miséria, roupa de cetim

 

A refavela

Batuque puro

De samba duro de marfim

Marfim da costa

De uma Nigéria

Miséria, roupa de cetim

GILBERTO GIL, “REFAVELA”

Nossa Senhora do Desterro, capital da província de Santa Catarina, era, no século passado, um desses burgos que os lusos e sua prole pingaram, aqui e ali, no litoral brasileiro, uma matriz cercada de casas acanhadas por todos os lados, à sombra da imagem da padroeira, pequeno comércio, pequenos ofícios, vida pequena, vegetando na calmaria que desviou as naus de Cabral.

Eu brasileiro confesso

minha culpa meu pecado

Meu sonho de cada dia

Tropical melancolia

Negra solidão

TORQUATO NETO, “MARGINÁLIA II”

Por caprichosa ironia onomástica, o fado do poeta já estava inscrito em seu nome e no da cidade onde nasceu: Cruz, Desterro.

Filho do escravo Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e de Carolina Eva da Conceição, ex-escrava, João da Cruz nasceu, sob Sagitário, em 24 de novembro de 1861, escravo, pelas leis do Império.

Futuro que o esperava: ser pedreiro como o pai, carregador, estivador, carpinteiro, vendedor ambulante, como os de sua raça e condição social.

E, então, aconteceu a anomalia.

O proprietário de seu pai, o marechal de campo Guilherme Xavier de Sousa e sua digníssima esposa, d. Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, a quem Deus não dera filhos, tomaram-se de amores paternais e maternais pelo menino, de sangue africano, sem mistura.

O marechal tinha se distinguido por feitos guerreiros no Paraguai e era, lusitanamente, senhor de vasta chácara, no antigo largo da Maçonaria, em Desterro, da qual era um dos mais destacados cidadãos.

Na casa do marechal, o pequeno João aprendeu a ler e a escrever, com a própria d. Clarinda (olha o preconceito de cor, no nome tão claro).

E aí, entre rendas e porcelanas, começou uma vida dupla, raiz de sua tragédia pessoal: futura fonte da voltagem maior da sua poesia.

Imaginem um negrinho da senzala criado com todos os desvelos e sofisticações da casa-grande. Esse foi Cruz e Sousa.

Anomalia sociocultural no Brasil escravocrata do Segundo Império, exceção, desvio, aí temos a matéria-prima para um poeta. Afinal, que é poesia senão discurso-desvio, mensagem-surpresa, que, essencialmente, contraria os trâmites legais da expressão, numa dada sociedade?

O filho de Guilherme (escravo) era, agora, o filho de Guilherme (o marechal do Império). Na confusão dos nomes, entre o pai verdadeiro e o adotivo, muito mistério. A paternidade de João da Cruz fundia-se numa homonímia verbal, irônica em relação ao contexto sociocultural. O pai-escravo e o pai-senhor chamam-se pelo mesmo nome.

Esta figura, em retórica, se chama antanáclase: consiste em dar à mesma palavra um sentido diferente (tipo: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”; aqui, “razões” e “razão” têm sentidos distintos). As figuras do conflito, do estraçalhamento e da contradição vão perseguir a vida do poeta. E — naturalmente — determinar o curso da sua poesia.

O poeta assimilou sua contradição social, étnica e cultural, em nível onomástico, incorporando ao nome negro de João da Cruz o Sousa dos senhores. Cruz. E Sousa. Cruz. Mas Sousa. O nome como marca a fogo de propriedade, uso luso, aliás, os escravos adotando, no Brasil, o apelido dos seus proprietários.

Destino idêntico contemplou-se esse Edgar Allan Poe, precursor do símbolo, que Cruz e Sousa tanto admirava.

Filho de atores pobres, Edgar Poe foi adotado por um gentleman do sul, de nome Allan, que Poe incorporou, mas separava, na assinatura do seu nome, como uma excrescência, delatando em plano gráfico-icônico seu hibridismo social, coisa que Mallarmé, com olhar icônico e atento às formas, viu muito bem.

Em apêndice à edição das traduções de poemas de Poe, Mallarmé reproduz a rubrica de Poe:

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com este comentário agudíssimo:

Estas duas palavras célebres ligadas por traço significativo, pela mão do poeta,conservam a inicial parasita da outra palavra: Allan. Assim se chamava (é sabido) o gentleman que adotou o rebento de um casal romanesco e famélico de atores de teatro, exibiu numa atmosfera de luxo esta infância que desenvolvia a precocidade; depois, instrumento primeiro de um destino espantoso, jogou na vida, nu, com sonhos, impotente para se debater contra um destino novo, o jovem que iria se tornar Edgar Poe e pagar magnificamente sua dívida, levando à imortalidade, unido ao seu, o nome de um protetor: ora, o futuro se recusa a fazê-lo. Mallarmé, Les Poèmes d’Edgar Poe [Paris: Gallimard, 1928; 1961].

 

No festivo dia do retorno do marechal, ferido e condecorado na Guerra do Paraguai, João da Cruz, com oito anos, declama versos de boas-vindas, de sua própria lavra.