VIII
Minha amiga Elena era muito bonita: Ryan ficou fora de si. Estava andando pela rua quando nos vira sentadas num bar. Ela é de outro nível, falou quando ela pediu licença e se retirou para dar um telefonema. Elena tinha trinta e seis anos, era inteligente, vestia-se com extremo bom gosto. Ela é de uma categoria inteiramente diferente, disse ele.
O bar ficava numa rua lateral estreita e tão íngreme que as cadeiras e mesas eram inclinadas e bambas sobre a calçada irregular. Eu acabara de ver uma mulher, uma turista, cair para trás em cima de um vaso enquanto suas sacolas de compras e seus guias de viagem saíam voando em todas as direções à sua volta, e o marido ficava sentado perplexo na cadeira, pelo visto mais envergonhado do que preocupado. Ele tinha um binóculo pendurado no pescoço e calçava botas de caminhada que permaneceram cuidadosamente encolhidas sob a mesa enquanto sua mulher agitava os braços em meio às plantas secas e cheias de espinhos. Depois de algum tempo, ele estendeu um braço por cima da mesa para ajudá-la a se levantar, mas ela não conseguiu alcançá-lo, de modo que teve de se levantar sozinha.
Perguntei a Ryan o que ele tinha feito durante o dia, e ele respondeu que fora a um ou dois museus, depois passara a tarde passeando na Ágora , embora, para ser sincero, estivesse um pouco cansado. Tinha ficado acordado até tarde com alguns dos alunos mais novos, falou. Eles o tinham levado a uma série de bares, cada um a uns bons quarenta minutos a pé do outro. Senti a idade pesar, disse ele. Só queria beber alguma coisa — não me importava onde nem como, e com certeza não precisava andar até o outro lado da cidade para beber sentado num sofá em forma de boca. Mas eles são um pessoal bacana, falou. Tinham lhe ensinado algumas palavras em grego — ele não sabia se serviriam para alguma coisa, já que a sua pronúncia era muito ruim, mas mesmo assim era interessante ter uma ideia das coisas do ponto de vista verbal. Não tinha noção de quantos significados da língua inglesa provinham de termos em grego. Tinham lhe dito, por exemplo, que a palavra “elipse” podia literalmente ser traduzida como “esconder-se atrás do silêncio”. É fascinante, disse ele.
Elena voltou e tornou a se sentar. Sua aparência nessa noite estava particularmente digna de uma sereia. Ela parecia composta inteiramente por curvas e ondas.
“Minha amiga vai nos encontrar daqui a pouco”, falou, “num lugar não muito longe daqui.”
Ryan ergueu uma das sobrancelhas.
“Vocês estão indo a algum lugar?”
“Vamos encontrar Melete”, respondeu Elena. “Conhece esse nome? Ela é uma das mais importantes poetas lésbicas aqui da Grécia.”
Ryan falou que na verdade estava exausto; talvez não pudesse nos acompanhar. Fora dormir tarde, falou. E depois, ao voltar para o apartamento às três da manhã, encontrara grandes insetos alados parecidos com escaravelhos voando por toda parte, e tivera de matar todos com o sapato. Alguém, não ele, tinha deixado uma luz acesa e uma janela aberta. Mesmo assim, ficara impressionado com o fato de ligar tão pouco para a alegre carnificina dos danados; quando era mais novo, teria ficado com medo. A pessoa fica corajosa pela simples razão de ter um filho, falou. Ou talvez fique apenas desinibida. Ele sentira isso na noite anterior ao socializar com pessoas de vinte e poucos anos. Esquecera-se de como elas eram tímidas fisicamente.
O crepúsculo rápido e quente estava baixando, e em pouco tempo a escuridão preencheu a rua estreita. O homem de botas de caminhada e a mulher tinham ido embora. O telefone de Ryan tocou e ele o pegou para atender e nos mostrou a foto de uma criança sorridente e desdentada que pulsava na tela. Deve estar na hora de dormir, falou; até mais. Ele se levantou, e com um aceno da mão afastou-se colina abaixo, falando ao telefone. Elena pagou a conta com seu cartão de crédito do trabalho — ela trabalhava numa editora, então, a rigor, poderíamos considerar que o nosso encontro era profissional, falou — e subimos em direção às luzes e ao barulho da rua principal. Ela seguiu trotando ao meu lado com passos rápidos e leves das sandálias de salto; seu vestido era uma túnica de malha no mesmo tom dourado-escuro de seus longos cabelos ondulados. Todos os homens por quem passávamos olhavam para ela, um depois do outro. Atravessamos a praça Kolonaki, agora vazia com exceção de uma ou duas silhuetas escuras encolhidas sobre os bancos. Havia uma mulher sentada numa das muretas baixas de concreto, com as pernas estranhamente salpicadas de lama seca, comendo bolachas de um pacote. Perto dela, um menininho em frente ao quiosque examinava os chocolates. Pegamos uma ruela e fomos dar numa pracinha abarrotada e tomada pelo ruído das pessoas que lotavam os terraços dos restaurantes em todos os quatro cantos, com os rostos realçados pela luz elétrica no escuro. O calor, o barulho e a luz elétrica no escuro criavam uma atmosfera de animação monótona, como uma onda a quebrar continuamente, e embora os restaurantes parecessem indistinguíveis, Elena passou por vários antes de parar muito decidida em frente a um deles. Era ali, falou; Melete tinha dito para pegarmos uma mesa e esperarmos por ela ali. Ela serpenteou entre as mesas e foi falar com um garçom, que ficou parado, implacável como um policial, e começou a balançar a cabeça à medida que ela falava.
“Ele está dizendo que estão lotados”, disse ela, arrasada, deixando os braços caírem junto ao corpo.
Sua decepção foi tão intensa que ela não se moveu, mas continuou de pé entre as mesas, encarando-as como se quisesse que elas se rendessem ao seu desejo. O garçom, ao assistir a esse espetáculo, pareceu mudar de ideia: decidiu que havia lugar, sim, se estivéssemos dispostas a nos sentar — traduziu Elena — naquele canto ali. Ele nos mostrou a mesa, que Elena examinou como se no fim das contas talvez não fosse aceitá-la. Fica um pouco perto demais da parede, disse-me ela. Acha que vamos ficar bem ali? Eu disse que não me importava em sentar perto da parede; se quisesse, ela poderia ficar com a cadeira mais afastada.
“Por que você usa essas roupas escuras?”, perguntou-me ela depois que nos sentamos. “Eu não entendo. Sempre uso roupas claras quando está quente. E você parece ter pegado um pouco de sol demais”, acrescentou. “Entre os ombros, aqui, a pele está queimada.”
Eu lhe disse que tinha passado a tarde num barco, com uma pessoa que não conhecia bem o suficiente para pedir que passasse protetor nas minhas costas. Ela perguntou quem era. Um homem?
Sim, falei, um homem que eu tinha conhecido no avião e com quem acabara conversando. Os olhos de Elena se arregalaram de surpresa.
“Eu não teria achado provável”, disse ela, “que você fosse sair de barco com um total desconhecido. Como ele é? Você gosta dele?”
Fechei os olhos e tentei invocar meus sentimentos pelo meu vizinho de poltrona. Quando tornei a abri-los, Elena ainda estava olhando para mim, à espera. Eu disse que tinha ficado tão desacostumada a pensar nas coisas em termos de se gostava delas ou não que não conseguia responder àquela pergunta. Meu vizinho era apenas um exemplo perfeito de algo em relação ao qual eu só conseguia sentir uma ambivalência absoluta.
“Mas mesmo assim você deixou que ele a levasse para sair no seu barco”, disse ela.
Estava calor, falei. E os termos nos quais tínhamos deixado o porto eram termos estritamente amigáveis — ou assim eu pensava. Descrevi sua tentativa de me beijar quando estávamos ancorados em alto-mar. Disse que ele era velho, e que embora fosse cruel chamá-lo de feio, eu havia considerado suas investidas físicas tanto repulsivas quanto surpreendentes. Jamais me ocorrera que ele fosse fazer algo assim; ou, mais exatamente, antes de ela comentar que eu teria de ser uma imbecil para não ter visto isso como uma possibilidade, pensei que ele não se atreveria a fazer uma coisa dessas. Tinha pensado que as diferenças entre nós dois eram óbvias, mas para ele não eram.
Ela esperava que eu tivesse deixado aquilo bem claro para ele, disse Elena. Eu disse que, pelo contrário, tinha inventado todo tipo de desculpas para preservar seus sentimentos. Ela passou algum tempo calada.
“Se você tivesse lhe dito a verdade”, disse ela pouco depois, “se tivesse dito olhe, você é velho, baixo e gordo, e embora eu goste de você, o único motivo pelo qual estou realmente aqui é para passear no seu barco” — ela começou a rir e abanou o rosto com o cardápio —, “se tivesse dito essas coisas para ele, entende, você teria escutado algumas verdades em resposta. Se tivesse sido franca, teria provocado a franqueza.”
Ela própria, disse Elena, tinha visitado as profundezas da desilusão com o temperamento masculino sendo honesta exatamente daquele jeito: homens que num minuto afirmavam estar morrendo de amores por ela se tornavam abertamente ofensivos no minuto seguinte, e em certo sentido era apenas após chegar a esse lugar de franqueza mútua que ela conseguia entender quem era e o que de fato queria. O que não podia suportar, falou, era qualquer tipo de fingimento, sobretudo o fingimento do desejo, quando alguém fingia ter de possuí-la por completo quando na verdade o que queria era usá-la temporariamente. Ela própria, afirmou, estava bastante disposta a usar os outros também, mas só reconhecia isso depois que eles próprios admitiam essa mesma intenção.
Sem que Elena visse, uma mulher magra com o rosto que lembrava uma raposa estava se aproximando da nossa mesa. Calculei que fosse Melete. Ela chegou de fininho por trás da cadeira de Elena e pousou a mão no seu ombro.
“Yassas”, falou, grave.
Estava usando um colete e uma calça comprida pretos, masculinos, e seus cabelos curtos e lisos caíam como duas asas negras lustrosas de um lado e outro do rosto estreito, tímido e pontudo.
Elena se virou na cadeira para cumprimentá-la.
“Você também!”, exclamou. “Essas roupas escuras, vocês duas… por que vocês sempre usam coisas escuras?”
Melete não se apressou para responder essa pergunta. Sentou-se na cadeira vazia, recostou-se, cruzou as pernas, tirou do bolso do colete um maço de cigarros e acendeu um.
“Elena”, falou, “não é educado comentar sobre a aparência dos outros. O que escolhemos vestir é problema nosso.” Ela estendeu a mão por cima da mesa e apertou a minha. “Quanto barulho aqui hoje”, falou, olhando em volta. “Acabei de participar de uma leitura de poesia cujo público foi de seis pessoas. O contraste é bem marcante.”
Ela pegou a carta de vinhos em cima da mesa e começou a estudá-la enquanto o cigarro soltava fumaça entre seus dedos, seu nariz fino se remexia de leve, e seus cabelos lustrosos caíam para a frente por cima das bochechas.
Uma das seis pessoas, acrescentou ela, erguendo os olhos, era um homem que comparecia a quase todas as suas aparições públicas e ficava sentado na primeira fila fazendo careta para ela. Isso já vinha acontecendo havia muitos anos. Ela erguia os olhos do atril, não só em Atenas mas em outras cidades um tanto distantes, e ali estava ele, bem na sua frente, pondo a língua para fora e fazendo gestos grosseiros.
“Mas você o conhece?”, indagou Elena, espantada. “Já falou com ele?”
“Fui professora dele”, respondeu Melete. “Ele foi meu aluno na graduação muito tempo atrás, quando eu dava aulas na universidade.”
“E o que fez com ele? Por que ele atormenta você desse jeito?”
“Devo supor que ele não tem motivo”, disse Melete, tragando o cigarro com gravidade. “Eu não fiz nada com ele; mal me lembro de ter lhe dado aulas. Ele passou por uma das minhas turmas, que tinham mais de cinquenta alunos. Não reparei nele. Tentei me lembrar de algum incidente específico, claro, mas não houve nenhum. A pessoa pode passar a vida inteira tentando remontar os acontecimentos até os próprios erros”, disse ela. “Na mitologia, as pessoas achavam que seus infortúnios podiam ser atribuídos ao fato de que elas haviam deixado de fazer oferendas a determinados deuses. Mas existe outra explicação”, disse ela, “que é simplesmente que ele é louco.”
“Alguma vez já tentou falar com ele?”, perguntou Elena.
Melete fez que não com a cabeça devagar.
“Como eu disse, mal me lembrava dele, embora não esqueça as pessoas com facilidade. Então seria possível dizer que esse ataque veio de onde eu menos esperava. Na verdade, seria quase o caso de dizer que esse aluno era a última pessoa que eu jamais cogitaria representar uma ameaça para mim.”
Em alguns momentos, continuou Melete, quase lhe parecera ter sido justamente esse fato que dera origem ao comportamento dele. Sua noção de realidade, em outras palavras, tinha criado um ataque a si mesma, criado algo externo a si mesma que zombava dela e a odiava. Mas como eu falei, disse ela, esses pensamentos pertencem ao mundo da sensibilidade religiosa, que na nossa época se tornou a linguagem da neurose.
“Prefiro chamar de loucura”, disse ela, “seja dele ou minha, então em vez disso tentei desenvolver afeto por ele. Eu levanto os olhos, e todas as vezes ele está ali, sacudindo o dedo e pondo a língua para fora. Na verdade, ele é totalmente confiável, mais fiel a mim do que qualquer amante que eu já tenha tido. Eu tento corresponder ao seu amor.”
Ela fechou a carta de vinhos e levantou o dedo para chamar o garçom. Elena lhe disse alguma coisa em grego, e seguiu-se um breve debate no qual o garçom entrou na metade e pareceu tomar de modo decisivo o partido de Melete, anotando o pedido dela com vários meneios bruscos de cabeça apesar dos apelos insistentes de Elena.
“Elena não entende nada de vinho”, disse Melete para mim.
Elena não pareceu se ofender com esse comentário. Voltou ao assunto do perseguidor de Melete.
“O que você descreveu”, disse ela, “é uma sujeição completa. A ideia de que se deve amar os próprios inimigos é absolutamente ridícula. É um conceito inteiramente religioso. Dizer que você ama aquilo que odeia e que odeia você equivale a reconhecer que você foi derrotada, que aceita a sua opressão e está só tentando se sentir melhor em relação a isso. E dizer que você o ama é a mesma coisa que dizer que não quer saber o que ele de fato pensa de você. Se você falasse com ele”, disse ela, “descobriria.”
Olhei para as pessoas das outras mesas e das mesas nos terraços em volta, todas tão abarrotadas que a praça inteira parecia animada por uma mesma conversa. Aqui e ali, mendigos se moviam entre as pessoas falantes, que muitas vezes demoravam algum tempo para perceber sua presença, e depois disso ou lhes davam algum dinheiro ou então os enxotavam. Vi isso se repetir várias vezes, a silhueta espectral em pé sem ser notada atrás da cadeira da pessoa que, sem prestar a menor atenção, comia e conversava, imersa na própria vida. Uma mulher de capuz, diminuta e ressequida, se movia entre as mesas perto de nós, e dali a pouco chegou perto da nossa murmurando alguma coisa, com a mão estendida feito uma pequena garra. Observei Melete depositar algumas moedas na sua palma e lhe dizer algumas palavras enquanto alisava delicadamente seus dedos.
“O que ele pensa não tem importância”, continuou ela. “Se eu descobrisse mais sobre o que ele pensa, poderia começar a confundi-lo comigo mesma. E eu não sou composta pelas ideias dos outros, da mesma forma que não componho um verso a partir do poema de outra pessoa.”
“Mas para ele isso é um jogo, uma fantasia”, disse Elena. “Os homens gostam de jogar esse jogo. E eles na verdade têm medo da sua honestidade, porque ela estraga o jogo. Não sendo honesta com um homem, você permite a ele continuar seu jogo, viver na sua fantasia.”
Como para provar o que ela dizia, meu telefone vibrou em cima da mesa. Era uma mensagem de texto do meu vizinho: Estou com saudades , dizia.
Era só quando você ultrapassava as fantasias das pessoas, continuou Elena, em relação a si mesmas e às outras, que tinha acesso a um nível de realidade em que as coisas assumiam seu verdadeiro valor e eram o que pareciam ser. Algumas dessas verdades, de fato, eram feias, mas outras, não. O pior lhe parecia ser lidar com uma versão de alguém quando outra versão bem diferente existia fora do campo de visão. Se um homem tinha um lado ruim no seu caráter, ela queria alcançá-lo imediatamente e enfrentá-lo. Não o queria pairando sem ser visto nos confins do relacionamento: queria provocá-lo, puxá-lo para o primeiro plano, de modo que ele não a atingisse quando ela virasse as costas.
Melete riu. “Segundo essa lógica”, falou, “não há relacionamento possível. A única coisa possível são pessoas perseguindo umas às outras.”
O garçom trouxe o vinho, uma pequena garrafa sem rótulo cor de tinta, e Melete começou a servir.
“É verdade”, disse Elena, “que a minha necessidade de provocação é algo que os outros parecem achar muito difícil de entender. Para mim, porém, ela sempre fez total sentido. Mas reconheço que levou ao fim de quase todos os meus relacionamentos, pois é inevitável que esse fim seja também — como você diz, pela mesma lógica — algo que me sentirei compelida a provocar. Em outras palavras, se o relacionamento vai terminar, eu quero saber e quero enfrentar isso o quanto antes. Às vezes”, disse ela, “esse processo é tão rápido que o relacionamento acaba quase no mesmo instante que começou. Muitas vezes senti que os meus relacionamentos não tiveram história, e que o motivo disso é porque me precipitei, do mesmo jeito que costumava virar as páginas de um livro para descobrir o que acontecia no último capítulo. Eu quero saber tudo imediatamente. Quero conhecer o conteúdo sem vivenciar o lapso de tempo.”
A pessoa com quem estava envolvida agora, disse ela — um homem chamado Konstantin —, tinha lhe dado pela primeira vez na vida um motivo para temer essas suas tendências, e a razão disso — ao contrário, para ser sincera, de qualquer outro homem na sua experiência — era que ela o considerava seu igual. Ele era inteligente, bonito, divertido, um intelectual; ela gostava de estar ao seu lado, gostava do reflexo de si mesma que ele lhe proporcionava. E ele era um homem em pleno domínio da própria moralidade e das próprias atitudes, o que a fazia sentir — pela primeira vez, como já dissera — uma espécie de fronteira invisível em volta dele, uma linha que estava claro, embora ninguém nunca tivesse dito isso, que ela não deveria cruzar. Essa linha, essa fronteira, era algo que ela nunca havia encontrado de modo tão palpável em nenhum outro homem, homens cujas defesas em geral eram costuradas a partir de fantasias e mentiras que ninguém — muito menos eles próprios — poderia culpá-la por querer desvendar. Assim, estar com Konstantin não apenas lhe provocava uma sensação de proibido, uma sensação de que ele iria reagir ao fato de ela o invadir em busca da sua verdade de modo bem parecido a como teria reagido se ela tivesse arrombado a sua casa e roubado suas coisas, ela na verdade começara a sentir medo justamente daquilo que mais a fazia amá-lo, a sua igualdade em relação a si mesma.
Ela estava, portanto, ao seu alcance, aquela arma que ela tão rapidamente soubera desarmar em todos os outros homens: o poder de machucá-la. Recentemente, numa festa à qual ela havia levado Konstantin e na qual o havia apresentado a muitos dos seus amigos, ela estava saboreando a sensação de exibi-lo no seu círculo social, vendo sua beleza, sua inteligência e sua integridade pelos olhos deles — e vice-versa, porque aquela era uma casa de artistas e outras pessoas interessantes do seu mundo —, e havia começado a entreouvir um pouco a conversa dele com uma mulher que conhecia mas de quem não gostava muito, uma mulher chamada Yanna. Fora em parte por não gostar de Yanna que ela havia cedido à tentação de entreouvir a conversa: queria escutar Konstantin falar, e queria imaginar a inveja de Yanna diante da inteligência e da beleza do seu namorado. Yanna estava perguntando sobre os filhos de Konstantin, que eram dois, de um casamento anterior, e então, de modo bem casual, com Elena escutando, Yanna lhe perguntou se ele gostaria de ter outros filhos. Não, respondeu ele, enquanto Elena, que escutava, sentia facas serem cravadas nela por todos os lados; não, ele não achava que quisesse ter outros filhos, era feliz com as coisas do jeito que estavam.
Ela ergueu o copo até a boca, com a mão tremendo.
“Nós nunca”, prosseguiu, em voz baixa, “tínhamos conversado sobre a questão dos filhos, mas é evidente que para mim ela permanece em aberto, que eu posso muito bem vir a querer ter filhos. De repente, aquela festa que eu estava curtindo, em que antes me sentia tão feliz, se transformou numa tortura. Não consegui mais rir, nem sorrir, nem conversar com ninguém direito; só queria ir embora e ficar sozinha, mas tive de ficar lá com ele até o fim. E é claro que ele havia percebido que eu estava chateada, e não parava de me perguntar qual era o problema; e durante todo o final dessa festa e dessa noite não parou de me perguntar qual era o problema. De manhã ele iria viajar a trabalho e passar uns dias fora. Eu tinha de falar, disse ele. Ele não conseguiria ir para o aeroporto e embarcar num avião me deixando tão chateada. Mas é claro que teria sido humilhante demais contar para ele, porque eu tinha entreouvido uma coisa que não fora direcionada aos meus ouvidos, e também por causa do tema em si, que deveria ter sido abordado de forma bem diferente.
“Aquela me parecia ser uma situação da qual era impossível fugir, embora ainda continuássemos a pensar tão bem um do outro quanto antes. Tive a sensação”, continuou ela, “que venho tendo desde então e que piora toda vez que discutimos, de que ficamos presos numa teia de palavras, emaranhados em vários fios e nós, e que ambos pensávamos haver algo que pudéssemos dizer capaz de nos libertar, mas quanto mais palavras dizíamos mais fios e nós apareciam. Eu me pego pensando na simplicidade do tempo antes de termos dito uma sílaba um para o outro: é para esse tempo que eu gostaria de voltar”, disse ela, “o tempo imediatamente anterior à primeira vez que abrimos nossas bocas para falar.”
Olhei para o casal na mesa ao lado da nossa, um homem e uma mulher que haviam consumido sua refeição num silêncio mais ou menos permanente. Ela havia mantido a bolsa sobre a mesa em frente ao prato, como se estivesse com medo de ser roubada. A bolsa estava ali entre os dois, e ambos a olhavam de vez em quando.
“Mas você contou para Konstantin que tinha ouvido o que ele falou?”, perguntou Melete. “Nesse dia de manhã enquanto vocês esperavam o táxi, você confessou?”
“Sim”, respondeu Elena. “Ele ficou sem graça, claro, e disse que tinha sido um comentário impensado, que não significava nada, e por um lado eu acreditei nele e foi um alívio, mas no meu coração pensei: por que se dar ao trabalho de dizer alguma coisa? Por que dizer alguma coisa se você pode simplesmente voltar atrás no minuto seguinte? Ao mesmo tempo, é claro que eu queria que ele voltasse atrás. E só de pensar nisso agora a coisa toda parece ligeiramente irreal, como se ao permitir que voltasse atrás eu não possa mais ter certeza de que isso de fato ocorreu. Enfim”, continuou ela, “o táxi chegou e ele entrou e foi embora, e nós estávamos de bem outra vez, mas depois fiquei com a sensação de uma mácula, algo pequeno mas permanente, como uma pequena mancha que estraga todo o vestido — imaginei todos os anos passando, e nós tendo filhos, e eu nunca sendo capaz de esquecer o modo como ele havia balançado a cabeça e dito não quando alguém lhe perguntara se ele queria tê-los. E ele talvez se lembrando de que eu era alguém capaz de invadir sua privacidade e de julgá-lo a partir do que tinha descoberto. Essa ideia me deu vontade de fugir dele, do nosso apartamento e da vida que temos juntos, de me esconder em algum lugar, em algo não conspurcado.”
Fez-se um silêncio para dentro do qual o barulho das mesas ao lado fluía de modo constante. Ficamos bebendo o vinho suave e escuro, tão suave que mal podia ser sentido na língua.
“Ontem à noite eu sonhei”, disse Melete depois de um curto tempo, “que eu e várias outras mulheres, algumas delas minhas amigas e outras desconhecidas, estávamos tentando chegar à ópera. Só que todas nós estávamos sangrando, nos esvaindo em sangue menstrual: formou-se uma espécie de pandemônio lá na entrada da ópera. Havia sangue em nossos vestidos, e escorrendo para dentro de nossos sapatos; toda vez que uma mulher parava de sangrar, outra começava, e todas iam pondo seus absorventes sujos de sangue numa pilha bem certinha junto à entrada do prédio, uma pilha que foi ficando cada vez maior e pela qual as outras pessoas tinham de passar para entrar. Elas nos olhavam ao passar, os homens de smoking e gravata-borboleta, todos absolutamente enojados. A ópera começou; podíamos ouvir a música sair lá de dentro, mas por algum motivo não conseguíamos cruzar o limiar. Comecei a sentir uma ansiedade muito grande”, disse Melete, “de que aquilo tudo de algum modo fosse culpa minha, porque fora eu a primeira a reparar no sangue, a reparar nele em minhas próprias roupas, e na minha imensa vergonha eu parecia ter criado aquele problema muito maior. E me parece”, disse ela para Elena, “que a sua história sobre Konstantin na verdade é uma história sobre nojo, o nojo que existe de forma indelével entre homens e mulheres, e que você vive tentando purgar com aquilo que chama de franqueza. Assim que você deixa de ser franca, percebe uma mancha, é forçada a reconhecer a imperfeição, e tudo que deseja é fugir e se esconder de vergonha.”
Elena assentiu com sua cabeça dourada e estendeu a mão por cima da mesa para tocar os dedos de Melete.
Quando era criança, continuou Melete, ela costumava sofrer terríveis ataques de vômito. Era um distúrbio bastante debilitante que persistira por vários anos. Os ataques sempre aconteciam exatamente no mesmo horário do dia e exatamente nas mesmas circunstâncias, na hora em que ela voltava da escola para a casa em que morava com a mãe e o padrasto. De modo bem compreensível, a mãe ficava muito abalada com o sofrimento de Melete, que não tinha nenhuma causa aparente e que, portanto, não parecia ser nada menos do que uma crítica ao seu próprio modo de vida e ao homem que ela havia posto dentro de casa, um homem que sua filha única se recusava — como se fosse por princípio — a amar ou sequer a reconhecer. Todos os dias, na escola, Melete esquecia os vômitos, mas então, quando chegava a hora de ir para casa, sentia os primeiros sinais de que estavam chegando, uma sensação de não ter peso, quase como se o chão estivesse cedendo sob seus pés. Voltava depressa para casa, muito ansiosa, e lá, em geral na cozinha, onde sua mãe estava à espera para lhe servir o lanche da tarde, um enjoo extraordinário começava a aumentar. Ela era levada até o sofá para se deitar; um cobertor era posto em cima dela, a televisão ligada, e uma tigela deixada ao seu lado; e enquanto Melete vomitava, sua mãe e seu padrasto passavam o início da noite juntos na cozinha, conversando e jantando. Sua mãe a levara a médicos, terapeutas, e por fim a um psicanalista infantil, que sugeriu — para grande espanto dos adultos que estavam pagando a conta — que Melete começasse a tocar um instrumento musical. Ele lhe perguntou se havia algum instrumento em especial que ela já tivesse pensado em tocar, e ela respondeu o trompete. Agora, todos os dias depois da escola, em vez da angustiante perspectiva dos vômitos, ela via diante de si a perspectiva de soprar o instrumento de cobre para produzir seu som alto e grosseiro. Desse modo, havia tornado manifesto seu nojo pela humanidade falha, e também conseguido interromper aqueles tête-à-têtes na cozinha durante o jantar, que nunca mais puderam ser conduzidos da mesma forma, sem ela como sua vítima.
“Recentemente”, disse ela, “eu tirei o trompete do estojo e comecei a praticar. Fico tocando no meu pequeno apartamento.” Ela riu. “É bom produzir esse som grosseiro outra vez.”
Na volta, descendo o morro, Elena disse que teria de parar na praça Kolonaki para pegar sua moto. Ofereceu a Melete uma carona na garupa, já que as duas moravam perto. Havia espaço de sobra para duas pessoas, disse-me ela, e era o jeito mais rápido. Ela havia percorrido a Grécia inteira assim com sua amiga mais antiga, Hermione, e as duas tinham chegado a levar a moto nos barcos que iam para as ilhas apenas com algum dinheiro e suas roupas de banho, descobrindo praias acessíveis por estradinhas de terra onde não havia mais ninguém. Hermione havia se agarrado nela na descida de algumas encostas de montanha imponentes, falou, e elas nunca tinham caído até hoje. Em retrospecto, aqueles estavam entre os melhores momentos da sua vida, embora na época tivessem tido a sensação de um prelúdio, um período de espera, como se para o verdadeiro drama da vida começar. Essa época tinha praticamente ficado para trás, agora que ela estava com Konstantin; ela não sabia ao certo por quê, pois ele nunca a teria impedido de viajar com Hermione, na verdade teria gostado, como os homens modernos sempre gostavam quando você demonstrava sua independência deles. Mas teria parecido um pouco uma farsa, disse ela, uma cópia, tentar se tornar outra vez aquelas garotas, percorrendo em disparada aquelas estradinhas de terra sem nunca saber o que iriam encontrar no final.