linguagem em ereção:
o sexo da poesia de cruz e sousa

 

Logunedé é depois

Que Oxóssi encontra a mulher

Que a mulher decide ser

A mãe de todo o prazer

GIL, “LOGUNEDÉ”

Ó Carnes que eu amei sangrentamente…

CRUZ E SOUSA, “DILACERAÇÕES”

tesão pulsando no texto

que eles coitentam interromper

sem supunhetar

nem invaginar q tenho pênis

deles q nádegas têm ânus dizer

EDUARDO KAC, “PIKANTE”, 1981

saltar-te aos seios de fluidez cheirosa

e bajulá-los e depois mordê-los…

CRUZ E SOUSA, “LUBRICIDADE”

E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio das transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dos êxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal, vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e triunfantes da apoteose soberana da Carne!

Assim escreveu (ou ejaculou) Cruz e Sousa, numa página das Evocações, em prosa (prosa?).

De que sexo era a poesia de Cruz? Priápica, ninfomaníaca, a musa de Cruz era, provavelmente, lésbica, com furor uterino: uma musa, é claro, expressionista.

Penso aclarar (olha aí o preconceito) algumas coisas sobre a poesia de Cruz dizendo, como quem testa, em química, jogando um tornassol, dizendo, eu dizia, que a poesia de Cruz é, por exemplo, expressionista.

Desde Edmund Castelo de Axel Wilson [1931], sabemos que o simbolismo é, apenas, uma das modulações possíveis do romantismo. Uma modulação extrema: são os românticos mais radicais (Poe, Nerval, Novalis) os primeiros simbolistas, os primatas de símbolo. O elo perdido.

A categoria estética (o “rema”, diria Peirce) “expressionismo” não existe na história das formas literárias, no Brasil. Embora se tenha invocado a categoria de “impressionismo” para caracterizar a arte de Raul Pompeia, em O Ateneu.

“Expressionismo” é rema corrente, na história da pintura, na passagem do século XIX para o XX (ver Van Gogh, Emil Nolde, Kandinsky, Paul Klee, Kokoschka). A palavra se aplica, ainda, a certo tipo de música (ao atonalismo de Schönberg, por exemplo).

O expressionismo, cujas obras traduzem sensação de medo, parece expressar as perplexidades de uma classe social à beira de convulsões revolucionárias (a burguesia europeia, às vésperas da Primeira Grande Guerra Mundial e da Revolução Russa).

Na literatura alemã e centro-europeia da mesma época, expressionismo é realidade, traduzida em obras como as de um Kafka, um Trakl, um Gottfried Benn, um August Stramm. Ver traços no primeiro Brecht. Afinal, que é expressionismo?

Vamos ficar com algumas definições. Como a de Albert Soergel.

Conforme ele, com o expressionismo,

o que foi expressão a partir de fora se muda em expressão a partir de dentro: aquilo que foi reprodução de um pedaço do natural é, agora, liberação de uma tensão espiritual. Para isso, todos os objetos do mundo exterior podem ser unicamente signos sem significado próprio. Dissolução pessoal do objeto na ideia, para desprender-se dele e redimir-se nela.

É a substituição do “observador frio pelo ardente confessor”.

Ou, como diz Van Gogh, numa carta, “expressar o físico pelo psíquico, em imagens e cores”. Ou em sons e palavras, diríamos, Cruz e Sousa conosco.

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Expressionismo: as palavras submetidas à mais alta voltagem emocional.
Ilustração de Von Hofman para um romance de Franz Werfel (Alemanha, 1913).

 

 

Que se expressa? Ou quem se expressa? Quem se expressa é o desejo. E o desejo-desejo-mesmo é o desejo sexual. Na expressão do desejo sexual, Cruz e Sousa, como bom expressionista, diz tudo que seu ser (sua poesia) quer.

Isso, Freud, o maior dos expressionistas, seu contemporâneo, afirma, ao criar uma técnica de cura baseada na expressão dos desejos recônditos.

Para Freud, civilização é repressão: silêncio lançado sobre as coisas que gritam.

Os primeiros expressionistas eram deliberadamente confusos: gostavam de envolver-se, literalmente, em ‘noite’, a palavra-chave e a mais citada da época. Nunca houve movimento literário mais noturno do que este, que vencera com seu profeta pictórico, o sombrio norueguês Edward Munch. Uma noite perpétua, só interrompida por raios apocalípticos que anunciaram profeticamente — em 1910 e 1911 — o fim do mundo de então. Os poetas também falavam como que por meio de raios: de maneira abrupta, inarticulada. Falava-se em ‘literatura de gritos’.

Otto Maria Carpeaux [História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966, v. 7, p. 3096].

Descendo à terra, bom observar o exaltado papel sexual do negro no Brasil da casa-grande/senzala. A negra oralidade de mamar na mãe preta. Os negros nus. O sadismo do chicote (evoco aqui a extraordinária cena de sádico orgasmo, em A carne de Júlio Ribeiro, quando Lenita goza vendo um escravo ser açoitado).

O negro, reserva de libido e de eros, na sociedade que os reduzia à condição de animalidade. Confirmada na negação da beleza do negro, evidentemente a mais bela, fisicamente, de todas as raças do planeta. Uma negação necessária, ditada por uma estética militar, de defesa, do luso-branco que especializava a raça negra nos duros afazeres da monocultura.

Como se comportou o desejo de Cruz e Sousa, nesse quadro?

Expressionisticamente, transformando em signos sexuais os símbolos do opressor: sinais de proibição à penetração do fálus negro em vaginas brancas.

Não falemos da fascinação, tantas vezes registrada, até por comentadores pudibundos, de Cruz por mulheres louras, brancas, interditas.

Em Cruz, um certo estilema simbolista de fascinação pelo branco, que, em Mallarmé, é a página, antes do poema, traduz-se, por signos bem evidentes, em tesão pela carne da mulher branca: papel a ser escrito, sexualmente, pela negra tinta.

Na poesia brasileira, Cruz é o negro que deseja a branca, seu turbilhão, a tempestade de quem quer botar o preto no branco. Ou melhor dizendo: o preto (fálus) na branca (vagina).

Cruz é a classe dominada que quer comer a classe dominante. Por isso, fantasia com ela, como fêmea.

Conforme relatos de contemporâneas, Cruz e Sousa suscitou várias paixões entre mulheres branquíssimas, naquela já um tanto ou quanto germânica Santa Catarina.

Banda pra tocar por aí

no Zanzibar

Pro negro Zanzibárbaro dançar

[…]

Pra loura Blumenáutica dançar

GILBERTO GIL, “BANDA UM”

Altas fêmeas, brancas como a letra A. Como esta alva, alta Alda, salva nesta valsa:

alda

Alva do alvor das límpidas geleiras,

Desta ressumbra candidez de aromas…

Parece andar em nichos e redomas

De Virgens medievais que foram freiras.

Alta, feita no talhe das palmeiras,

A coma de ouro, com o cetim das comas,

Branco esplendor de faces e de pomas,

Lembra ter asas e asas condoreiras.

Pássaros, astros, cânticos, incensos,

Formam-lhe auréolas, sóis, nimbos imensos

Em torno à carne virginal e rara.

Alda faz meditar nas monjas alvas,

Salvas do Vício e do Pecado salvas,

Amortalhadas na pureza clara.

Como não lembrar este outro Concerto em A, nosso contemporâneo, a “Clara” de Caetano Veloso?

quando a manhã madrugava

calma

alta

clara

clara morria de amor

Branca, página: na aventura de Cruz e Sousa, vida e poema se entrelaçaram, muito mais do que ele próprio imaginaria, naquelas pré-freudianas eras. Nem Cristo escapou dessa sexualização, no código cruziano:

cristo de bronze

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,

Cristos ideais, serenos, luminosos,

Ensanguentados Cristos dolorosos

Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,

Ó Cristos de metais estrepitosos

Que gritam como os tigres venenosos

Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro…

Ó Cristo humano, estético, bizarro,

Amortalhado nas fatais injúrias…

Na rija cruz aspérrima pregado

Canta o Cristo de bronze do Pecado,

Ri o Cristo de bronze das luxúrias!…

Como não ver que Cristo, aí, é metáfora do fálus ereto?

A temática da dureza (bronze, ouro, marfim, prata, metais, pedra, madeira, barro, rija cruz), culminando nesse “Cristo das luxúrias”, que entrega o jogo.

Que tal esta “Primeira comunhão”?

Grinaldas e véus brancos, véus de neve,

Véus e grinaldas purificadores,

Vão as Flores carnais, as alvas Flores

Do Sentimento delicado e leve.

Um luar de pudor, sereno e breve,

De ignotos e de prónubos pudores,

Erra nos pulcros, virginais brancores

Por onde o Amor parábolas descreve…

Luzes claras e augustas, luzes claras

Douram dos templos as sagradas aras,

Na comunhão das níveas hóstias frias…

Quando seios pubentes estremecem,

Silfos de sonhos de volúpia crescem,

Ondulantes, em formas alvadias…