X
“Não se importe comigo”, disse a mulher que estava sentada no sofá de Clelia quando saí do meu quarto às sete da manhã.
Ela estava comendo mel direto de um vidro com uma colher. No chão ao seu lado havia duas malas grandes. Era uma pessoa magérrima, de rosto branco e cabelos encaracolados, em algum ponto dos quarenta anos, com um pescoço mais comprido que o normal e uma cabeça um tanto pequena, como a de um ganso. Sua voz produzira um som de grasnado bem distinto, o que aumentava essa impressão. Reparei na cor verde-clara de seus olhos miúdos, sem cílios e que não piscavam, encimados por sobrancelhas pretas severas; ela mantinha as pálpebras ligeiramente franzidas numa espécie de careta, como se quisesse se proteger da luz. Fazia um calor sufocante no apartamento. Suas roupas — jaqueta de couro vinho, camisa e calça, além de botas de couro preto de aspecto pesado — deviam estar desconfortáveis.
— Acabei de chegar de Manchester — explicou ela. — Estava chovendo lá.
Ela sentia muito por chegar tão cedo, acrescentou, mas com o horário do seu voo, não conseguiu pensar numa alternativa, a menos que tivesse ido sentar num café com suas malas. O taxista a ajudara a carregá-las até lá em cima, o mínimo que ele podia fazer, disse ela, após ocupar toda a viagem de meia hora do aeroporto lhe contando em detalhes meticulosos o enredo do romance de ficção científica que estava escrevendo, pois ela cometera o erro de lhe dizer que tinha ido a Atenas ministrar um curso de escrita criativa. O inglês dele era muito bom, embora ele falasse com um forte sotaque escocês: havia passado dez anos dirigindo um táxi em Aberdeen, e certa vez conduzira o escritor Iain Banks, que segundo ele tinha se mostrado muito encorajador. Ela havia tentado explicar que era dramaturga, mas ele então dissera que ela estava ficando técnica demais. A propósito, disse ela, meu nome é Anne.
Ela se levantou para apertar minha mão e tornou a sentar em seguida. Vi a mim e a ela como se através das grandes janelas de Claire, duas mulheres apertando-se as mãos num apartamento de Atenas às sete da manhã. A mão dela era muito branca e ossuda, e seu aperto era firme, nervoso.
“Que apartamento agradável”, disse ela, olhando em volta. “Eu não sabia o que esperar — nunca sabemos o que esperar nessas ocasiões, não é? Acho que pensei que fosse ser mais impessoal”, falou. “No caminho para cá, fiquei lembrando a mim mesma para imaginar o pior, e evidentemente deu certo.”
Por algum motivo, continuou ela, havia imaginado que fosse ser enfiada numa caixa em algum conjunto de prédios anônimo e poeirento, onde cães latiam, crianças choravam e as pessoas penduravam roupas para secar em pedaços de barbante amarrados nos peitoris das janelas, muitos metros acima do chão; chegara a visualizar uma autoestrada lá embaixo, embora talvez fosse apenas porque tinha visto lugares assim no táxi a caminho da cidade, e os tinha memorizado sem de fato olhar para eles. Mas supunha que esperasse ser maltratada, de alguma forma. Não sabia ao certo exatamente por quê. Era bom ter uma surpresa agradável, falou, olhando em volta outra vez.
Tornou a mergulhar a colher no pote de mel e a levou até a boca pingando.
“Me desculpe”, falou, “é o açúcar. Quando começo, não consigo mais parar.”
Eu disse que havia comida na cozinha se ela quisesse, e ela fez que não.
“Eu prefiro não saber”, respondeu. “Tenho certeza de que já, já chegarei lá. É sempre diferente num lugar novo, mas raramente melhor.”
Já eu fui até a cozinha fazer um café para nós duas. O ambiente estava quente, abafado, e abri a janela. O barulho do tráfego distante veio lá de fora e entrou. A vista vazia dos fundos pintados de branco dos outros prédios estava totalmente na sombra. Era cheia de estranhas formas retilíneas onde novas estruturas e anexos tinham sido acrescentados, e estas se projetavam no espaço vazio entre os dois lados da rua de modo que em alguns pontos quase se tocavam, como as metades de algo que houvesse rachado no meio de cima a baixo. O chão estava tão distante lá embaixo que se perdia de vista, escondido nas profundezas sombreadas daquela estreita ravina branca de blocos e retângulos onde nada crescia nem se movia. O sol despontava feito uma cimitarra na borda dos telhados.
“Quase morri de susto com a mulher no corredor”, disse Anne quando voltei. “Assim que entrei, pensei que ela fosse você.” Sua voz tornou a sair como uma espécie de grasnado, e ela levou a mão ao pescoço comprido. “Não gosto de ilusões”, acrescentou. “Eu me esqueço que elas estão lá.”
Ela também tinha me dado vários sustos, falei.
“Eu sou meio nervosa em geral”, disse Anne. “Deve dar para perceber.”
Ela me perguntou quanto tempo fazia que eu estava lá, como eram os alunos e se eu já estivera em Atenas antes. Não sabia muito bem como iria funcionar a barreira da língua; escrever numa língua que não fosse a sua era uma ideia engraçada. A gente quase sente vergonha do jeito como as pessoas são forçadas a usar o inglês, do quanto de si mesmas precisa ser abandonado nessa transição, como pessoas a quem se diz para deixar suas casas e levar consigo apenas uns poucos objetos essenciais. No entanto, havia também nessa imagem uma pureza que a atraía, pois ela era repleta de possibilidades para se autoinventar. Libertar-se dos acúmulos, tanto mentais quanto verbais, era de certo modo uma perspectiva atraente; isso até você se lembrar de algo que necessitava e que tivera de deixar para trás. Ela, por exemplo, constatava que não conseguia fazer piadas quando estava falando outra língua; em inglês, era de modo geral uma pessoa com senso de humor, mas em espanhol, por exemplo — que em determinado momento chegou a falar bastante bem —, não. Então imaginava que não fosse tanto uma questão de tradução, e sim de adaptação. A personalidade era forçada a se adaptar às suas novas circunstâncias linguísticas, a se criar outra vez; era um pensamento interessante. Havia um poema de Beckett, falou, que ele tinha escrito duas vezes, uma em francês, outra em inglês, como para provar que o fato de ser bilíngue o tornava duas pessoas, e que a barreira da língua era em última instância intransponível.
Perguntei-lhe se ela morava em Manchester, e ela respondeu que não, que só estava lá dando outro curso, e que tivera de pegar um voo direto de lá para cá. Era um pouco exaustivo, mas ela precisava do dinheiro. Praticamente não tinha escrito nada nos últimos tempos — não que alguém ficasse rico escrevendo teatro, pelo menos não o tipo de peça que ela escrevia. Mas algo havia acontecido com a sua escrita. Houve — bem, seria possível chamar de um incidente, e como dramaturga ela sabia que o problema com os incidentes era que toda a culpa era atribuída a eles: eles se tornam uma premissa para a qual todo o resto é atraído, como buscando uma explicação de si mesmo. Talvez esse… problema tivesse ocorrido de qualquer forma. Ela não sabia.
Perguntei-lhe qual era o problema.
“Eu o chamo de resumir”, disse ela com um grasnado alegre. Toda vez que concebia uma nova peça, antes de chegar muito longe já se pegava resumindo-a. Muitas vezes era preciso apenas uma palavra: “tensão”, por exemplo, ou “sogra”, embora em inglês, a rigor,
mother-in-law
fossem três palavras. Assim que algo era resumido, tornava-se para todos os efeitos morto, uma coisa inerte, e ela não conseguia mais lhe dar continuidade. Por que se dar ao trabalho de escrever uma longa peça sobre o ciúme quando a palavra “ciúme” praticamente a resumia? E não era apenas o seu próprio trabalho — ela dava por si fazendo isso com o trabalho dos outros, e descobrira que mesmo os mestres, as obras que ela sempre havia reverenciado, se permitiam em grande parte ser resumidos. Até mesmo Beckett, o seu deus, fora destruído por
insignificância
. Ela sentia a palavra começar a surgir e tentava contê-la, mas ela continuava a se aproximar, subindo, subindo cada vez mais até estourar de modo irreversível dentro da sua mente. E não eram só os livros, tampouco, isso estava começando a acontecer com pessoas — noutra noite ela estava bebendo alguma coisa com uma amiga, olhou para o outro lado da mesa e pensou,
amiga
, e consequentemente teve a forte desconfiança de que a sua amizade houvesse acabado.
Ela raspou a colher no fundo do pote de mel. Tinha consciência de que isso era também um mal-estar cultural, disse ela, mas ele havia invadido seu mundo interior de tal forma que ela própria se sentia resumida, e estava começando a questionar de que adiantava continuar existindo dia após dia quando
vida de Anne
praticamente definia a questão.
Perguntei-lhe qual era o incidente — se fosse a palavra que ela havia usado —, qual era o incidente ao qual ela fizera alusão mais cedo. Ela tirou a colher da boca.
“Eu fui assaltada”, grasnou ela. “Seis meses atrás. Tentaram me matar.”
Eu disse que isso era horrível.
“É o que as pessoas sempre dizem”, falou ela.
A essa altura tinha terminado o mel e estava lambendo da colher cada último vestígio. Perguntei-lhe se não queria mesmo que eu fosse pegar alguma outra coisa para ela comer, já que obviamente estava com tanta fome.
“É melhor não”, disse ela. “Como eu falei, quando começo não consigo mais parar.”
Sugeri que talvez pudesse ajudar se eu lhe desse algo definido, algo limitado cujo fim fosse claro.
“Pode ser”, disse ela em tom de dúvida. “Não sei.”
Abri a caixa rosa que Rosa tinha me dado e que estava em cima da mesa de centro entre nós duas e lhe estendi o único bolinho que havia sobrado. Ela o pegou e o segurou na mão.
“Obrigada”, falou.
Uma das consequências do incidente, falou, era que ela havia perdido a capacidade de comer de maneira normal — fosse lá o que isso fosse. Supunha que antes soubesse fazer isso, pois tinha chegado até ali sem nunca pensar de fato a respeito de comer, mas nem que se esforçasse muito conseguia recordar como ou o que havia comido durante todos esses anos. Antes, falou, era casada com um homem que cozinhava muito bem e tinha de modo geral um conceito de ordem em relação à comida que beirava o fanatismo. Na última vez em que o vira, meses antes, ele havia sugerido que fossem almoçar. Ela havia escolhido um restaurante da moda de um tipo que não mais frequentava por motivos de economia e também, supunha, porque agora lhe faltava a sensação necessária de prerrogativa, ou seja, ela sentia que não tinha mais o direito de estar nesse tipo de lugar. Sentara-se e observara-o pedir e em seguida consumir lentamente uma entrada, um prato principal e uma sobremesa, cada porção muito moderada e perfeita à sua maneira — a entrada eram ostras e a sobremesa, se ela bem se lembrava, morangos frescos com um pouco de creme —, seguidos por um pequeno café expresso que ele havia bebido de um gole só. Ela própria havia pedido uma salada servida como acompanhamento. Depois que se despediram, ela havia passado numa casa de rosquinhas, entrado e comprado quatro, que consumira uma depois da outra em pé na rua.
“Nunca contei isso para ninguém”, disse ela, levando o bolinho de Rosa à boca e dando uma mordida.
Ao observá-lo comer o almoço, continuou ela, havia experimentado duas sensações que pareciam se contradizer diretamente. A primeira foi saudade; a segunda, náusea. Ela ao mesmo tempo queria e não queria o que quer que aquela imagem — a imagem dele comendo — houvesse invocado. A saudade era bem fácil de entender: era o que os gregos chamavam de
nostos
, palavra que em inglês traduzíamos como “
homesickness
”, “o mal de casa”, embora ela nunca tivesse gostado desse termo. Parecia muito inglês tentar definir um estado emocional como uma espécie de vírus que ataca o estômago. Mas nesse dia ela se dera conta de que
homesickness
meio que resumia a questão.
Seu ex-marido não tinha sido de grande ajuda depois do incidente. Como não eram mais casados, ela imaginava que tivesse sido errado esperar isso, mas mesmo assim o fato a deixou surpresa. Quando aconteceu, ele foi a primeira pessoa para quem ela pensou em ligar — por hábito, poderia parecer, mas para ser bem sincera ela ainda os considerava ligados de algum modo indissolúvel. Ao falar com ele ao telefone naquele dia, porém, ficou imediatamente visível que ele não compartilhava da sua opinião. Mostrou-se educado, distante e sucinto enquanto ela estava brava, histérica e aos soluços: “oposto completo” foi a expressão que, naqueles instantes difíceis, havia surgido em sua mente.
Foi com outras pessoas, algumas delas desconhecidas, que o incidente precisou ser decantado: policiais, terapeutas, um ou dois bons amigos. Mas fora tudo uma descida aos infernos, um redemoinho de não significado no qual a ausência de seu marido parecera a ausência de um centro magnético, de modo que sem ele nada fazia sentido algum. A polarização de homem e mulher era uma estrutura, um formato: ela só a sentira depois de ela desaparecer, e quase parecia que o colapso dessa estrutura, desse equilíbrio, era o responsável pelo extremo que ocorrera depois. Seu abandono por um homem, em outras palavras, conduziu diretamente ao seu ataque por outro, até as duas coisas — a presença do incidente e a ausência do marido — quase passarem a parecer uma só. Ela havia imaginado, falou, que o fim de um casamento fosse um lento desembaraçar de seus significados, uma longa e dolorosa reinterpretação, mas no seu caso não tinha sido nada disso. Na época, ele havia se livrado dela de modo tão eficiente e suave que ela quase se sentira reconfortada ao ser deixada para trás. Ele sentara ao seu lado vestido com seu terno no sofá de um terapeuta durante o número obrigatório de sessões, conferindo discretamente o relógio e garantindo a todo mundo querer apenas o que era justo, mas poderia muito bem ter mandado um modelo em papelão de si mesmo, pois na sua mente era óbvio que estava em outro lugar, galopando rumo a novos pastos. Longe de ser uma reinterpretação, o seu fim tinha sido praticamente mudo. Pouco depois, ele fora morar com a filha de um aristocrata — um conde não sei de onde — que estava agora grávida do seu primeiro filho.
De certa forma, ela aceitava que simplesmente ele a estava deixando do mesmo jeito que a havia encontrado uma década antes, uma dramaturga pobre com alguns amigos atores e uma coleção de livros usados grande e sem valor. No entanto, ela logo descobrira que não era mais essa pessoa: por meio dele, havia se tornado outra. Em certo sentido, ele a havia criado, e quando ela lhe telefonara naquele dia do incidente, estava se reportando de volta a ele como sua criação, supunha. Seus vínculos com a vida antes dele haviam sido completamente rompidos — essa pessoa não existia mais, então quando o incidente ocorreu isso significara dois tipos de crise, uma das quais era uma crise de identidade. Em outras palavras, ela não sabia ao certo a quem aquilo tinha acontecido. Seria possível dizer, portanto, que essa questão da adaptação estava em primeiro plano na sua mente. Ela parecia alguém que tivesse esquecido a língua materna, ideia que também sempre a fascinara. Depois do incidente, havia constatado que lhe faltava o que se poderia chamar de vocabulário, uma língua materna do eu: faltaram-lhe palavras, como se dizia, pela primeira vez na vida. Ela não conseguia descrever o que havia acontecido, nem com ela mesma, nem com os outros. Falava sobre isso, claro, falava sobre isso sem parar — mas, por mais que falasse, a coisa em si permanecia intocada, velada e misteriosa, inacessível.
No voo para lá, disse, por acaso começara a conversar com o homem sentado ao seu lado, e na verdade tinha sido essa conversa que fizera sua mente começar a refletir sobre esses temas. Ele era um diplomata recém-lotado na embaixada de Atenas, mas sua carreira o tinha feito morar no mundo inteiro, e em consequência aprender muitos de seus idiomas. Ele fora criado na América do Sul, disse, e portanto sua língua materna era o espanhol; sua mulher, porém, era francesa. A família — ele, a mulher e os três filhos — usava quando estava junta a moeda universal da língua inglesa, mas como haviam passado muitos anos vivendo no Canadá, as crianças falavam um inglês americanizado, enquanto o dele fora aprendido durante um longo período passado em Londres. Ele era também totalmente fluente em alemão, italiano e mandarim, sabia um pouco de sueco por causa de um ano passado em Estocolmo, tinha uma compreensão funcional do russo, e era capaz de se virar muito bem e sem grande esforço em português.
Ela ficava nervosa em aviões, falou, de modo que a conversa no fundo havia começado como distração. Mas na verdade havia achado toda a história dele, da sua vida e das várias línguas nas quais ela havia transcorrido, cada vez mais fascinante, e começara a lhe fazer mais e mais perguntas para tentar obter dele o máximo de detalhes possível. Perguntara-lhe sobre a sua infância, seus pais, sua educação, sobre a evolução da sua carreira, o encontro com a mulher, o casamento e a vida em família subsequentes, sobre as suas experiências nos diversos postos ao redor do mundo; e quanto mais escutava suas respostas, mais ela sentia que algo fundamental estava se delineando, algo relacionado não a ele, mas a si mesma. Percebeu que ele estava descrevendo uma distinção que parecia ficar cada vez mais clara à medida que falava, uma distinção que o punha de um lado enquanto ela, como foi ficando cada vez mais visível, estava do outro. Em outras palavras, ele estava descrevendo aquilo que ela própria não era: em tudo que dizia sobre si, ela encontrava na sua própria natureza uma negativa correspondente. Essa antidescrição, na falta de um termo melhor, tinha, graças a uma espécie de exposição reversa, deixado algo claro para ela: enquanto ele falava, ela começara a se ver como uma forma, um esboço, com todos os detalhes preenchidos em volta enquanto a forma em si permanecia vazia. Mas essa forma, ainda que o seu conteúdo permanecesse desconhecido, lhe deu, pela primeira vez desde o incidente, uma noção de quem ela era agora.
Ela perguntou se eu me importaria que tirasse as botas; estava começando a ficar com calor. Tirou também a jaqueta de veludo. Disse que havia sentido frio o tempo todo nos últimos meses. Perdera muito peso; imaginava que isso explicasse o frio. Aquele homem, seu vizinho no avião, era muito baixo — quase teria sido possível descrevê-lo como mignon. Pela primeira vez em anos, ele a fizera se sentir um tanto grande. Era muito pequeno e elegante, com mãos e pés de tamanho infantil, e sentada ao seu lado num espaço tão exíguo ela começara a ficar cada vez mais consciente do próprio corpo e do quanto ele havia mudado. Nunca tinha sido particularmente gorda, mas depois do incidente com certeza havia encolhido, e agora, agora na verdade não sabia o que era. O que percebeu foi que o seu vizinho, tão elegante e compacto, decerto sempre tinha sido daquele jeito que era agora: sentada ao seu lado, essa distinção ficara aparente para ela. Em sua vida como mulher, o caráter amorfo — a mudança de forma — tinha sido uma realidade física: seu marido fora de certa forma o seu espelho, mas ultimamente ela se via sem esse reflexo. Depois do incidente, perdeu mais de um quarto de seu peso corporal — lembrava-se de encontrar um conhecido na rua que tinha olhado para ela e dito: não sobrou nada de você. As pessoas haviam passado algum tempo lhe dizendo coisas desse tipo, dizendo-lhe que ela estava minguando, sumindo, descrevendo-a como uma ausência iminente. Para a maior parte das pessoas que ela conhecia, gente de quarenta e poucos anos, essa era uma fase de suavização e expansão, de expectativas se desfazendo, de desleixo ou ganho de peso após a exaustão da caça: ela as via começar a relaxar e a ficar à vontade em suas vidas. No seu caso, porém, ao sair de volta para o mundo outra vez, as linhas continuavam precisas, as expectativas não tinham perdido sua força: ela às vezes sentia ter chegado a uma festa bem na hora em que estava todo mundo indo embora, voltando para casa juntos para dormir. Ela não dormia muito, aliás — era uma sorte eu estar voltando para casa nesse dia, porque podia ver que o apartamento era bem pequeno e ela teria me acordado, zanzando por ele às três da manhã.
Mas sentada ao lado de seu vizinho, como ela ia dizendo, sentira uma súbita ânsia de se conhecer outra vez, de saber como ela era. Deu por si pensando como seria fazer sexo com ele, se por serem tão diferentes causariam repulsa um no outro. Quanto mais ele falava, mais ela pensava nessa questão, se as suas diferenças, naquele ponto, só poderiam levá-los a um estado de repulsa mútua. Pois essa diferença, essa distinção, a essa altura já havia se formulado, já havia superado o tamanho, a forma e a atitude para se tornar um único ponto que ela podia ver com muita clareza na mente: o ponto era que ele vivia uma vida controlada pela disciplina, enquanto a dela era regida pela emoção.
Quando ela lhe perguntara como ele havia dominado as muitas línguas que falava, ele lhe descrevera seu método, que era construir na mente uma cidade para cada idioma, construí-la tão bem e de maneira tão sólida que ela permaneceria em pé a despeito das suas circunstâncias de vida ou da duração da sua ausência.
“Pus-me a imaginar todas essas cidades de palavras”, disse ela, “e ele a percorrê-las umas depois das outras, uma silhueta diminuta em meio a essas grandes e assombrosas estruturas. Disse que essa imagem me fazia pensar na escrita, a não ser pelo fato de uma peça de teatro ser mais uma casa do que uma cidade; e me lembro de como isso antigamente fazia com que me sentisse forte, construir essa casa e então me afastar dela, e ao olhar para trás ver que ela ainda estava ali. Ao mesmo tempo que me lembrei dessa sensação”, disse ela, “tive absoluta certeza de que nunca mais voltaria a escrever peça nenhuma, e na verdade nem sequer conseguia recordar como escrevera alguma, que passos tinha dado, que materiais havia usado. Mas sabia que teria sido tão impossível para mim escrever uma peça agora quanto construir uma casa em cima d’água enquanto estivesse flutuando no mar.
“Meu vizinho então disse algo que me surpreendeu”, continuou ela. “Confessou-me que desde a sua chegada em Atenas, seis meses antes, fora absolutamente incapaz de fazer qualquer progresso em grego. Tinha dado o melhor de si, havia até contratado um professor particular que ia à embaixada duas horas por dia, mas não conseguia guardar uma palavra sequer. Assim que o professor ia embora, tudo que meu vizinho havia aprendido se dissolvia: em contextos sociais, reuniões, em lojas e restaurantes, dava por si abrindo a boca para um imenso vazio que parecia uma pradaria a se estender desde os seus lábios até o fundo da sua mente. Como era a primeira vez na vida que isso lhe acontecia, não sabia se a culpa era sua ou se poderia ser atribuída, de algum modo, ao idioma em si. Ela talvez fosse rir dessa ideia, falou, mas a sua confiança na própria experiência significava que ele não podia descartá-la de todo.
“Eu perguntei”, disse ela, “como sua mulher e seus filhos tinham se virado com a língua, e se haviam encontrado dificuldades parecidas. Ele então admitiu que sua mulher e seus filhos tinham ficado no Canadá, onde a sua vida a essa altura estava a tal ponto estabelecida que não poderia ter sido transplantada. Sua mulher tinha o trabalho e os amigos; as crianças não queriam deixar a escola e sua vida social. Mas era a primeira vez que a família ficava separada. Ele tinha consciência de não ter me contado isso no começo, falou; não sabia ao certo por quê. Não tinha previsto que fosse vir a ser relevante.
“Perguntei a ele”, disse ela, “se havia lhe ocorrido que a sua incapacidade de aprender grego estava relacionada à ausência da família. Não precisava nem ser uma questão de sentimentalismo, mas apenas que as condições nas quais ele sempre havia alcançado o sucesso não estavam mais presentes. Ele pensou um pouco a respeito, então disse que até certo ponto era verdade. Mas no fundo de seu coração achava que era por não considerar o grego em si uma língua útil. Não era uma língua internacional; todos no mundo diplomático ali se comunicavam em inglês; no final das contas, teria sido uma perda de tempo.
“Houve nesse comentário algo tão definitivo”, disse ela, “que percebi que a nossa conversa havia terminado. E é verdade que, embora ainda faltasse uma hora e meia de voo, nós não trocamos mais uma palavra sequer. Fiquei sentada ao lado daquele homem e senti a força do seu silêncio. Quase senti que havia sido castigada. No entanto, tudo que acontecera fora que ele havia se recusado a assumir a culpa pelo próprio fracasso, e rejeitado minha tentativa de ler nisso algum tipo de significado, um significado que ele me viu exageradamente disposta a formular. Foi quase uma medição de forças, a disciplina dele contra a minha emoção, com apenas o braço da cadeira entre nós. Esperei que ele me fizesse alguma pergunta, o que afinal de contas teria sido apenas educado, mas ele não fez, muito embora eu houvesse feito tantas a respeito dele. Trancou-se na sua própria visão da vida, correndo inclusive o risco de me ofender, pois sabia que essa visão estava ameaçada.”
Ela ficara sentada no avião, falou, pensando no seu hábito da vida inteira de se explicar, e pensou nesse poder do silêncio, que punha as pessoas fora do alcance umas das outras. Ultimamente, desde o incidente — agora que as coisas tinham ficado mais difíceis de explicar, e que as explicações eram mais duras e mais sombrias —, até mesmo seus amigos mais próximos passaram a lhe dizer que deixasse de falar no assunto, como se ao falar no assunto ela fizesse aquilo continuar a existir. No entanto, se as pessoas se calassem sobre o que havia lhes acontecido, então algo não estaria sendo traído, nem que fosse apenas a versão de si mesmas que tinha vivido aquilo? Por exemplo, nunca se dizia da história que não se devia falar a respeito; pelo contrário, em termos históricos, silenciar era esquecer, e isso era a coisa que as pessoas mais temiam, quando era a sua própria história que corria o risco de ser esquecida. E a história na verdade era invisível, embora seus monumentos continuassem de pé. A construção dos monumentos era metade da história, mas o resto era interpretação. No entanto, havia algo pior que o esquecimento, a saber, a interpretação equivocada, a parcialidade, a apresentação seletiva dos acontecimentos. A verdade precisava ser representada; não podia simplesmente ser deixada para representar a si mesma, como por exemplo ela havia feito com a polícia após o incidente, para em seguida se ver mais ou menos excluída.
Perguntei-lhe se ela se importaria em me falar sobre o incidente, e seu rosto adquiriu uma expressão de alarme. Ela levou as mãos ao pescoço, onde duas veias azuis se destacavam.
“Um cara pulou de um arbusto”, grasnou. “Ele tentou me estrangular.”
Ela esperava que eu entendesse, acrescentou, mas apesar do que tinha dito mais cedo, na verdade estava tentando não falar mais sobre aquilo. Estava dando o melhor de si para resumi-lo. Digamos apenas que o drama nesse dia se tornou algo real para mim, falou. Deixou de ser teórico, não era mais uma estrutura interna em que ela pudesse se esconder para de lá olhar o mundo. Em certo sentido, o seu trabalho havia pulado de um arbusto para atacá-la.
Falei que a meu ver até certo ponto muitas pessoas sentiam isso, não em relação ao trabalho, mas à vida em si.
Ela passou algum tempo sentada no sofá sem dizer nada, assentindo com a cabeça, as mãos unidas sobre a barriga. Pouco depois, perguntou-me quando eu ia embora. Eu lhe disse que meu voo seria dali a poucas horas.
“Que pena”, disse ela. “Está feliz por voltar?”
De certa forma, respondi.
Ela me perguntou se havia algo em especial que eu achasse que ela precisava ver enquanto estivesse ali. Sabia que a cidade era repleta de lugares de importância cultural global, mas por algum motivo achava esse conceito um pouco intimidador. Se houvesse algo menor, algo que eu valorizasse pessoalmente, ela ficaria grata em saber.
Eu disse que ela poderia ir à Ágora ver as estátuas sem cabeça das deusas na colunata. Era um lugar fresco, tranquilo, e os imensos corpos de mármore com suas vestes de aspecto macio, de tão anônimos e mudos, proporcionavam um estranho alento. Certa vez eu havia passado três semanas ali sozinha com meus filhos, falei, quando ficamos presos porque todos os voos de saída tinham sido cancelados. Embora não se pudesse ver, diziam que havia no céu uma imensa nuvem de cinzas; as pessoas tinham medo de que pedacinhos de cascalho travassem as turbinas. Aquilo me levara a pensar nas visões apocalípticas dos místicos medievais, falei, essa nuvem tão imperceptível e ao mesmo tempo tão verossímil. Então nós tínhamos ficado três semanas ali, e como não deveríamos estar ali, eu sentira que tínhamos nos tornado de certa forma invisíveis. Não vimos ninguém nem falamos com ninguém a não ser uns com os outros durante todo esse tempo, embora eu tivesse amigos em Atenas para quem poderia ter telefonado. Mas não lhes telefonei; a sensação de invisibilidade era forte demais. Passamos muito tempo na Ágora, falei, um lugar que fora invadido, destruído e reconstruído muitas vezes ao longo de sua história, até por fim, na época moderna, ser resgatado e preservado. Passáramos a conhecê-lo bastante bem, falei.
Ah, fez ela. Bem, se eu quisesse visitá-lo de novo e se tivesse tempo, quem sabe poderíamos ir até lá juntas. Não estava certa de que conseguiria encontrar sozinha. E caminhar um pouco lhe faria bem — talvez a fizesse parar de pensar em comida.
Falei que ela poderia provar um
souvlaki
: nunca mais passaria fome na vida.
Souvlaki
, disse ela. Sim, acho que ouvi falar.
Meu telefone tocou, e o tom alegre e destemido do meu vizinho se fez ouvir do outro lado.
Ele esperava que eu estivesse bem naquela manhã, falou. Torcia para não ter havido mais nenhum incidente que tivesse me deixado perturbada. Tinha reparado que eu não respondera às suas mensagens de texto, então achara melhor ligar. Havia pensado em mim; queria saber se eu teria tempo para uma saída de barco antes do meu voo.
Eu disse que infelizmente não — esperava que tornássemos a nos ver da próxima vez que fosse a Londres, mas por enquanto tinha compromisso com outra pessoa para visitar uma atração turística.
Nesse caso, disse ele, vou passar o dia solícito.
Solitário, você quer dizer, disse eu.
Queira me desculpar, disse ele. Quis dizer solitário, claro.