentaram absolutamente nada sobre a situação, não durante todas as longas horas de uma viagem durante a qual Paniotis sentira estar se afastando cada vez mais de tudo em que confiava e de tudo que conhecia, de tudo que lhe era familiar, e acima de tudo de toda a segurança do lar que havia criado com a mulher e que, é claro, nem sequer existia mais. Mas afastar-se geograficamente dessa cena de perda foi insuportável, da mesma forma, disse Paniotis, que as pessoas às vezes não conseguem suportar se afastar do lugar em que alguém que amavam morreu.
“Fiquei esperando as crianças quererem ir para casa”, disse ele, “mas na verdade quem queria ir para casa era eu; comecei a me dar conta, ali no carro, que no que dizia respeito às crianças elas
estavam
em casa, pelo menos em parte por estarem comigo.”
Essa, disse ele, foi a mais solitária das compreensões; e a sua chegada ao hotel onde deveriam pernoitar para interromper a viagem não ajudou, um lugar absolutamente horroroso numa cidade litorânea suja e castigada pelo vento, onde um gigantesco complexo de apartamentos fora construído e em seguida abandonado, de modo que por toda parte havia montes de areia e cimento e imensas pilhas de blocos de cimento, bem como grandes máquinas que pareciam simplesmente ter sido deixadas ali no meio do serviço, escavadeiras com cargas de areia erguidas até a metade, empilhadeiras com paletes ainda suspensos nos dentes salientes, tudo congelado no lugar qual monstros pré-históricos afogados em aluvião, enquanto o prédio em si, um embrião abortado no meio de um espaço de asfalto ainda novo, se erguia em toda sua loucura espectral e encarava o mar por suas janelas sem vidraça. Seu hotel era imundo e infestado de mosquitos, havia pó de cimento entre os lençóis, e ele ficara abismado ao ver os filhos pulando e rindo sobre as feias camas de metal com suas colchas de náilon berrantes, pois até aquele momento — às vezes propositalmente, mas muitas vezes por puro acaso — ele e a mulher só os tinham levado a lugares de beleza e conforto, e além de ser tomado pela terrível certeza de que sua vida a partir dali seria tão azarada quanto a anterior fora sortuda, ele sentiu a mais profunda pena das próprias crianças. Havia reservado um quarto só para os três, e depois de algum tempo conseguiu pôr os filhos para dormir, mas ele próprio passou muitas horas acordado, imprensado entre os dois: “nunca achei uma noite tão difícil de atravessar quanto essa”, disse Paniotis. “E pela manhã, que chegou não sei bem como, nós vimos que o tempo estava ruim, como às vezes pode acontecer naquele trecho do litoral na Páscoa. Já chovia bem forte, e o vento na praia em frente ao hotel estava tão forte que a espuma era levantada da água e soprada em grandes arcos desolados que pareciam fantasmas a cruzar o céu. Deveríamos ter ficado onde estávamos, mas eu estava tão decidido a sair dali que pus as crianças de volta no carro e comecei a dirigir com a chuva martelando o teto, mal conseguindo ver para onde estava indo. Em determinados pontos, a estrada literalmente tinha virado lama, e conforme fomos subindo outra vez os morros acima do litoral, eu vi que havia um perigo real de ela ser levada embora. Para completar, as crianças tinham sido muito picadas por mosquitos durante a noite e coçado as picadas, algumas das quais pareciam correr o risco de infeccionar. De modo que eu precisava achar uma farmácia, mas em meio a todo o drama da chuva devo ter feito uma curva errada em algum lugar, porque em vez de cairmos na rodovia, o caminho foi ficando cada vez mais íngreme e cada vez mais estreito e os morros cada vez mais ermos, até eu ver que estávamos numa verdadeira serra, com imensas ribanceiras vertiginosas de ambos os lados e grandes chumaços de nuvens ao redor dos cumes. O temporal tinha feito rebanhos de cabras e porcos da montanha saírem correndo feito loucos pelas encostas, e às vezes eles invadiam em bandos a estrada bem na frente do carro; e então, um pouco mais adiante, a estrada tinha sido inundada por um rio mais acima que havia transbordado, e as crianças gritaram quando a água entrou por uma das janelas que fora deixada ligeiramente aberta. O céu a essa altura estava tão preto que, embora fosse apenas o final da manhã, era como se a noite tivesse caído; mas logo adiante, no meio da chuva, eu de repente vi uma construção na qual havia luzes. Por incrível que parecesse, era uma pousada de montanha, bem na beira da estrada, e nós paramos lá na mesma hora, saltamos do carro e fomos correndo até a entrada da construção de pedra baixa cobrindo as cabeças com nossos casacos e abrindo a porta de supetão. Na verdade, era um lugar bastante agradável, e as pessoas lá dentro devem ter nos achado um tanto extraordinários, as crianças cobertas de picadas sanguinolentas, todos os três desgrenhados e ensopados até os ossos. O salão principal estava repleto de escoteiras, umas trinta, no mínimo, todas usando o mesmo uniforme composto por saia e blusa azul-marinho, uma boina e uma gravata amarela presa com um nó. Estavam todas cantando em coro, uma canção em francês, enquanto uma ou duas faziam o acompanhamento com pequenos instrumentos musicais. Essa cena esquisita me pareceu bastante aceitável depois da horrível cidade à beira-mar, do temporal e das cabras loucas; e, na verdade, uma das coisas que me aconteceram nessas férias, e que eu acho que não mudou desde então, foi que comecei pela primeira vez a ter a sensação de estar vendo o que estava realmente ali, sem me perguntar se esperava ou não vê-lo. Quando penso no período anterior, e sobretudo nos anos do meu casamento, parece-me que minha mulher e eu olhávamos o mundo através de uma comprida lente de ideias preconcebidas, e com isso nos mantínhamos a uma distância inalcançável do que havia à nossa volta, distância que representava uma espécie de segurança, mas que também criava um espaço para ilusão. Acho que nunca descobrimos a verdadeira natureza das coisas que vimos, não mais do que algum dia corremos o perigo de sermos afetados por elas; nós as espiávamos, as pessoas e os lugares, como passageiros de um navio espiam a terra firme que passa, e se tivéssemos visto neles qualquer espécie de perigo, ou eles em nós, não teria havido absolutamente nada que nós ou eles pudéssemos ter feito em relação a isso.
“Talvez tenha sido para dizer algo desse tipo que eu de repente senti uma necessidade irresistível de falar com a minha mulher, e perguntei à dona da pousada se havia um telefone que eu pudesse usar. As escoteiras — que faziam parte de uma organização religiosa de um tipo que acredito ser bem comum na França, e que nos disseram estar fazendo um tour a pé pela região — tinham, enquanto isso, aberto espaço nos bancos ao redor da grande mesa de madeira à qual estavam sentadas e retomado alegremente sua cantoria enquanto lá fora continuava a chover torrencialmente. A dona me mostrou o telefone e perguntou se eu gostaria que ela fizesse um chocolate quente para as crianças. Teve também a gentileza de trazer uma pomada antisséptica para as picadas. Na cabine telefônica, digitei o número do novo apartamento da minha mulher em Atenas, e fiquei surpreso ao ouvir um homem atender. Quando por fim consegui que Chrysta entrasse na linha, contei-lhe tudo sobre a nossa situação, disse que estávamos perdidos em algum lugar nas montanhas, no meio de um temporal horrível, que as crianças estavam com medo e cobertas de picadas de mosquitos, e que eu estava duvidando da minha capacidade de lidar com uma crise dessas. Em vez de reagir com empatia e preocupação, no entanto, ela ficou absolutamente calada. O silêncio durou apenas alguns segundos, mas nesse intervalo, como ela não entrou na hora certa para, por assim dizer, dar continuidade à sua participação no nosso dueto de toda uma vida, eu compreendi, de forma total e definitiva, que Chrysta e eu não éramos mais casados, e que a guerra na qual estávamos envolvidos não era apenas uma versão mais amarga da mesma disputa de uma vida inteira, mas algo bem mais nocivo, algo cuja ambição era a destruição, o aniquilamento, a não existência. Mais do que tudo, ele exigia silêncio; e isso, compreendi, era para onde todas as minhas conversas com Chrysta estavam conduzindo, um silêncio que no final permaneceria intacto, embora nessa ocasião ela o tenha rompido. Tenho certeza de que você vai dar um jeito, foi o que disse. E pouco depois disso a conversa acabou.
“Quando voltei para junto dos meus filhos depois desse diálogo”, disse Paniotis, “experimentei uma extraordinária sensação de insegurança, quase como uma vertigem. Lembro-me de ficar segurando a borda de madeira da mesa por um tempo que pareceu muito longo, enquanto à minha volta as escoteiras cantavam. Mas então, depois de algum tempo, senti um calor distinto nas costas e, quando ergui os olhos, vi grandes fachos de sol entrando pelas janelas de vitral. As escoteiras se levantaram das cadeiras e guardaram seus instrumentos. O temporal tinha passado; a dona da pousada abriu a porta para deixar o sol entrar. E lá fomos nós todos para o mundo que pingava e reluzia, onde parei com meus filhos junto ao carro, com o corpo inteiro tremendo, e fiquei vendo a tropa de escoteiras descer marchando a estrada, assobiando, até sumir de vista. O que mais me marcou nessa imagem foi que elas obviamente não se consideravam perdidas, e não viam nada de assustador no fato de o tempo ter virado ou mesmo nas predisposições das montanhas em si. Não levavam nenhuma dessas coisas para o lado pessoal. Era essa a diferença entre mim e elas, e na ocasião era toda a diferença do mundo.
“Minha filha me lembrou”, disse ele, “nessa nossa última noite aqui, da caminhada que fomos fazer mais tarde nesse dia. Na verdade, ela não se lembrava do hotel, nem do temporal, ou mesmo das escoteiras, mas se lembrava de termos descido o desfiladeiro de Lousios, trilha que decidimos seguir ao passar por uma placa na estrada que apontava para lá. No desfiladeiro havia um mosteiro que eu sempre quisera visitar, então ela, meu filho e eu deixamos o carro no acostamento da estrada e descemos pela trilha. Ela se lembrava dessa nossa caminhada sob o sol ao lado de grandes cachoeiras, e das orquídeas selvagens que colheu pelo caminho, e também do próprio mosteiro, equilibrado na borda de um extraordinário precipício, onde lhe pediram para vestir uma das feias saias feitas com velhas cortinas que eles mantinham guardadas dentro de um cesto com naftalina junto à porta antes de a deixarem entrar. Se houve algo de traumático nesse dia, disse-me ela, foi ter de vestir aquela saia fedida horrorosa. Na volta, na subida”, disse Paniotis, “o sol ficou tão quente, e nossas picadas começaram a coçar de modo tão insuportável, que nós três arrancamos as roupas e mergulhamos numa das fundas piscinas criadas pela cachoeira, apesar de ela ficar bem perto da trilha e de podermos ser vistos a qualquer minuto pelos passantes. Como a água estava fria, e como era incrivelmente funda, refrescante e cristalina — ficamos boiando ali, com o sol no rosto e os corpos suspensos feito três raízes brancas abaixo da superfície. Ainda consigo nos ver ali”, disse ele, “pois foram momentos de tamanha intensidade que de certa forma vamos vivê-los sempre, enquanto outras coisas são esquecidas por completo. No entanto, não existe nenhuma história específica relacionada a esses momentos”, disse ele, “apesar do seu lugar na história que acabei de contar para vocês. Esses instantes passados nadando na piscina na base da cachoeira não pertencem a lugar algum; não fazem parte de nenhuma sequência de acontecimentos, são apenas eles mesmos, de um modo que nada em nossa vida anterior como família jamais fora, pois estava sempre conduzindo à coisa seguinte e à seguinte, sempre contribuindo para nossa história do que éramos. Depois que Chrysta e eu nos divorciamos, as coisas não se encaixaram mais dessa forma, embora eu tenha passado anos tentando fazer parecer que sim. Mas não houve continuação para esses momentos na piscina, nem jamais haverá. Assim, minha filha foi para os Estados Unidos”, disse ele, “como seu irmão tinha ido antes dela, ambos se afastando o máximo possível dos pais. E é claro que isso me entristece”, disse ele, “mas não posso fingir não achar que eles fizeram a coisa certa.”
“Paniotis”, exclamou Angeliki, “o que você está dizendo? Que seus filhos emigraram porque os pais se divorciaram? Meu amigo, eu acho que você está enganado ao se considerar tão importante assim. Os filhos vão embora ou os filhos ficam conforme suas próprias ambições; suas vidas lhes pertencem. Por algum motivo nós nos convencemos de que, se dissermos uma palavra que seja fora do lugar, nós os marcamos para sempre, mas é claro que isso é ridículo, e de toda forma, por que as vidas deles deveriam ser perfeitas? É a nossa própria ideia de perfeição que nos atormenta, e ela está enraizada nos nossos próprios desejos. Por exemplo, minha mãe acha que o pior infortúnio que existe é ser filho único. Ela é simplesmente incapaz de aceitar que o meu filho não vai ter irmãos e irmãs, e eu confesso que lhe dei a impressão de que essa situação não foi uma escolha, como um modo de evitar falar sobre isso com ela o tempo todo. Mas ela vive me contando sobre esse ou aquele médico de quem acaba de ouvir falar e que consegue fazer milagres; outro dia me mandou um recorte de jornal sobre uma grega que teve um filho aos cinquenta e três anos de idade, com um bilhete me dizendo para não perder as esperanças. Mas para o meu marido é totalmente normal nosso filho ser criado sozinho, porque ele próprio também foi filho único. Para mim, é claro, seria um desastre ter mais filhos: eu ficaria inteiramente assoberbada, como é o caso de tantas mulheres. Fico me perguntando por que minha mãe deseja me ver assoberbada também quando eu tenho um trabalho importante a fazer, quando isso não seria o melhor para mim e representaria, como eu digo, o equivalente a um desastre, e a resposta é que o desejo dela não tem a ver comigo, mas com ela própria. Tenho certeza de que ela não iria desejar que eu me considerasse um fracasso por não ser mãe de seis filhos, e no entanto é exatamente isso que o seu comportamento poderia me levar a sentir.
“As partes sufocantes da vida”, disse Angeliki, “são muitas vezes aquelas que são a projeção dos desejos de nossos pais. A existência da mulher como esposa e mãe, por exemplo, é algo que ela muitas vezes abraça sem questionamento, como se fôssemos impelidas por alguma coisa externa a nós mesmas; enquanto a criatividade de uma mulher, aquilo que a faz duvidar e que ela vive sacrificando em nome dessas outras coisas — quando nem sequer sonharia, por exemplo, em sacrificar os interesses de seu marido ou filho — foi uma ideia dela própria, sua própria compulsão interna. Quando eu estava na Polônia”, disse ela, “jurei adotar uma visão menos sentimental da vida, e se existe algo de que me arrependo no meu romance é o fato de as circunstâncias materiais da personagem serem tão confortáveis. Acho que seria um livro mais sério se não fosse assim. Na convivência com Olga”, disse ela, “algumas coisas se revelaram para mim, como objetos submersos que vêm à luz quando a água escoa. Dei-me conta de que toda a nossa noção da vida como um romance — até mesmo a nossa concepção do amor em si — era uma visão na qual os bens materiais desempenhavam um papel excessivamente grande, e que sem esses bens nós talvez constatássemos que determinados sentimentos diminuiriam enquanto outros seriam exacerbados. Fiquei muito atraída pela dureza de Olga”, disse ela, “pela dureza da sua vida. Quando ela falava sobre o relacionamento com o marido, era como se estivesse se referindo às peças de um motor, explicando como funcionavam ou deixavam de funcionar. Não havia romantismo algum, nenhum lugar escondido e que não nos fosse permitido ver. Sendo assim, eu não tinha ciúme nenhum do marido, mas quando ela falava dos filhos, da foto dela que eles guardavam debaixo do travesseiro, constatei que eu sentia raiva, como sentia raiva das minhas irmãs e do meu irmão quando minha mãe lhes dava atenção. Eu tive ciúme dos filhos de Olga; não queria que eles a amassem assim, que exercessem sobre ela esse poder. Comecei a sentir mais empatia pelo marido tratado como o motor de um carro; e ela então me contou que, numa certa época, ele tinha ido embora, abandonara a família, sem conseguir suportar mais essa falta de sentimentos, e fora morar sozinho num apartamento. Quando ele voltou, os dois retomaram a vida como antes. Ela não havia ficado com raiva dele, perguntei, por abandoná-la e deixá-la sozinha cuidando das crianças? Não, pelo contrário, ficara feliz em vê-lo. Nós dois somos totalmente francos um com o outro, disse ela, então eu sabia que, quando ele voltou, era porque havia aceitado o jeito como as coisas eram. Tentei imaginar”, disse Angeliki, “como era esse casamento no qual ninguém precisava prometer nem se desculpar por nada, no qual não era preciso comprar flores para o outro nem lhe preparar uma refeição especial ou acender velas para criar uma atmosfera atraente, ou agendar férias para ajudar a superar os problemas; ou melhor, um casamento no qual se aprendia a dispensar essas coisas e a viver junto de modo tão franco e sem disfarces. Ainda assim, eu voltava sempre a pensar nas crianças e na fotografia que elas guardavam debaixo do travesseiro, porque isso sugeria que, no fim das contas, Olga era culpada de sentimentalismo, era capaz de romantismo, só que era o romantismo entre mãe e filho — e, se ela era capaz disso, então por que não de todo o resto? Confessei-lhe que eu tinha ciúme dos seus filhos, que nem sequer chegara a conhecer, e ela me disse é óbvio, Angeliki, que você nunca cresceu e que é por isso que consegue ser escritora. Acredite, disse-me Olga, você tem muita sorte: eu vi minha filha crescer da noite para o dia quando o pai dela foi embora. Durante esse período, disse Olga, ela se tornou extremamente hostil com os homens: Olga se lembrava de a ter levado certo dia a uma galeria de arte em Varsóvia, e quando elas chegaram diante de um quadro religioso de Salomé segurando a cabeça cortada de João Batista, a menina tinha aplaudido. Em outra ocasião, Olga a repreendera por algum comentário desdenhoso em relação ao sexo oposto, e sua filha respondera que não via necessidade de os homens existirem. Não é preciso haver homens, dissera ela, só é preciso haver mães e filhos. Olga admitiu ser em parte responsável pela percepção que a filha tinha das coisas, mas a verdade era que ela jamais teria abandonado as crianças como o pai fizera, embora não houvesse dúvida de que ele as amava; mas ela própria simplesmente não teria sido capaz, e ainda era preciso esclarecer se essa diferença era um fato biológico ou uma simples consequência do condicionamento. Você faria a mesma coisa se algum dia chegasse a esse ponto, disse-me Olga.” Angeliki fez uma pausa. “Falei que, pelo contrário, eu acreditava que o meu filho pertencia mais ao pai do que a mim. Mas ela se recusou a aceitar que pudesse algum dia ser assim, a menos que eu tivesse um nível de respeito incomum pela autoridade masculina. Ao ouvir isso, tive de rir: a ideia de que eu, logo eu, nutrisse um respeito indevido à autoridade masculina! Mas desde então pensei muito nesse comentário”, disse Angeliki, “por motivos óbvios. No meu romance, a personagem é prejudicada por seu desejo de ser livre, por um lado, e por sua culpa em relação às crianças, por outro. Tudo que ela deseja é que a sua vida se torne integrada, se torne uma coisa só, em vez de uma série eterna de oposições que lhe causam confusão para onde quer que ela olhe. Uma resposta, claro, é direcionar sua paixão para os filhos, onde ela não causará dano algum; e essa acaba sendo a resposta escolhida por ela. Mas não é isso que eu sinto”, disse Angeliki, ajeitando o belo tecido cinza de suas mangas.
O garçom pairava junto à nossa mesa; pelo visto o restaurante agora estava fechando, e Angeliki se levantou, olhou para o pequeno relógio de prata e disse que tinha se divertido tanto que perdera inteiramente a noção do tempo. Precisava acordar cedo no dia seguinte para uma entrevista na televisão, “mas foi um imenso prazer”, falou, estendendo a mão para mim, “conhecer você. Acho que Paniotis teria preferido ter você só para ele, mas eu confesso que insisti, já que você estava aqui, no meu direito de participar. Gostei muito da nossa conversa”, disse ela, apertando meus dedos; “quem sabe podemos nos encontrar outra vez e continuá-la, de mulher para mulher, da próxima vez que eu for a Londres”.
Ela abriu a bolsa e pegou um pequeno cartão com seus contatos, que me entregou; com um giro do vestido e um lampejo dos saltos prateados, ela se foi, e vi seu rosto passar rapidamente do lado de fora da janela, mais uma vez disposto em sua surpreendente configuração de rugas de preocupação, que se iluminaram quando ela cruzou olhares comigo através do vidro e ergueu a mão numa despedida.
“Se quiser, acompanho você até seu apartamento”, disse Paniotis.
Quando partimos pela calçada escura e quente em direção à rua principal, com suas luzes pulsantes e seu barulho de tráfego incessante, ele me disse que Angeliki estava brava com ele, porque ele estava editando uma antologia de autores gregos na qual seu trabalho fora omitido.
“A vaidade é a maldição da nossa cultura”, disse ele, “ou talvez seja apenas a minha própria e persistente recusa em acreditar que os artistas também são seres humanos”, disse ele.
Eu disse que na verdade tinha gostado de Angeliki, embora ela parecesse ter esquecido que já tínhamos nos encontrado anteriormente, numa leitura que eu fizera muitos anos antes em Atenas em que ela e o marido estavam na plateia. Paniotis riu.
“Aquela era outra Angeliki”, falou, “uma Angeliki que não existe mais e que foi riscada dos livros de história. A Angeliki escritora famosa, a feminista de fama internacional, nunca encontrou você antes na vida.”
Quando chegamos à entrada do meu prédio, Paniotis olhou para as figuras de tamanho exagerado na escuridão da janela do café, a mulher ainda rindo, o homem ainda com os olhos franzidos para ela com toda sua atraente falsa modéstia.
“Eles pelo menos são felizes”, comentou. Abriu a pasta, pegou um envelope e o pôs na minha mão. “O que quer que tenha acontecido, isto aqui continua sendo a sua verdade”, falou. “Não tenha medo de olhar para ela.”