cruzamentos

Largos Silêncios interpretativos

CRUZ E SOUSA, “SILÊNCIO”

Olha,

lá vai passando a procissão

GILBERTO GIL, “PROCISSÃO”

Chega de conversa. E vamos passear um pouco pelo parque de poemas de Cruz. Cruzar com ele. Cruzi-ficá-lo.

Método: pound-faustino-paideumático. Peças inteiras. Ou fragmentos (versos, estrofes). Pedras de toque (touch-stones).

Mas, enfim, só os resultados que indigitem o grande poeta que foi esse Cruz, nascido em Desterro e que viveu no Encantado.

acrobata da dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,

Como um palhaço, que desengonçado,

Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado

De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,

Agita os guizos, e convulsionado

Salta, gavroche, salta clown, varado

Pelo estertor dessa agonia lenta…

Pedem-te bis e um bis não se despreza!

Vamos! retesa os músculos, retesa

Nessas macabras piruetas daço…

E embora caias sobre o chão, fremente,

Afogado em teu sangue estuoso e quente,

Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Expressionismo crispado, num paroxismo raro na poesia brasileira. É uma sustentada metáfora: o coração do poeta como (tragicômico) palhaço.

Notar: RI… t--stissimo…: Cruz projeta a sílaba da alegria dentro do superlativo do seu contrário.

O poema está cheio de reminiscências teatrais (Cruz foi ponto).

O tom, todo carregado de um sadomasoquismo, que perpassa a poesia de Cruz (“castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!”, “Escravocratas”, O livro derradeiro): sadomasoquismo que o estatuto da escravidão explica. O negro era mantido na senzala numa condição de dor física institucionalizada: açoites, queimaduras com ferro em brasa, algemas, colares de ferro, máscaras de lata para os negros que, com intenção de se matar, comiam terra. A mesma terra que plantavam para os senhores lusos.

Castro Alves fez retórica sobre a condição negra.

Cruz e Sousa era negro.

o assinalado

Tu és o louco da imortal loucura,

O louco da loucura mais suprema,

A terra é sempre a tua negra algema,

Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,

Mas essa mesma Desventura extrema

Faz que tu’alma suplicando gema

E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado

Que povoas o mundo despovoado,

De belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica

Toda a audácia dos nervos justifica

Os teus espasmos imortais de louco!

Um dos mais impressionantes “poemas da loucura”, provavelmente, composto durante a loucura de Gavita, mulher do poeta, que ele cuidou, desveladamente, até a recuperação.

Foi quando, contaminado, Cruz sintetizou a experiência poética e a loucura, o desvario, num só momento. Sem falar na loucura social de um negro retinto, no Brasil do século XIX, possuir o repertório de bens abstratos que um Cruz e Sousa possuía.

O poeta como assinalado. O marcado (Caim?) por um sinal. Sinal para ver mais longe. Mas para sofrer mais fundo.

A negritude como sinal total: visibilidade integral.

Itamar Assumpção e Djavan, presos pela polícia paulista. Apenas porque eram negros. Gil, em Florianópolis.

Mas como é bonita essa “algema” que anagramatiza, mas que rima, em “tua AL-ma suplicando GEMA”. Para resplandecer nesse

E rebente em estrelas de ternura.

em seus R-T-TR-TR, um dos mais belos versos da língua. “Eternuras”, belezas eternas.

caveira

I

Olhos que foram olhos, dois buracos

Agora, fundos, no ondular da poeira…

Nem negros, nem azuis e nem opacos.

Caveira!

II

Nariz de linhas, correções audazes,

De expressão aquilina e feiticeira,

Onde os olfatos virginais, falazes?!

Caveira! Caveira!!

III

Boca de dentes límpidos e finos,

De curva leve, original, ligeira,

Que é feito dos teus risos cristalinos?

Caveira! Caveira!! Caveira!!!

O mais alto ponto de visualiconicidade (consciência de formas de Cruz e Sousa): olho-nariz-boca, a caveira falando, no código tanático de Cruz, os pontos de exclamação repetidos, simetricamente, marcando o número da estrofe, I, !, II, !, !!, III, !, !!, !!!. O signo como morte da Vida: a palavra-esqueleto.

Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, são uma vingança da vida contra a morte. Por outro lado, só podem fazer isso porque são morte: suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres, pirâmide do Egito.

dupla via láctea

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam

Os vultos vagos, vaporosos, lentos,

As formas alvas, os perfis nevoentos

Dos anjos que no espaço desfilavam.

E alas voavam de anjos brancos, voavam

Por entre hosanas e chamejamentos…

Claros sussurros de celestes ventos

Dos anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,

Vestida do esplendor dos astros todos,

Nas auréolas dos céus engrinaldada

Dentre as zonas da luz flamo-radiante,

Na cruz da Via Láctea palpitante

Apareceste então crucificada!

Esplêndida fanopeia: a imagem de uma cruz formada por duas vias lácteas, sonhada por um poeta chamado Cruz.

esquecimento

Esquecimento! eclipse de horas mortas,

    Relógio mudo, incerto,

Casa vazia… de cerradas portas,

    Grande vácuo, deserto.

Tachismo verbal: estados (musicais) de baixa definição do material verbal. Os verdadeiros borrões semânticos de alguns poemas de Cruz escandalizaram essa prosa medida e rimada que se chamou parnasianismo, emblema literário da estabilidade da classe dominante brasileira.

rir!

Rir! Não parece ao século presente

que o rir traduza, sempre, uma alegria…

Rir! Mas não rir como essa pobre gente

que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente

com que André Gil eternamente ria.

Rir! mas com o rir demolidor e quente

duma profunda e trágica ironia.

Antes, chorar! Mais fácil nos parece.

Porque o chorar nos ilumina e nos aquece

nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste…

Pois que o difícil do rir bem consiste

só em saber como Henri Heine rir!

Um dos poemas mais extraordinários da poesia brasileira. O rir irradiando-se por dentro dos versos (aleg-RI-a, IR-onia, t-RI-ste), até essa culminância do rir embutido dentro do próprio nome de Hen-RI Heine.

Como não lembrar esse “Encantação pelo riso”, do futurista russo Khlébnikov, na tradução de Haroldo de Campos?

Ride, ridentes!

Derride, derridentes!

Risonhai aos risos, rimente risandai!

Derride sorrimente!

Risos sobrerrisos — risadas de sorrideiros risores!

Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!

Sorrisonhos, risonhos,

Sorride, ridiculai, risando, risantes,

Hilariando, riando,

Ride, ridentes!

Derride, derridentes!