IX
O dever era escrever uma história na qual houvesse um animal, mas nem todos o tinham feito. Christos os havia convidado para ir dançar lindy hop
na noite anterior; a noite tinha sido longa e exaustiva, embora o próprio Christos não parecesse ter sido afetado. Ficou ali sentado com uma expressão radiante, os braços cruzados, orgulhoso e descansado, rindo de modo repentino e alto dos comentários deles em relação aos acontecimentos da noite. Havia acordado cedo para escrever sua história, falou, embora tivesse achado difícil introduzir um animal em seu tema escolhido, que era a hipocrisia de nossos líderes religiosos e o fracasso dos comentaristas da mídia em submetê-los à análise adequada. Como as pessoas comuns poderiam algum dia se politizar se os intelectuais do nosso tempo não lhes mostravam o caminho? Isso era algo a respeito do qual ele e sua amiga íntima Maria por acaso discordavam. Ela era adepta da filosofia da persuasão: às vezes, dizia, tentar forçar as pessoas a reconhecer verdades desagradáveis causava mais mal do que bem. Era preciso se manter próximo da linha das coisas, próximo mas separado, como uma andorinha que sobrevoa os contornos da paisagem, seguindo-os, mas sem nunca aterrissar.
De modo que ele tivera dificuldade, disse Christos, para incluir um animal no seu relato da escandalosa conduta de dois bispos ortodoxos num debate público recente. Mas então lhe ocorrera que talvez tivesse sido essa a minha intenção. Eu queria, em outras palavras, lhe apresentar uma obstrução que o impedisse de ir na direção que ele estava naturalmente inclinado a tomar, e que o forçaria a escolher outro caminho. No entanto, por mais que tentasse, ele não conseguira pensar em nenhum jeito de incluir um animal no plenário de um prédio público onde não tinha permissão para estar. Além disso, sua mãe não parava de incomodá-lo ao entrar e sair da sala de jantar, o cômodo de seu pequeno apartamento que era o menos usado e onde, consequentemente, ele em geral ia estudar, espalhando seus livros e papéis por toda a velha mesa de mogno que ficava ali até onde sua memória alcançava. Nesse dia, porém, ela havia lhe pedido para tirar suas coisas. Alguns parentes viriam jantar, e ela queria fazer uma faxina completa na sala de jantar e prepará-la para a recepção. Ele lhe pediu, com alguma irritação, para deixá-lo em paz — estou tentando escrever, falou, como posso escrever sem meus livros e papéis e com você entrando o tempo todo? Havia esquecido por completo esse jantar, que fora combinado tempos antes e seria uma homenagem a sua tia, seu tio e seus primos da Califórnia, que tinham voltado à Grécia para sua primeira visita em muitos anos. Sua mãe, ele sabia, não estava animada com o evento: aquele ramo específico da família era exibido e dado à ostentação, e sua tia e seu tio viviam escrevendo cartas para os parentes gregos que fingiam ser amorosas e preocupadas, mas que na realidade não passavam de oportunidades para eles se gabarem de quanto dinheiro tinham nos Estados Unidos, de como o seu carro era grande, de como tinham acabado de mandar construir uma piscina nova e de como eram ocupados demais para ir fazer uma visita à Grécia. Assim, como ele já dissera, muitos anos haviam se passado sem que ele e a mãe vissem esses parentes, a não ser nas fotografias que eles mandavam regularmente, que os exibiam em pé sob um sol forte ao lado de sua casa e de seu carro, ou então na Disneylândia ou em frente ao Hard Rock Café, ou em algum outro lugar onde se podia ver ao fundo o grande letreiro de Hollywood. Eles também mandavam fotos dos filhos se formando nesta ou naquela faculdade, usando chapéus de formatura e becas com gola de pele, exibindo os dentes caros em contraste com um falso céu azul. Sua mãe expunha obedientemente essas fotografias no aparador; um dia, ele sabia que ela esperava, Christos também tiraria o seu diploma, e ela poderia pôr sua foto ao lado das outras. A foto que Christos mais odiava era a de seu belo, sorridente e musculoso primo Nicky, na qual ele posava em alguma espécie de paisagem desértica com uma cobra gigante — uma jiboia — enrolada nos ombros. Essa imagem de masculinidade suprema muitas vezes o havia assombrado ali do aparador, e ao fitá-la agora ele não se sentia mais irritado com a mãe: sentia empatia por ela, e desejava ter sido um filho melhor e mais valente. De modo que parou o que estava fazendo e a ajudou a tirar as coisas da mesa.
Georgeou levantou a mão. Ele havia observado, falou, que quando na véspera tínhamos deixado as janelas abertas e a porta fechada, nesse dia era o contrário: as janelas estavam trancadas, e a porta do corredor significativamente entreaberta. Além disso, ele estava se perguntando se eu tinha reparado que o relógio havia mudado de lugar. Não estava mais na parede à esquerda, mas havia assumido a posição espelhada na parede em frente. Com certeza devia haver uma explicação para o movimento do relógio, mas era difícil pensar qual poderia ser. Se alguma explicação me ocorresse, talvez eu pudesse informá-lo, porque do jeito que as coisas estavam, ele achava a situação perturbadora.
Ele havia terminado de escrever a história no ônibus a caminho dali, continuou Christos, depois de se dar conta de que a foto de Nicky no fim das contas tinha lhe proporcionado uma saída para o seu dilema. Um dos bispos tem uma alucinação, ali mesmo no plenário: vê uma cobra imensa enrolada nos ombros do outro bispo, e percebe que aquela cobra simboliza a hipocrisia e as mentiras que ambos vêm proferindo. Nesse exato instante, ele jura ser um homem melhor, dizer apenas a verdade, e nunca mais enganar e ludibriar seu povo.
Christos tornou a cruzar os braços e correu os olhos pela sala com um ar radiante. Nesse momento Clio, a pianista, levantou a mão. Disse que ela também tinha tido dificuldade para escrever sobre um animal. Não sabia nada sobre animais; nunca tivera sequer um bicho de estimação. Teria sido impossível, considerando a natureza extenuante da sua agenda de treinamento musical mesmo na primeira infância. Ela não teria conseguido cuidar do animal e lhe dedicar a atenção de que ele necessitava. Mas o dever de casa a fizera perceber as coisas de outra forma: ao voltar a pé para casa, não tinha olhado as coisas que em geral olhava, mas em vez disso havia se tornado, conforme caminhava, cada vez mais consciente dos passarinhos, não apenas de seu aspecto mas também do seu som, que, uma vez que sintonizou nele os seus ouvidos, percebeu que podia ouvir constantemente à sua volta. Lembrou-se então de uma peça musical que não escutava havia tempos, do compositor francês Olivier Messiaen, escrita durante sua estada num campo de prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial. Parte da peça fora baseada, ou assim ela entendera, nos padrões dos cantos de pássaros que ele escutava ao seu redor enquanto estava preso ali. Chamou-lhe a atenção o fato de que o homem estava engaiolado enquanto os pássaros estavam livres, e que o que ele havia escrito era o som da sua liberdade.
Era interessante considerar, disse Georgeou, que o papel do artista poderia ser apenas o de registrar sequências, do modo como um computador poderia um dia ser programado para fazer. Até mesmo a questão do estilo pessoal decerto poderia ser desdobrada numa sequência a partir de um número finito de alternativas. Ele às vezes se perguntava se seria possível inventar um computador influenciado pelo próprio vastíssimo conhecimento. Seria muito interessante conhecer um computador assim, disse ele. Mas ele tinha a sensação de que qualquer sistema de representação poderia ser destruído simplesmente violando as próprias regras. Ele próprio, por exemplo, ao sair de casa naquela manhã, havia notado, pousado no acostamento da rua, um pequeno passarinho que só poderia ter sido descrito como imerso em pensamentos. Estava fitando alguma coisa daquele jeito desfocado que se observa, por exemplo, nas pessoas que tentam destrinchar de cabeça um problema de matemática, e Georgeou tinha caminhado até chegar bem perto enquanto ele permanecia completamente alheio. Poderia ter estendido a mão e o segurado. Então, por fim, o passarinho percebeu a sua presença e quase morreu de susto. Ele tinha, entretanto, algumas reservas em relação à capacidade de sobrevivência daquele passarinho. Sua própria história, acrescentou, era baseada por inteiro na própria experiência, e descrevia em detalhes uma conversa que ele tivera com a tia, que pesquisava mutações em determinadas partículas num instituto científico em Dubai. A única coisa que ele tinha inventado fora o acréscimo de um lagarto, que na realidade não estava lá, mas que na história sua tia mantinha bem abrigado debaixo do braço enquanto eles conversavam. Ele havia mostrado a história para o pai, que confirmara a exatidão de todos os detalhes e dissera ter gostado de testemunhar pela segunda vez a conversa, cujo tema o interessava. Ele descrevera o lagarto, se Georgeou se lembrava da expressão exata, como um detalhe interessante.
Sylvia disse que não tinha escrito nada. Sua contribuição na véspera, se eu bem me lembrava, na verdade dizia respeito a um animal, o cachorrinho branco que ela vira encarapitado no ombro do homem alto e moreno. Mas, depois de os outros falarem, ela disse ter desejado escolher algo mais pessoal, algo que lhe tivesse permitido expressar um aspecto do seu próprio eu e não uma visão que, por assim dizer, estava pedindo para ser vista. Ela havia tornado a procurar esse homem no trem a caminho de casa, aliás, pois sentia que tinha algo a lhe dizer. Queria lhe dizer para tirar o cachorro do ombro e deixá-lo andar ou, melhor ainda, para arrumar um cachorro que fosse comum e feio, para que pessoas como ela não ficassem tão distraídas de suas próprias vidas. Ela se ressentia daquele seu comportamento em busca de atenção, e do fato de ele a ter feito se sentir tão pouco interessante; e agora ali estava ela, falando sobre ele em sala de aula pela segunda vez!
Sylvia tinha um rosto pequeno, bonito e ansioso, e uma grande quantidade de cabelos castanho-claros que usava em cachos e tranças virginais — que não parava de tocar e alisar — em volta dos ombros. De todo modo, continuou ela, obviamente não o tinha visto de novo na volta para casa, porque a vida não era assim: voltou para o seu apartamento, que por morar sozinha estava tal como ela o havia deixado naquela manhã. O telefone tocou. Era sua mãe, que sempre lhe telefona a essa hora. Como foi a aula hoje, quis saber a mãe. Sylvia trabalha como professora de literatura inglesa numa escola na periferia de Atenas. A mãe tinha esquecido que ela havia tirado a semana de folga para fazer o curso de escrita criativa. “Eu lembrei a ela o que estava fazendo”, disse Sylvia. “Minha mãe, é claro, é muito cética em relação à escrita, então é típico dela não lembrar. Você deveria, em vez disso, ter saído de férias, disse ela, deveria ter ido para uma ilha com alguns amigos. Deveria estar vivendo, disse ela, não gastando mais tempo pensando em livros. Para mudar de assunto, eu disse: Mãe, me diga alguma coisa em que você tenha reparado hoje. Em que eu teria reparado, perguntou ela? Passei o dia inteiro em casa esperando o homem vir consertar a máquina de lavar. Ele nem apareceu, disse ela. Depois da nossa conversa, fui olhar meu computador. Eu havia passado um trabalho para meus alunos, e o prazo agora tinha expirado, mas quando verifiquei meus e-mails vi que nenhum deles tinha me mandado o trabalho. Era um trabalho sobre
Filhos e amantes
, de D. H. Lawrence, o livro que me inspirou mais do que qualquer outra coisa na vida, e nenhum deles tinha uma palavra sequer a dizer sobre ele.
“Fiquei na minha cozinha”, continuou, “e pensei em tentar escrever uma história. Mas tudo em que conseguia pensar era uma linha descrevendo o momento exato que eu estava vivendo:
uma mulher ficou na sua cozinha e pensou em tentar escrever uma história
. O problema era que a linha não se conectava com nenhuma outra linha. Ela não tinha vindo de lugar algum e tampouco estava indo a lugar algum, não mais do que eu estava indo a algum lugar ali na minha cozinha. Então fui até o outro cômodo e tirei um livro da prateleira, um livro de contos de D. H. Lawrence. D. H. Lawrence é o meu escritor preferido”, disse ela. “Na verdade, embora ele esteja morto, de certa forma eu acho que ele é a pessoa que eu mais amo no mundo todo. Queria ser um personagem de D. H. Lawrence, viver a caráter num dos seus romances. As pessoas que eu encontro não parecem sequer
ter
caráter. E a vida, quando a olho através dos olhos dele, parece muito rica, mas a minha própria vida muitas vezes parece estéril, como um pedaço de terra ruim, como se nada fosse crescer ali por mais que eu me esforce. A história que comecei a ler”, disse ela, “chamava-se ‘O pavão de inverno’. É uma história autobiográfica”, disse, “na qual Lawrence está hospedado numa região remota da zona rural da Inglaterra durante o inverno, e um dia, quando está fazendo uma caminhada, ouve um som estranho e descobre que tem um pavão preso no morro, enterrado na neve. Ele devolve o pássaro à dona, uma mulher estranha de uma fazenda próxima que está esperando o marido voltar da guerra.
“Nessa hora”, disse ela, “parei de ler; pela primeira vez, senti que Lawrence não conseguiria me transportar para fora da minha própria vida. Talvez fosse a neve, ou a estranheza da mulher, ou o pavão em si, mas eu de repente senti que esses acontecimentos, e o mundo que ele descrevia, não tinham nada a ver comigo, no meu apartamento moderno aqui no calor de Atenas. Por algum motivo não consegui mais suportar a sensação de ser uma passageira impotente da visão dele, então fechei o livro”, disse, “e fui dormir.”
Sylvia parou de falar. Meu telefone tocou na mesa à minha frente. Vi o número de Lydia da empresa de hipoteca pulsar na tela, e disse ao grupo que faríamos um pequeno intervalo. Saí da sala e fiquei parada no corredor em meio aos quadros de avisos. Meu coração batia dentro do peito de modo desconfortável.
“É Faye quem está falando?”, perguntou Lydia.
Sim, respondi.
Ela me perguntou como eu estava. Disse que soube pelo toque da ligação que eu estava no exterior. Onde a senhora está? Em Atenas, falei. Que ótimo, disse ela. Lamentava não ter entrado em contato antes. Tinha passado os dois últimos dias fora do escritório. Algumas pessoas do seu departamento haviam recebido de presente da empresa ingressos para Wimbledon: na véspera, ela assistira à derrota de Nadal, o que fora uma grande surpresa. Enfim, ela esperava não estragar minhas férias, mas precisava me dizer que os avaliadores tinham recusado meu pedido para aumentar meu empréstimo. Eles não precisam dar o motivo, respondeu ela quando lhe perguntei por quê. Foi apenas a decisão deles baseada nas informações que receberam. Como eu disse, falou ela, espero que isso não afete demais as suas férias. Quando lhe agradeci por ter ligado, ela disse que não havia de quê. Lamento não ter sido com notícias melhores, falou.
Avancei pelo corredor, passei pelas portas da frente de vidro na entrada do prédio e saí para o calor escaldante da rua. Fiquei ali parada na luz ofuscante enquanto os carros e as pessoas passavam, como se estivesse à espera de que algo acontecesse ou alguma alternativa se apresentasse. Uma mulher de chapéu de sol de bolinhas com uma câmera imensa pendurada numa correia no pescoço me perguntou como chegar ao Museu Binyaki. Expliquei para ela, então voltei lá para dentro, tornei a entrar na sala e me sentei. Georgeou me perguntou se estava tudo bem. Disse ter reparado que eu havia fechado a porta, e ficara pensando se isso queria dizer que eu agora queria as janelas abertas. Se fosse o caso, ficaria feliz em fazê-lo. Eu lhe disse que podia abrir. Ele se levantou da cadeira com tamanho afã que a derrubou para trás. Com uma agilidade surpreendente, Penelope esticou a mão para segurá-la e a recolocou cuidadosamente em pé. Tinha certeza, falou, de modo um tanto enigmático, que não teria absolutamente nada para trazer para a aula nesse dia a não ser seus sonhos, muitas vezes tão vívidos e estranhos que ela pensava que devia falar a respeito com alguém. De modo geral, porém, havia aceitado, após a aula da véspera, que não era possível para alguém na sua situação ser escritor, alguém a quem o próprio tempo não pertencia. Assim, tinha passado a noite do jeito que sempre fazia, preparando o jantar dos filhos e atendendo às suas demandas incessantes.
Enquanto eles comiam, a campainha havia tocado: era Stavros, o vizinho de porta, dando só uma passada para lhes mostrar um filhote da nova ninhada que sua cadela acabara de ter. É claro que as crianças enlouqueceram com o cachorrinho: largaram a comida esfriando no prato e foram rodear Stavros, pedindo sucessivamente que ele as deixasse segurá-lo. Era um filhote bem pequeno, cujos olhos mal haviam aberto, mas ele deixou que as crianças o segurassem uma de cada vez. “Fiquei observando cada um dos meus filhos”, disse ela, “ao receber o filhotinho para segurar, se transformar numa criatura da mais absoluta delicadeza e cuidado, de modo que foi quase possível acreditar que o filhote houvesse ocasionado um verdadeiro refinamento em sua índole. Cada uma delas acariciou com os dedos a cabecinha aveludada e sussurrou nos ouvidos do filhote, e aquilo pelo visto teria continuado por um tempo indefinido se Stavros não tivesse dito que precisava ir. Os filhotes estavam à venda, disse ele; e ao ouvir essas palavras as crianças começaram a pular com a mais genuína e contagiante animação, tanto que, para meu próprio espanto”, disse ela, “eu também comecei a me animar. A ideia de aceitar, e do amor que eu receberia caso aceitasse, foi quase irresistível. No entanto, o que eu sabia sobre a cadela de Stavros, um animal gordo e desagradável, foi mais forte. Não, disse ao meu vizinho, nós não iríamos comprar um cachorro; mas lhe agradeci por ter nos mostrado o filhote, e ele se foi. Depois disso, as crianças ficaram muito decepcionadas. Você sempre estraga tudo, meu filho me disse. E foi só então, quando o feitiço lançado pelo filhote se dissipou por completo, que eu recuperei o pensamento lógico, e junto com ele uma noção de realidade tão crua e potente que pareceu expor nossa família de modo tão impiedoso quanto se o telhado do prédio em que estávamos houvesse sido arrancado.
“Mandei as crianças para o quarto sem que terminassem o jantar, e com as mãos trêmulas sentei-me à mesa da cozinha e comecei a escrever. Eu, na verdade, havia comprado um filhote para eles uma vez, sabem, dois anos antes, em circunstâncias quase idênticas às que acabei de narrar, e o fato de termos retornado a esse mesmo instante sem ter aprendido nada me fez ver nossa vida, e particularmente as próprias crianças, à luz mais fria possível. Como eu disse, isso faz dois anos: o bicho era uma cadelinha muito bonita que batizamos de Mimi, com uma pelagem encaracolada cor de tabaco e olhos que pareciam dois chocolates, e quando ela chegou para morar conosco era tão minúscula e encantadora que o trabalho que me dava para cuidar era equilibrado pelo prazer que as crianças sentiam ao brincar com ela e mostrá-la aos amigos. Seria quase possível dizer que eu na verdade não queria que elas tivessem de limpar a sujeira de Mimi, que produzia as imundícies mais fétidas pela casa inteira, por medo de frustrar o seu prazer; no entanto, quando Mimi foi ficando maior e mais exigente, passei a querer que elas assumissem parte da responsabilidade por ela, já que fora por vontade delas — como eu vivia lhes lembrando — que tínhamos comprado um cachorro, para começo de conversa. Mas elas muito rapidamente se tornaram imunes a esses comentários: não queriam levar Mimi para passear nem limpar a sujeira que ela fazia; e mais, começaram a ficar irritadas com os seus latidos e com o fato de ela às vezes entrar nos seus quartos, bagunçar tudo e destruir suas coisas. Nem sequer a queriam do seu lado na sala à noite, porque ela não ficava sentada quieta no sofá, e sim andando de um lado para outro da sala e obstruindo sua visão da tevê.
“Além de ter crescido rapidamente e se tornado maior e mais agitada do que eu imaginava, Mimi também era obcecada por comida, e se eu tirasse os olhos dela por um instante subia nas bancadas da cozinha para procurar e comer tudo que conseguisse encontrar. Aprendi rapidamente a guardar tudo, mas tinha de ser muito vigilante, além de lembrar de fechar todas as portas da casa de modo que ela não entrasse nos outros cômodos, portas que as crianças viviam deixando abertas novamente; e é claro que eu tinha de levá-la para passear, e ela me puxava tão depressa que eu pensava que o meu braço fosse sair da articulação. Nunca podia soltá-la da guia, porque o seu amor pela comida a fazia correr para todo lado. Ela certa vez entrou correndo na cozinha de um café perto do parque e foi encontrada pelo chef enfurecido comendo uma fieira inteirinha de linguiças que ele havia deixado em cima da bancada; em outra ocasião, roubou um sanduíche da mão de um homem que almoçava sentado num banco. Depois de algum tempo, entendi que precisaria mantê-la presa junto de mim para sempre quando estivéssemos na rua, e que dentro de casa estava igualmente amarrada a ela, e comecei a me dar conta de que, ao comprar Mimi para meus filhos, eu havia, sem pensar muito, aberto mão por completo da minha liberdade.
“Ela continuava sendo uma cadela muito bonita, e todo mundo reparava nela. Contanto que eu a mantivesse na guia, sempre recebia dos passantes os elogios mais rasgados. Sobrecarregada como estava, comecei a ficar estranhamente ressentida e enciumada de sua beleza e de toda a atenção que ela recebia. Comecei, em suma, a odiá-la, e um dia, quando ela havia passado a tarde inteira latindo e as crianças se recusaram a levá-la para passear, e eu a encontrei na sala estraçalhando uma almofada que acabara de comprar enquanto as crianças assistiam televisão sem fazer nada, fui tomada por uma fúria tão descontrolada que bati nela. As crianças ficaram profundamente chocadas e zangadas. Jogaram-se em cima de Mimi para protegê-la de mim; me olharam como se eu fosse um monstro. Mas, se eu tinha virado um monstro, acreditava que fosse Mimi quem havia me transformado nisso.
“Durante algum tempo, meus filhos não pararam de me lembrar do incidente, mas aos poucos esqueceram, então um dia, diante de provocações semelhantes, aconteceu de novo, depois outra vez, até que o fato de eu bater em Mimi se tornou algo quase aceito por elas. A própria cadela começou a me evitar; me encarava com um olhar diferente, e se tornou muito dissimulada, esgueirando-se pela casa para destruir as coisas, enquanto as crianças desenvolveram no seu comportamento comigo uma certa frieza, um novo tipo de distanciamento, que de alguma forma me liberou mas também tornou minha vida menos gratificante. Talvez para compensar essa sensação e tentar diminuir a distância entre nós, decidi comemorar em grande estilo o aniversário do meu filho, e passei metade da noite acordada fazendo um bolo para ele. Era um bolo muito bonito e extravagante, com castanhas na massa e raspas de chocolate na cobertura, e, quando acabei, guardei-o bem fora do alcance de Mimi e fui dormir.
“De manhã, depois que as crianças foram para a escola, minha irmã passou lá em casa para me visitar. Na companhia da minha irmã eu sempre me distraio um pouco do meu propósito; tenho a sensação de que preciso desempenhar coisas para ela, apresentá-las a ela, mostrar-lhe minha vida em vez de deixar que ela a veja de modo natural, como realmente é. Então lhe mostrei o bolo, que ela de todo modo teria visto, já que iria à festa de aniversário mais tarde. Nesse exato instante, o alarme de um carro tocou na rua, e pensando que devesse ser o seu — que era novo, e que ela não gostava de estacionar na rua em frente à minha casa porque o meu bairro, segundo ela, não é tão seguro quanto o dela — ela entrou em pânico e saiu de casa correndo. Fui atrás, pois como já disse quando estou com minha irmã vejo as coisas do ponto de vista dela e não do meu, sou compelida a adotar a sua visão, como era compelida a entrar no quarto dela quando éramos crianças, sempre acreditando que fosse melhor do que o meu. E enquanto estávamos na rua nos certificando de que o carro dela estava intacto, o que naturalmente era o caso, tomei consciência de uma sensação de ter abandonado minha própria vida, do mesmo jeito que antes abandonava o meu quarto; e de repente fui tomada por uma percepção extraordinária da existência como uma dor secreta, um tormento interior impossível de ser dividido com os outros, que pediam para você cuidar deles ao mesmo tempo que ignoravam o que havia dentro de você, como a sereia do conto de fadas que pisa em facas que ninguém mais pode ver.
“Fiquei ali parada enquanto minha irmã falava sobre o carro e o que poderia ter feito o alarme disparar, e senti uma profunda dor de solidão; e ao reconhecê-la entendi que estava reconhecendo também a visão mais escura da vida. Em outras palavras, entendi que algo terrível iria acontecer, estava acontecendo naquele exato instante, e quando voltamos para dentro e encontramos Mimi em cima da bancada com a cara enfiada no bolo de aniversário e as mandíbulas mastigando não fiquei nem um pouco surpresa. Ela ergueu o focinho quando entramos, petrificada no ato, com as raspas de chocolate ainda penduradas nos bigodes; e então pareceu tomar uma decisão, pois em vez de pular da bancada e sair correndo para se esconder, encarou-me nos olhos com uma expressão de desafio e, tornando a se abaixar, enfiou avidamente a cara no bolo outra vez para terminar de comê-lo.
“Atravessei a cozinha e agarrei-a pela coleira. Na frente da minha irmã, puxei-a da bancada e a derrubei no chão, onde comecei a espancá-la enquanto ela gania e tentava se desvencilhar. Nós brigamos, eu ofegando e tentando bater nela com a maior força de que era capaz, Mimi se contorcendo e ganindo, até finalmente conseguir soltar a cabeça da coleira. Ela saiu correndo da cozinha, com as unhas arranhando e escorregando na cerâmica do piso, até o hall, onde a porta da frente continuava aberta, e para a rua, onde partiu a toda pela calçada e sumiu.”
Penelope fez uma pausa e levou os dedos às têmporas primeiro com delicadeza, em seguida com mais pressão.
“O telefone passou a tarde inteira tocando”, continuou ela após um curto intervalo. “Como eu falei, Mimi era uma cadela muito especial e linda, e era conhecida pelas pessoas do bairro, e também por conhecidos meus fora de Atenas. Então as pessoas me ligavam para dizer que a tinham visto fugindo. Ela foi vista por toda parte, correndo pelo parque e pelo shopping, passando em frente à tinturaria e ao consultório do dentista, passando pelo salão de cabeleireiro, pelo banco, pela escola das crianças: passou correndo por todos os lugares aos quais eu jamais fora forçada a levá-la, pela casa de amigos e da professora de piano, pela piscina e pela biblioteca, pelo parquinho e pelas quadras de tênis, e em todos os lugares pelos quais passava correndo as pessoas levantavam o rosto e a viam e pegavam o telefone para me dizer que a tinham visto. Muitos haviam tentado agarrá-la; alguns tinham corrido atrás dela, e o limpador de janelas passara um tempo perseguindo-a ao volante da sua van, mas ninguém conseguira pegá-la. Depois de algum tempo, ela chegou à estação de trem, onde meu cunhado por acaso estava descendo de uma composição: ele telefonou para dizer que a vira e tentara encurralá-la com a ajuda de outros passageiros e dos guardas da estação, e que ela conseguira escapar. Um dos guardas ficara levemente ferido ao se chocar com um carrinho de bagagens quando se esticou para tentar segurá-la; mas no fim das contas todos a tinham visto sair correndo pelos trilhos, ninguém sabe para onde.”
Penelope deixou escapar uma grande exalação que foi como um suspiro e se calou, com o peito subindo e descendo de modo visível e a expressão perturbada. “Foi essa a história que escrevi”, falou por fim, “à mesa da cozinha ontem à noite, depois da visita de Stavros com o filhote de cachorro.”
Theo disse que o problema parecia ser que ela havia escolhido o cachorro errado para começo de conversa. Ele próprio, falou, tinha um pug, e nunca havia passado por nenhuma dificuldade.
Ao ouvir isso, Marielle se preparou para falar. O efeito foi o mesmo de um pavão arrufando as plumas ao se preparar para mover o grande leque da cauda. Nesse dia, ela estava usando uma roupa cereja, de gola alta, com os cabelos amarelos presos por um pente e uma espécie de mantilha de renda preta em volta dos ombros.
“Eu também já comprei um cachorro para o meu filho”, falou, numa voz chocada e trêmula, “quando ele era bem pequeno. Ele o amava de paixão, e quando ainda era filhotinho o cachorro foi atropelado na sua frente por um carro na rua. Ele pegou o corpo e o levou de volta até o apartamento, chorando mais descontroladamente do que jamais vi qualquer pessoa chorar. O temperamento dele foi arruinado de vez por essa experiência”, disse ela. “Ele hoje é um homem frio e calculista, que só se preocupa com o que consegue arrancar da vida. Eu, por minha parte, só confio em gatos”, disse ela, “que pelo menos conseguem solucionar a questão da própria sobrevivência, e embora possa lhes faltar a capacidade do poder e da influência, e seja possível dizer que sobrevivem à base de invejas e de um certo grau de egoísmo, eles possuem também instintos impressionantes e uma excelência notável em matéria de bom gosto.
“Meu marido me deixou nossos gatos”, continuou ela, “em troca de alguns artefatos pré-colombianos dos quais relutava muito em se desfazer, mas disse que uma parte de si mesmo havia ficado para trás junto com eles, a ponto de quase ter medo de estar no mundo sem a sensação de direção proporcionada pelos gatos. E é verdade”, continuou ela, “que as suas escolhas desde então foram menos felizes: ele comprou um desenho de Klimt que depois se revelou falso, e investiu pesado no dadaísmo, quando qualquer um poderia ter lhe dito que o interesse do público por essa época estava irremediavelmente em declínio. Eu, enquanto isso, não consegui evitar as mais generosas carícias dos deuses, chegando a encontrar no mercado de pulgas uma pequena pulseira em formato de cobra que comprei por cinquenta centavos e que Arturo, amigo do meu marido, viu no meu braço quando nos encontramos por acaso um dia na rua. Ele a levou para o seu instituto a fim de analisá-la, e ao devolver me disse que vinha das tumbas de Micenas e tinha um valor incalculável, informação que tenho certeza de que passou para o meu marido durante suas conversas noturnas no Brettos Bar.
“Mas os gatos, como eu estava dizendo, são criaturas ciumentas e preconceituosas, e desde que o meu namorado passou a morar no meu apartamento, se mostraram muito lentos para admitir, apesar das atenções constantes que ele lhes dedica, e que assim que vira as costas eles no mesmo instante esquecem. Infelizmente ele é um homem bagunceiro, um filósofo, que deixa seus livros e papéis por toda parte, e embora o meu apartamento não tenha uma beleza frágil, precisa estar arrumado de determinado modo para estar na sua melhor forma. Tudo é pintado de amarelo, cor da felicidade e do sol, mas também, segundo meu namorado, a cor da loucura, de modo que muitas vezes ele precisa sair para o telhado, onde se acomoda e se concentra no azul cerebral do céu. Enquanto ele está lá fora, eu sinto a felicidade voltar; começo a guardar seus livros, alguns dos quais, de tão pesados, mal consigo pegar com as duas mãos. Após muito relutar, cedi-lhe duas prateleiras da minha estante, e ele gentilmente escolheu as de baixo, embora eu saiba que teria preferido as de cima. Mas as prateleiras de cima são altas, e as obras de Jürgen Habermas, de quem meu namorado tem uma coleção grande, são tão pesadas quanto as pedras usadas na construção das pirâmides. Eu digo ao meu namorado que homens morreram para erguer essas estruturas, cujas bases eram muito largas e cujo ponto mais alto era muito pequeno e distante; mas Habermas é a sua área, diz ele, e nesse estágio da vida ninguém vai lhe oferecer outro terreno para pastar. Ele é um homem ou um pônei? Enquanto está em pé lá no telhado olhando o céu, essa é a pergunta que faço a mim mesma, quase com saudades do temperamento horroroso do meu marido, que me fazia correr tão depressa que eu sempre dormia bem à noite. Às vezes”, disse ela, “eu me refugio com minhas amigas, e ficamos todas juntas chorando e tramando, mas então meu namorado abre o piano e toca uma tarantela, ou então passa a tarde inteira assando um cabrito com vinho e cravo, e seduzida por esses sons e cheiros eu retorno, ergo as pedras de Habermas e torno a colocá-las na estante. Mas então um dia eu parei, reconhecendo que não conseguia mais conter aquilo e que a desordem precisava reinar; pintei as paredes de verde-claro, tirei meus próprios livros da estante e os deixei espalhados, deixei as rosas murcharem e morrerem nos vasos. Ele ficou empolgadíssimo e disse que aquilo tinha sido um passo importante. Saímos para comemorar, e ao voltarmos encontramos os gatos enlouquecidos na biblioteca espalhada em meio a uma nevasca de páginas, destruindo as lombadas com os dentes afiados enquanto nós assistíamos com o Chablis ainda correndo nas veias. Meus romances e volumes encadernados em couro estavam intactos: somente Habermas tinha sido atacado, sua fotografia arrancada de cada frontispício,
Mudança estrutural da esfera pública
marcada com grandes arranhões. E assim”, disse ela em conclusão, “meu namorado aprendeu a guardar seus livros; ele não prepara mais assados nem abre o piano, e por essa bênção contraditória que é o encolhimento da sua personalidade eu tenho de agradecer aos gatos — se não talvez ao meu marido também.”
Será que nós por acaso, disse Aris — o menino que na véspera havia falado sobre o cachorro em putrefação —, não usávamos os animais como puros reflexos da consciência humana, enquanto ao mesmo tempo sua existência exerce uma espécie de força moral pela qual os seres humanos se sentem objetificados e, portanto, contidos e seguros? Como escravos, disse ele, ou então criados, em cuja ausência seus patrões se sentiriam vulneráveis. Eles nos observam viver; eles provam que somos reais; por meio deles nós acessamos a história de nós mesmos. Em nossas interações com eles, nós — não eles — somos exibidos como aquilo que de fato somos. Com certeza — para os seres humanos — a coisa mais importante num animal é não poder falar, disse ele. Sua história era sobre um hamster que ele tivera quando pequeno. Ele ficava olhando o hamster correr na gaiola. A gaiola tinha uma roda na qual ele corria. O bicho vivia correndo — a roda vivia fazendo barulho. Mas nunca ia a lugar nenhum. Ele adorava o seu hamster. Entendia que, se o amava, tinha de soltá-lo. O hamster fugiu, e ele nunca mais tornou a vê-lo.
Georgeou me informou que o horário, segundo o relógio que eu não podia mais ver, uma vez que estava posicionado bem atrás da minha cabeça, tinha acabado. Ele havia acrescentado alguns minutos para compensar o tempo que eu passara no corredor: esperava que eu fosse concordar com essa decisão, que ele tivera de tomar sozinho, de modo a não interromper.
Agradeci-lhe por essa informação e agradeci à turma pelas histórias, que tinham me proporcionado grande prazer, falei. Rosa havia pegado uma caixa rosa presa por uma fita que me passou por cima da mesa. Eram bolos de amêndoas feitos por ela mesma, falou, segundo uma receita que a avó lhe tinha dado. Eu podia levá-los comigo; ou então, se preferisse, podia dividir com a turma. Ela havia preparado um número suficiente para que todos pudessem comer, embora, como Cassandra não tinha aparecido, fosse sobrar um. Desamarrei a fita e abri a caixa perfumada. Lá dentro havia onze bolinhos, todos perfeitamente dispostos dentro de forminhas brancas plissadas. Virei a caixa de modo que todos pudessem ver o que Rosa tinha feito antes de passar os bolinhos. Georgeou disse estar aliviado por ter tido a possibilidade de examinar o conteúdo da caixa, na qual havia reparado mais cedo e que o havia deixado um pouco nervoso, pensando que poderia haver um animal lá dentro.