A luz nasce na escuridão
GIL, “DEIXAR VOCÊ”
Zazueira, zazueira…
Ela vem chegando
E feliz vou esperando
A espera é difícil
Mas eu espero sonhando
JORGE BEN, “ZAZUEIRA”
Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo, mas ficou sonhando
“TRIUNFO SUPREMO”,
ESTES VERSOS SÃO O EPITÁFIO DE CRUZ
O destino do poeta sofre brusca alteração de rota, quando passa por Desterro a companhia teatral do português José Simões Nunes Borges. Pai de uma beldade que fazia a cabeça da moçada nos idos de 1880, Simões aportou na minúscula capital de Santa Catarina, com sua companhia, a estrela, sua filha, e um repertório de dramalhões românticos, a que ninguém resistia, naqueles dias antes da TV e da novela das sete.
Cruz, sempre no lance, declamou, antes da apresentação da companhia Simões, uns versos exaltando a estrela do dia.
Foi o que bastou para ser apresentado aos artistas visitantes.
Daí a entrar na equipe, foi um pulo.
Cruz vai fugir com o circo.
A companhia Simões vai para o Rio Grande do Sul, de navio, em busca dos aplausos que a acompanhavam desde o Rio de Janeiro.
No navio, vai Cruz e Sousa, sozinho, e dependendo apenas do seu talento para sobreviver e triunfar.
O poeta curtiu a viagem, chegando a descrever o mar, em páginas posteriores, “entre tropicalismos primaveris de sóis sangrentos”, antecipando-se pelo menos setenta anos à criação da palavra “tropicalismo”.
Para falar com “propp”-riedade, isto é, conforme a Morfologia da fábula do teórico russo Propp,* o Herói saiu de Casa para Enfrentar o Dragão. Só que na excursão da companhia teatral Cruz não seria ator, nem diretor, muito menos dramaturgo: o seu era o trabalho obscuro, inglório, subalterno, de ponto, a voz oculta no subsolo, soprando as falas para as estrelas do show.
Nos palcos da vida, Cruz se sentirá sempre aquele ponto invisível, trabalhando na peça sem direito a aplausos. Invisível. Negro. Cego. Ray Charles. Stevie Wonder.
Mas viver, nesta vida, não é tudo.
Não quero dar, nestas páginas, espaço maior à vida de Cruz do que o tempo que ela teve no espaço-tempo concedido aos animais deste terceiro planeta depois do Sol.
Basta dizer que mudou-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro em 1890, na efervescência dos primórdios da República: os militares tinham derrubado o Império, um ano depois da “abolição”.
Aí, ingressa no jornalismo pela mão de conterrâneos e correligionários, solidarizados em torno do símbolo, que Cruz acabava de conhecer mais intimamente através dos livros trazidos da França para o Brasil por Medeiros e Albuquerque (Baudelaire, Huysmans, Villiers de l’Isle-Adam, Poe, traduzido por Mallarmé).
No Rio, Cruz vai ter a felicidade de encontrar aquela que, mãe de seus filhos, vai ser o grande amor, Gavita. Mas vai comer o pão que o diabo amassou, no terreno da sobrevivência.
Isso sem falar na incompreensão geral quanto à sua produção.
Ser negro e — ainda por cima — simbolista, no Brasil do século XIX, parnasiana casa-grande, onde grandes eram os Bilac, Raimundo Correia, escoltados pelos críticos, donos da opinião, nos jornais, como esse medíocre José Veríssimo, o Wilson Martins da época, obtuso ao novo, fustigado pelo bem mais interessante Sílvio Romero (que teve a grandeza de vislumbrar a grandeza de um Odorico Mendes, de um Sousândrade, por exemplo).
Não era fácil ser Cruz e Sousa.
Com Gavita, Cruz teve quatro filhos homens, dois mortos em vida do poeta, os outros, logo depois.
Capa da revista simbolista curitibana Pallium (1898-1900), onde Cruz teve
poemas publicados. Observar a caveira funcionando como pingo no i da palavra
“pallium”, o símbolo da morte pontuando a palavra em língua morta.
“O signo é a morte da vida” (“Caveira”).
Gavita enlouqueceu, em 1896, sendo cuidada em casa pelo próprio Cruz: daí, os vários poemas da loucura produzidos nessa época.
Que mudez infernal teus lábios cerra
que ficas vago, para mim olhando
na atitude da pedra, concentrando
no entanto, n’alma, convulsões de guerra!
A mim tal fel essa mudez encerra,
tais demônios revéis a estão forjando,
que antes te visse morto, desabando
sobre o teu corpo grossas pás de terra.
Não te quisera nesse atroz e sumo
mutismo horrível que não gera nada,
que não diz nada, não tem fundo e rumo.
Mutismo de tal dor desesperada,
que, quando o vou medir com o estranho prumo
da alma, fico com a alma alucinada!
Alma! Que tu não chores e não gemas,
teu amor voltou agora.
Ei-lo que chega das mansões extremas,
lá onde a loucura mora!
Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
desses lívidos países,
mágica flor a rebentar de um vaso
com prodigiosas raízes.
Veio transfigurada e mais formosa
essa ingênua natureza,
mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
das essências da Beleza.
Certo neblinamento de saudade
mórbida envolve-a de leve…
E essa diluente espiritualidade
certos mistérios descreve.
O meu Amor voltou de aéreas curvas,
das paragens mais funestas…
Veio de percorrer torvas e turvas
e funambulescas festas.
As festas turvas e funambulescas
da exótica Fantasia,
por plagas cabalísticas, dantescas,
de estranha selvageria.
Onde carrascos de tremendo aspecto
como astros monstros circulam
e as meigas almas de sonhar inquieto
barbaramente estrangulam.
Ele andou pelas plagas da loucura,
o meu Amor abençoado,
banhado na poesia da Ternura,
no meu Afeto banhado.
Andou! Mas afinal de tudo veio,
mais transfigurado e belo,
repousar no meu seio o próprio seio
que eu de lágrimas estrelo.
De lágrimas de encanto e ardentes beijos,
para matar, triunfante,
a sede de místico desejo
de quando ele andou errante.
E lágrimas, que enfim, caem ainda
com os mais acres dos sabores
e se transformam (maravilha infinda!)
em maravilhas de flores!
Ah! que feliz um coração que escuta
as origens de que é feito!
e que não é nenhuma pedra bruta
mumificada no peito!
Ah! que feliz um coração que sente
ah! tudo vivendo intenso
no mais profundo borbulhar latente
do seu fundo foco imenso!
Sim! eu agora posso ter deveras
ironias sacrossantas…
Posso os braços te abrir, Luz das esferas,
que das trevas te levantas.
Posso mesmo já rir de tudo, tudo
que me devora e me oprime.
Voltou-me o antigo sentimento mudo
do teu olhar que redime.
Já não te sinto morta na minh’alma
como em câmara mortuária,
naquela estranha e tenebrosa calma
de solidão funerária.
Já te sinto mais embalsamada
no meu caminho profundo,
nas mortalhas da Graça amortalhada,
como ave voando do mundo.
Não! não te sinto mortalmente envolta
na névoa que tudo encerra…
Doce espectro do pó, da poeira solta
deflorada pela terra.
Não sinto mais o teu sorrir macabro
de desdenhosa caveira,
Agora o coração e os olhos abro
para a Natureza inteira!
Negros pavores sepulcrais e frios
além morreram com o vento…
Ah! como estou desafogado em rios
de rejuvenescimento!
Deus existe no esplendor d’algum Sonho,
lá em alguma estrela esquiva.
Só ele escuta o soluçar medonho
e torna a Dor menos viva.
Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
com a sua graça espontânea
que emigraste das plagas do Deserto
nu, sem sombra e sol, da Insânia!
No entanto como que volúpias vagas
desses horrores amargos,
talvez recordação daquelas plagas
dão-te esquisitos letargos…
Porém tu, afinal, ressuscitaste
e tudo em mim ressuscita.
E o meu Amor, que repurificaste,
canta na paz infinita!
O poeta terminou a vida funcionário da estrada de ferro Central do Brasil (primeiro, praticante, por fim, arquivista).
Seus últimos dias (morava no Encantado, na rua que, hoje, se chama Cruz e Sousa) foram marcados pelo avanço da tuberculose, certamente provocada por precárias condições de vida.
Tinha trinta e sete anos.
* Morfologia do conto maravilhoso (1928), de Vladimir Propp. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984. (N. E.)