áki (outono)

 

 

 

 

 

Na estação dos frutos maduros, os frutos, prontos:

relampagueia

através das trevas

a garça ecoa

Ou:

   rio ôi

sopre pra longe

nuvens das chuvas de maio

Aqui, o haikai não é um cromo, cartão-postal de um momento: é experiência espiritual intensa.

Bashô é o mestre da observação rara:

chuva de primavera

a água escorre do teto

pelo ninho de vespas

Da desmesura:

mar brabo

sobre a ilha de sado

a vida de santiago

Nisto, Bashô contradiz não apenas uma norma implícita do haikai, mas até um traço do caráter do seu povo: o amor ao pequeno, ao corriqueiro, ao aparentemente insignificante. O poeta lida, aqui, com grandezas máximas: o mar agitado, a Via Láctea (a Via de Santiago), o oceano e a numinosa máquina dos astros. Entre esses absolutos, ao longe, na bruma, a ilha de Sado, a alma de Matsuó Bashô.

Desmesura, ainda, nisto:

o dia em chamas

joga no mar

o rio mogâmi

Não, o haikai de Bashô não é a fotografia adocicada de um lótus flutuando no velho tanque de um mosteiro.

São feridas, contradições zen, singulares vivências de uma sensibilidade à flor da pele:

   pulgas piolhos

   um cavalo mija

do lado do meu travesseiro

Experiência de momentos de extrema riqueza sensorial:

nuvem de flores

   o sino!

vem de ueno?

de asakusá?

Ou de profunda identificação com a matéria:

   silêncio

o som das cigarras

penetra as pedras

Certas intuições espantam pela complexidade da percepção:

TAKOTSUBO YÁ

HAKANÁKI YUMÊ WÓ

NÁTSU NO TSÚKI

 

A Bashô, este haikai pintou, quando num barco, na baía de Akáshi. Diz, mais ou menos:

a armadilha do polvo

sonhos flutuantes

lua de verão

O poeta, no barco, olha a água noturna e vê no fundo os cestos de bambu, onde os pescadores apanham polvos, atraídos pela luz das tochas: a boca das cestas tem pontas de bambu aguçadas, de modo que o bicho pode entrar mas não sair.

Os “sonhos flutuantes” (hakanáki yumê) guardam relação com os reflexos das tochas na água trêmula, onde se reflete a lua amarela (ou quase vermelha) do verão.

Misteriosos parentescos entre os polvos que entram na armadilha, os sonhos que flutuam e os reflexos da lua: todas essas coisas parecem pertencer a um mundo irreal, subaquático, onírico.

No original japonês, uma estranheza de linguagem, que ainda carrega mais os milagres da cena. A partícula wo, depois de hakanáki yumê, sonhos flutuantes, indica, em japonês, que a expressão é o objeto direto de um verbo. Qual o verbo? O original não diz. Nem qual o sujeito. Quem faz o que com os sonhos flutuantes? Arrisco a versão:

polvos na armadilha

sonhos pululam

a lua vermelha

“Flutuantes” não dá conta, plenamente, do japonês hakanáki, verdadeira onomatopeia visual, imitativa do movimento de oscilação das águas. Algo como um zigue-zague. Um treme-treme. Um tremelique. Um quase-quase. A forma é simples. A intuição é barroca.

A tessitura sonora e silábica do haikai é rica de anagramas, tranças de sons que se entrelaçam. A sílaba tsu está em “armadilha” (tsubo), em “verão” (nátsu) e em “lua” (tsúki). Hakanáki quase rima com nátsu.

Em hakanáki, um japonês pode enxergar, ainda, uma aparição do verbo “chorar”, náku, reforçando o clima aquático. Hakanáki compõe-se de dois ideogramas: “fruto” + “não” = “sem fruto”.

Hakanáki yumê, portanto, é, literalmente, “sonho sem fruto”.

Assim, muita complexidade está lá, escondida dentro dos haikais, aparentemente, mais banais. Os de Matsuó Bashô podem ser qualquer coisa: menos banais.

Em muitos, o que se vê é a humanidade de Bashô, uma “gentidade” que, budisticamente, inclui em sua esfera todos os seres vivos (ao amanhecer, de todos os templos e mosteiros budistas da Ásia, eleva-se a primeira prece do dia: pela salvação de todos os seres vivos, animais e plantas, não apenas homens):

em minha cabana

tenho o que oferecer pelo menos

os mosquitos são pequenos

Em sua infinita pobreza voluntária, Bashô, com muito humor, descobre que tem algo a oferecer a seus visitantes: o tamanho dos mosquitos. Mas o ex-samurai também tem outras coisas a oferecer a nós, que visitamos seus poemas, trezentos anos depois. A modernidade deste haikai, por exemplo:

matsushima, ah,

ah, matsushima, ah,

ah, matsushima

Matsushima (“ilha”, shima, dos “pinheiros”, matsu) é tida como um dos lugares mais bonitos do Japão. Bashô viajou dias para chegar até ela. Diante de tanta beleza, sua reação foi um haikai extremamente econômico e redundante: apenas o nome do lugar, repetido em três exclamações, sem mais, como se o assombro fosse demais para caber em palavras.

No terreno dos sentimentos, Bashô vai fundo. Como neste:

em kyoto

com saudades de kyoto

o hototoguísu

Velha capital do Japão, antes de Tóquio (Edo), Kyoto é a cidade dos templos mais velhos, dos antigos palácios, dos mosteiros zen, relicário dos maiores tesouros artísticos do Japão (pinturas, biombos, jardins, textos originais). Sobre ela, pensaram os americanos em jogar a bomba atômica, antes de se decidirem por Hiroshima e Nagasaki.

Bashô sente saudades de Kyoto. Mas ele está em Kyoto. “Mais où sont les neiges d’antan?” [Mas onde estão as neves de outrora?], diria Villon, ecoando no Machado de Assis do: “mudou o Natal ou mudei eu?”.

Ao ouvir o canto do hototoguísu, o rouxinol japonês, Bashô sente nostalgia por uma Kyoto que não existe mais.

O tempo passou, o poeta mudou, a cidade mudou. E agora, Bashô?

   SUMADÉRA WA

(templo de suma)

FUKÁNU FÚE KÍKU

(ouvi a flauta não soprada)

   KOSHITAYÂMI

(debaixo das árvores)

Quem é este que consegue escutar “uma flauta não soprada” (fukánu fúe)? Esta flauta, realmente, existiu (ou existe), a flauta de Atsumôri, um guerreiro da Idade Média japonesa (1169-84), morto, com dezessete anos, numa batalha. O instrumento musical está depositado em Sumadêra, onde Bashô, numa de suas viagens, o conhece. E mais. Sob as árvores do jardim de Sumadêra, chega a ouvir, vindos de muitos séculos atrás, os sons da flauta de Atsumôri.

O efeito lírico, aqui, evapora cercado de um clima fantasmagórico de filme de terror, território, aliás, onde os japoneses se sentem muito bem (assistir aos filmes Contos da lua vaga e Kaidan — As quatro faces do medo).

A cultura, para Bashô, era uma segunda natureza: sua musa se movia tanto diante de uma árvore, um canto de cigarra, uma lua na água, como diante de uma peça nô. Ou da flauta de um guerreiro que virou pó, há muitos séculos atrás.

Difícil distinguir, em pessoa tão aculturada quanto ele, os haikais de inspiração “natural” dos haikais de inspiração “cultural”: não raro ambas as inspirações se encontram juntas, muitos poemas de Bashô, aparentemente motivados pela natureza, sendo, no fundo, reminiscências de frondosos estudos da poesia chinesa ou japonesa do passado.

Dos silêncios do pretérito, Bashô extrai mais que os sons de uma flauta insoprada.

vento de verão

com qual voz

aranha

cantarias

afinal?

Pássaros, grilos, gafanhotos, todas as criaturas do verão têm voz e canto. Como soa a voz da tácita aranha?

lua onde está?

o sino caiu

no fundo do mar

Matsuó compôs esse haikai, em Tsuruga, por onde passava, numa de suas viagens. Baseia-se na lenda, contada pelo dono da casa que o hospedava, sobre uma cidade (Atlântida?) no fundo das águas do mar. Bashô aproveita o mito para expressar a enigmática natureza da lua, calada como um sino náufrago.

o cavalo pula

o coração me vê

dentro de uma pintura

Bashô tinha, como todo mundo, algumas fixações. Suas palavras favoritas, repetidas em muitos poemas, são “sonho” (yumê) e “chorar” (náku).

Mas talvez sua fixação máxima fosse a ideia de fazer parte de uma obra de arte.

Em um haikai, sente-se dentro de uma peça nô.

Aqui, seu coração o vê dentro de um quadro.

este outono

como o tempo passa!

nas nuvens

         pássaros

Quase não há nota poética que Bashô não tenha tocado: a épica, a satírica, a humorística, no exíguo espaço-tempo das dezessete sílabas da forma a que dedicaria a vida.

alvorada

peixe alvo

uma

polegada de alvura

Na límpida tradução de Haroldo de Campos, toda a finura visual da percepção deste desenhista (ou de-ZEN-hista), apto como Maliévitch, a ver o branco sobre o branco.

narciso

biombo

um ao outro ilumina

branco no branco

À alvura da flor, Bashô contrapõe a brancura do biombo, ton sur ton, no grau zero do sentido.

Quando o pai de Kikáku, querido discípulo, morreu, Bashô:

a lua se foi

tristeza

os quatro cantos

da mesa

Moderníssimo, se expressava, oscarniemeyerianamente, em geometria (João Cabral de Melo Neto vai gostar de ouvir isso).

Notável, neste haikai, o jogo entre tsúki, lua, e tsukuê, mesa, trocadilho entre o redondo e o quadrado.

a flor pura

pó       nalgum

nessa       pupila

Agora, o samurai viandante homenageia Sono-jô, sua discípula de haikai, na vida, médica oculista, em cuja casa estava hospedado. Refere-se, evidentemente, a uma flor branca do jardim de Sono-jô, em cuja pétala nenhuma poeira pousara.

Assim, festeja a pureza de vida da poeta, com sutil alusão a seu ofício de oftalmologista, especializada em retirar partículas do olho das pessoas.

Minha tradução acrescenta, em português, uma kakekotoba entre “pupila” do olho e “pupila”, discípula.

Muito leve a mão desse Bashô, capaz de retirar o cisco de um haikai da íris de uma flor. O branco, do branco.

esta estrada

lá vai ninguém

outono

tarde

Este ninguém-todo-mundo, que se chamou Matsuó Bashô.

Ninguém pense que publicou estes haikais (“nipogramas”, “ideolágrimas”) em coleções de poemas, como fazemos no Ocidente.

Os haikais de Bashô são parte de outras formas: o nikki e o hai-ga (zen-ga).

Nikki, em japonês, é “diário”, na literatura japonesa, um gênero maior.

No Ocidente, o diário não chegou à maioridade, como forma literária, nunca tendo atingido, por exemplo, o status e a estatura do soneto, da epopeia ou do romance.

Entre nós, diários de escritores sempre saem no último volume das obras completas, só para proporcionar aos críticos e estudiosos algumas possibilidades de voos freudianos pela biografia do autor, também conhecida como a vida dos outros.

Na literatura japonesa, o diário é um dos gêneros mais importantes.

Uma de suas primeiras grandes obras é o Makurano-kotobá, Palavras do travesseiro, diário de Sei Shonagôn, dama da corte do imperador, em idos do século XII, a Era Heian (Heian Jidai).

De suas viagens atrás de espetáculos naturais e paisagens bonitas, comparáveis às viagens contraculturais dos anos 1960 atrás de shows de rock, Bashô deixou vários diários, recheados de haikais. Deles, um, pelo menos, é um clássico absoluto no gênero. Ôku no Hosomíchi, traduzido, no Ocidente, entre outros, no México, por Eikichi Hayashiya e Octavio Paz, com o nome de Sendas de Ôku, cujo início abre este livro.

Outros são o Diário de Azuma. O Sarashina Kikô, a Viagem a Sarashina, registro da “trip” de Bashô quando vai contemplar o luar na famosa montanha Obassutê, em Shinano. O Diário de Saga. A Introdução do Rio da Prata (isto é: da Via Láctea). O Relato duma viagem a Shikishima.

O Diário do altar ambulante.

O mais célebre desses diários é Sendas de Ôku.

O personagem central é um mestre de haikai, meio samurai, meio monge, que, na companhia de um discípulo, faz uma viagem, a pé, de seis meses, pelo norte do país, em direção ao mais excelso santuário xintoísta, o templo da Deusa do Sol, em Isê.

Esta ida de Bashô ao templo da Deusa do Sol é uma viagem até o coração da poesia. O percurso do Guesa errante, de Sousândrade.

Nas páginas do diário, por sobre a pele da prosa, manchas no couro de um tigre, alguns dos haikais mais definitivos de mestre Matsuó. Mais que escritos, são inscritos no corpo textual desses diários, tatuagem mínima na superfície dessa prosa. Se é que dá para chamar de prosa essa vaporosa prosa japonesa, tão porosa que mais parece, bem, deixa pra lá…

“Nesse breve caderno composto de velozes desenhos verbais e súbitas alusões — signos de inteligência que o autor troca com o leitor —, a poesia mistura-se à reflexão, o humor à melancolia, a anedota à contemplação”, Octavio Paz [“A poesia de Matsúo Bashô”. In: Signos em rotação, p. 165].

Além dos diários, chegou-nos, atribuída a Bashô, uma coleção de pensamentos, as Regras para peregrinar.

Algumas:

1. Não durma duas vezes no mesmo lugar. Queira sempre um colchão que você ainda não tenha esquentado.

2. Roupas e utensílios devem estar de acordo com o que a gente precisa. Nem muitos, nem poucos.

3. Não mostre seus versos, se não for solicitado. Solicitado, nunca recuse.

4. Não se torne íntimo de mulheres que praticam o haikai. Não é bom nem para o mestre nem para a discípula. Se ela for séria sobre o haikai, ensine-a através de um intermediário. O dever dos homens e das mulheres é a produção de herdeiros. Dissipação impede a riqueza e a unidade da mente. O caminho do haikai começa na concentração e na falta de distração. Olhe bem para dentro de si mesmo.

5. Seja grato até àquele que lhe ensinou uma simples palavra. Não tente ensinar até ter entendido tudo. Ensinar é para quem já está perfeito.

6. Para dizer o sabor do coração, precisa agonizar dias e dias.