cruz e sousa e sua orquestra

 

Do imenso mar maravilhoso, amargos,

marulhos murmurem…

CRUZ E SOUSA, “SONATA”

mimo de Oxum, Logunedé, edé, edé,

é delícia…

GILBERTO GIL, “LOGUNEDÉ”

Bemóis e sustenidos têm sido as relações entre a poesia escrita e a música.

Ora meio tom abaixo, no tema do sentido. Às vezes, meio tom acima.

A lírica do Ocidente (a partir dos trovadores provençais da Idade Média) é um progressivo afastamento do texto e da música que o acompanhava.

Com a imprensa, a letra de música emudeceu na página branca.

E virou poema.

Que sempre foi lido, como sentido. E não enquanto forma. Enquanto lindo.

A beleza foi recuperada, na modernidade das vanguardas do século XX, com a conscientização da materialidade da linguagem escrita.

Descobriu-se a letra: enquanto corpo, enquanto carne, enquanto X.

E surgem, entre os brancos de Mallarmé, os esplêndidos grafismos e letrismos futuristas (Marinetti, Soffici), caligramas de Apollinaire (apolinário, milionário de Apolo), sonorismos Dadá, tortografias surrealistas (Breton, Éluard), realismos concretos de signo.

Nasce o poema visual, numa viagem que começou na palavra da canção que emudeceu no papel, onde virou caracteres, até que o alfabeto, através dos poetas, despertou, do seu faraônico sono milenar, para os esplendores da atual poesia de vanguarda.

Mas, mesmo nos séculos de silêncio, na página impressa, o verso e o poema continuaram saudosos do seu antigo conúbio com a melodia.

Na Idade Média, esse comércio tinha dado, por exemplo, a inverossímil formosura de arquitetura sonora das letras de um Arnaut Daniel.

Em outras épocas, canção e poema escrito se encontraram, brevemente.

E tiraram o atraso, digamos, na poesia inglesa elisabetana: as letras das songs do século XVI, altamente apreciadas por um Ezra Pound, não eram indignas daquele grupo de poetas da época, que T.S. Eliot chamou de metaphysical e que representam um cume na lírica (John Donne, Andrew Marvell, Richard Crashaw, e, “last but not the Franz Lizst”, William Shakespeare). Vários deles assinam letras de canções famosas.

Tirando isso, a poesia escrita teve evolução autônoma, evoluindo, de subespécie da letra de canção, para nova espécie sígnica.

Nesse período todo, a poesia acabou profundamente comprometida com uma entidade chamada literatura.

Ora, isso que se chama modernamente de literatura é, apenas, uma variante ou modalidade daquilo que, na Antiguidade greco-romana, se chamava retórica. Há profunda contradição entre poesia e retórica. Contradição expressa, concretamente, na Antiguidade greco-latina, pela condição mendiga e esfarrapada dos poetas contra a prosperidade dos “retores”, mestres dos juristas, políticos e homens públicos da Grécia e de Roma.

Poesia não é literatura. É outra coisa: é arte, mais para o lado da música e das artes plásticas, como Pound viu (ou ouviu) muito bem.

Da imprensa às vanguardas do início deste século, durante o período de sequestro da poesia pela literatura (na Idade Média, a lírica era oral, envolvendo canto, dança e festas, camponesas ou cortesãs; os textos, raros, eram manuscritos, primores caligráficos de forma e cor; com a imprensa, a poesia virou “letra”, na homogeneidade linear dos inodores, insípidos e incolores ABCs de Gutenberg; no século XX, com as vanguardas e a música popular, a poesia volta à vida dos sentidos, em forma, voz e cor), nesse período, algumas coisas ficaram dizendo que a poesia não era bem a literatura que estavam querendo fazer com ela. Entre essas coisas, a métrica. E, sobretudo, a rima. Nessas materialidades a poesia manteve sua individualidade. Não basta dizer. Tem que dizer bonito.

A métrica só se justifica pela presença de uma melodia, construída sobre a regularidade matemático-pitagórica da música.

A métrica, em poemas escritos para serem lidos no papel, é um absurdo: o olho não ouve música. Ou ouve? Os simbolistas (a partir de Baudelaire) achavam que sim.

Nessa nossa pobre cultura reflexa, que, no entanto, tem e teve seus momentos de grandeza (O que fazer?, perguntou Lênin, diante de coisas bem mais graves), o parnaso e o símbolo representaram especializações de conquistas do romantismo, no fundo, uma explosão de poesia (de vida) no coração da literatura.

As frígidas construções parnasianas (Bilac, Raimundo Correia) eram mal-assombradas (ou bem-assombradas?) pelo fantasma de um superego saído das artes plásticas (quadros de uma exposição, retratos do artista enquanto pintor, escultor, arquiteto, ourives, artesão).

O simbolismo mudou de sentido: do olho para o ouvido.

Nunca foi tão funda a saudade da poesia pela música perdida quanto no simbolismo.

Wagner, o deus. Wagner, que os fãs diziam ser maior poeta que Goethe e melhor músico que Beethoven. A que um adversário bem-humorado respondeu: sim, melhor poeta que Beethoven e melhor músico que Goethe. “De la musique, avant toute chose” [A música, antes de tudo], disse o simbolista Verlaine, quase cantando. O poeta simbolista é um músico. Músico de palavras, de sílabas, de vogais e consoantes. Seus poemas: baladas, sonatas, sinfonias.

Mas, no simbolismo, ao contrário de um Arnaut Daniel, a entrada da música implica uma destruição do “significado”. O massacre do sentido pelos sons.

Acompanhe-se a demolição do significado no “Ângelus” de Cruz e Sousa, onde os sentidos, as referências ao real, parecem se dissolver numa bruma de acordes silábicos e consonantais:

Ah! lilases de Angelus harmoniosos,

neblinas vesperais, crepusculares,

guslas gementes, bandolins saudosos,

plangências magoadíssimas dos arses…

Image

Leitura brasileira, por Alphonsus de Guimaraens, do notório “soneto das
vogais”, onde Rimbaud identifica sons com cores, na trilha fonovisual das
correspondências de Baudelaire. Na fioritura das letras do título, o abc já
começa a se transformar em visagem, visão, coloração. Extremamente atrevida a
maneira como o poeta coloca as vogais, isoladas, entre dois pontos, segurando a
rima, simetricamente, na tônica do último verso de cada quadra. Nessa leitura,
Alphonsus insere um dado seu, a articulação do fluxo das vogais com as idades do
homem e da natureza, primavera-adolescência, mocidade, maturidade, outono-
-velhice, inverno-morte, cada estrofe correspondendo a uma estação do ano.

 

Em vão, procurarás sentido em versos como esses, ó leitor.

O sentido são eles mesmos: retratos do meio enquanto mensagem.

Baldo buscar alusões e menções à música, na poesia de Cruz: elas abundam. É um sonoplasta.

Desde a inaugural “Antífona”, abrindo os Broquéis, com seu espantoso A-B-C, anagramatizado nas iniciais dos adjetivos atribuídos a “Formas”,

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras…

Até poemas chamados “Sinfonias do ocaso”, “Música misteriosa…”, “Sonata”, “Canção do bêbado”, “Violões que choram”…

A figura prevalente, na poesia de Cruz e Sousa, não é a aliteração, nem a harmonia imitativa, onomatopeia dos sentimentos, nem a ecolalia, mas o anagrama.

Palavras sob palavras: o fonotropismo de Cruz e Sousa.

Quem diz anagrama, diz Saussure.

No As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure [Perspectiva, 1974], Starobinski acompanha a última e mais abissal aventura intelectual do grande mestre da linguística moderna. Aquela que o levou a procurar palavras sob as palavras, na poesia grega, latina, védica e gótica.

No fim da vida, anos pensando o signo, o suíço Ferdinand de Saussure (morto em 1913) começou a ver palavras escritas-inscritas em palavras e versos de priscas línguas mortas que ele, mestre, frequentava. Os anagramas: palavras dis-persas, em sílabas dentro de versos, naufragadas, naugrafadas. As palavras que as sílabas de uma outra palavra emitem, insinuam, ameaçam, esboçam, prenunciam: pro-jetam.

Digamos o primeiro verso da Eneida:

ARMA VIRUMQUE CANO
(CANTO AS ARMAS E O VARÃO).

Catando o E, o N, o E, de novo, o I, o A, Saussure lia o nome de Eneias, herói do poema de Virgílio. Não mencionado no verso. Mas subcitado, anagramaticamente.

Pois é assim que a mente de Cruz e Sousa compõe: vendo, na luz de uma palavra, a outra luz de outra palavra. Ou, dentro do acordo de uma palavra, a harmonia de infinitas palavras.

Observe isto, por exemplo:

Rio de esquecimento tenebroso,

Amargamente frio,

Amargamente sepulcral, lutuoso,

Amargamente rio!

“ESQUECIMENTO”

Quem vai poder dizer se este “rio” é o aquático substantivo ou a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo rir? As palavras naufragaram dentro das palavras (naugrafaram), passando por esse rio, que corre por dentro da palavra F-rio.

Alma sem rumo, a modorrar de sono,

Mole, túrbida, lassa…

Monotonias lúbricas de um mono

Dançando numa praça…

“TÉDIO”