diógenes e o zen

 

 

 

 

Os antigos discutiam se o cinismo era doutrina filosófica ou modo de vida.

Isto é: palavras ou não palavras.

A filosofia, seja lá o que for, são palavras, enquanto portadoras de conceitos. Não só as palavras, porém, podem gerar conceitos.

As imagens, os gestos, as atitudes, as situações materiais, também podem significar, conceitualmente.

De todas as convergências e tangências entre o cinismo grego e o zen sino-nipônico, esta a mais visível: é consciência atingida sem palavras.

O zen se passa todo num plano transverbal.

O treinamento nas comunidades zen encaminha as consciências em direção a um despertar (satôri, em japonês), uma iluminação, indescritível e intransferível. O desabrochar de uma consciência icônica, talvez. Os processos usados pelos mestres, no adestramento dos pretendentes à iluminação, são os mais aberrantes, para nossos conceitos ocidentais de pedagogia, centrados na palavra.

Pancadas, pedidos absurdos, atitudes, os processos de treinamento incluem a concentração em certas anedotas exemplares, atribuídas a velhos mestres, chamadas, em japonês, koans.

Diógenes, ao meio-dia, procurando um homem com uma lâmpada acesa, é um koan perfeito. Como koan é aquilo de Diógenes mandar sair da frente de seu sol um Alexandre Magno que lhe oferecia a satisfação de qualquer desejo.

Um koan

Po-chang tinha tantos alunos que se viu obrigado a abrir outro mosteiro.

Para achar alguém apto a ser mestre na nova casa, juntou seus monges e colocou um cântaro na frente deles, dizendo:

— Sem o chamarem de cântaro, me digam o que é isso.

— Você não pode chamá-lo um pedaço de lenha, disse o monge principal.

Nesta altura, o cozinheiro do mosteiro derrubou o cântaro com um pontapé e afastou-se.

Po-chang deu a direção do novo mosteiro ao cozinheiro.

Outro koan

Hui-ko procurou Bodhidharma, primeiro patriarca do zen chinês e lhe disse:

— Não tenho paz na minha mente. Pacifica minha mente.

— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico — responde Bodhidharma.

— Mas quando busco minha própria mente, não consigo encontrá-la — diz Hui-ko.

E Bodhidharma:

— Pronto! Pacifiquei tua mente.

Há centenas de koans, reunidos em grandes coleções, com os ditos e feitos dos mestres mais famosos.

Nas comunidades, os mestres apresentam, oralmente, um koan, para que o discípulo concentre-se, durante um tempo, que pode ser longo, trabalhando mentalmente sobre ele, absorvendo sua “outra lógica”.

“A educação intelectual é, antes, ação maciça e imediata de um aforismo, meditação sobre um tema, que construção racional, meditação que prepara a ação, e contrasta intensamente com a pura contemplação da verdade”, diz E. Bréhier sobre os cínicos e os métodos formativos do cinismo grego. Palavras que cabem perfeitamente para descrever as técnicas zen.

A intuição para a vida cínica veio a Diógenes de maneira anti-intelectual e não verbal, num episódio, narrado por Laércio, com muito sabor zen: “tendo visto um rato que andava de uma a outra parte, sem buscar leito, não tinha medo do escuro nem desejava nenhuma das coisas que constituem uma vida confortável, Diógenes achou remédio a sua indigência”.

Isso de receber lição ou mensagem diretamente dos fenômenos naturais, da vida das plantas e animais, lembra os mitos da origem das duas artes marciais, karatê e judô, impregnadas de zen.

O princípio do karatê foi intuído por um monge lutador no dia em que, depois da chuva, olhava uns corvos se secando sobre o telhado.

Ao abrir a asa, um dos corvos bateu com ela numa telha e quebrou-a.

Com isso, o monge soube que penas frágeis, mas concentradas, podem quebrar pedras e telhas.

Quanto ao judô, conta-se que, um dia, um mestre de lutas observava a neve que caía sobre as árvores, entre as quais um salgueiro. A neve se acumulava sobre os galhos das árvores mais rígidas, até quebrá-los com seu peso. Só o salgueiro permanecia intacto sob a neve: seus galhos flexíveis dobravam, deixando a neve cair. Deste princípio de não resistir, vencendo com a própria força do oponente, nasceu o judô, ensinado pela própria natureza.

Como no zen, o cinismo, oral, direto, foi transmitido de mestre para mestre: Sócrates, Antístenes, Diógenes, Crates e Zenão, o fundador do estoicismo.

Coincidências quase literais entre o ensinamento zen e cínico.

Um aforismo zen diz: “hora de comer, comer”.

Laércio reporta de Diógenes que, uma vez, comia em pleno fórum, quando alguém o repreendeu pelo inapropriado do lugar. “No fórum, é que eu tive fome”, respondeu-lhe o cínico.

esta noite

eu corro

nenhuma pedra

pra jogar no cachorro

RYOTA, HAIKAISISTA DO SÉCULO XVIII, DISCÍPULO DE BASHÔ

Inúmeras anedotas zen, com amplo curso nos mosteiros da seita, registram as circunstâncias da iluminação de mestres do passado.

O estudo e a meditação sobre essas anedotas são parte integrante do preparo dos noviços e treinamento dos monges, ao lado dos koans, miniparábolas desconcertantes, atribuídas a autoridades ancestrais.

O preparo mental dos monges zen não é feito através de arquiteturas teóricas ou construções mítico-teológicas conceitualmente elaboradas: o treino zen (a palavra de origem esportiva é mais adequada) é brusco, súbito, violento. Como o “despertar” (satôri, em japonês), que pretende provocar. Ou, pelo menos, propiciar. Satôri, um orgasmo da alma, orgasmo-metamorfose?

Vamos pôr no ringue lado a lado um mestre do Ocidente e um mestre zen.

Deste lado, com as vinte toneladas da sua Summa theologica, o dominicano italiano Tomás de Aquino (1227-74), de origem nobre, campeão da síntese entre a filosofia grega (Aristóteles) e a religiosidade judaica mais profunda (Jesus e os Evangelhos), tal como a Igreja católica a administra há bem dois milênios.

Neste outro lado do ringue, o chinês Hui-Neng (658-713), conhecido pelos japoneses como Enô, sexto (e último) patriarca do zen chinês, o mestre do Sul, da escola da iluminação súbita.

Momento de encontro e confronto entre o zen e o catolicismo não faltou. Foi quando aquele basco Francisco Xavier (século XVI), homem de d. Iñigo Loyola, fundador da ordem jesuíta, aportou no Japão, na esteira das navegações ibéricas, e começou a tentar converter, sozinho, o Império do Sol Nascente à religião de Roma.

Os resultados do encontro foram os mais contraditórios.

Nas cartas que remetia aos superiores na Europa, reportando o andamento da catequese, Xavier se rejubila com a conquista para Cristo de tantas almas simples e com as facilidades do apostolado. Claro. Os jesuítas adotaram no caso do Japão uma estratégia perfeita para a catequese: apresentaram o cristianismo como uma nova seita do budismo, vinda da China! Negócio fechado: milhares de conversões.

Nesse entusiasmo triunfal, nas cartas de Xavier, uma das notas dissonantes: queixas quanto aos adeptos e monges de uma certa seita zen (deve ser a primeira vez que a palavra “zen” aparece na Europa).

De acordo com Xavier, não levam nada a sério, fazem brincadeiras sem parar, zombam, contam histórias absurdas, com grande desprezo por tudo o que é sagrado.

Por outro lado, Xavier granjeou a simpatia e recebeu o apoio de hierarcas zen, como Ninshitsu, superior da seita, que gostou muito do emissário de Loyola, talvez vendo naquele asceta, vestido de preto, alguma coisa tão louca que só podia ser zen.

Xavier fala do amigo:

tenho falado com diversos bonzos ilustrados, especialmente com um que é tido na mais alta estima por todos, pelo seu saber, conduta e dignidade, como pela avançada idade de oitenta anos. Seu nome é Ninshitsu, que em japonês significa “Coração da Verdade”. É uma espécie de bispo entre eles e, se o nome que usa é apropriado, é realmente um homem abençoado… Esse homem tem sido para mim um amigo maravilhoso.

O diálogo entre eles, porém, não deve ter sido muito fácil.

Xavier ficou confuso, logo de cara, ao conversar com Ninshitsu.

O velho mestre zen parecia não saber se “possuía” ou não uma alma. Para ele, era inteiramente estranho o conceito de que “uma alma” era uma espécie de objeto que “alguém” pode “possuir” e até mesmo “salvar”.

Havia um plano no qual nenhuma tradução era possível. Mas, também, havia outro plano.

O fato é que, no Japão, vários missionários jesuítas se tornaram adeptos da cerimônia da arte do chá, num diálogo entre civilizações, muito raro de ocorrer.

Técnicas zen hindus foram sendo introduzidas na China, desde o século II a.C. A tradição gostaria que Bodhidharma, o primeiro patriarca da seita zen, tivesse chegado a Cantão lá pelo século V da nossa era, tendo ensinado, na China do Norte, por meio século. Convenceu seus seguidores a abandonarem todas as escrituras budistas, exceto a “Escritura sobre a entrada de Buda em Lanka”. Esta ensina que o verdadeiro estado de nirvana é o vazio total e que a emancipação do espírito deriva da intuição dessa altíssima, a mais alta das verdades.

A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidharma foi transmitida por muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto, ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste de Peking, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando a mãe, como apanhador e vendedor de lenha.

Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus, traduzidas para o chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.

Essa transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto pessoal e da tigela de pedir esmolas.

Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres zen da época, incluindo os quarenta e três “herdeiros da lei”, que disseminaram seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste asiático, a Coreia e o Japão.

Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A escritura plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro de Ta-fan.

De Hui-Neng, descendem, espiritualmente, Bashô e seu haikai, bem como as artes zen, das quais o haikai se alimentou.

os dôs

Além do treinamento especial em mosteiros tradicionais, sob a direção de mestres experimentados, o zen é acessível, para todas as pessoas, através de “caminhos” (em japonês, , leitura nipônica da palavra chinesa tao, ambas escritas com o ideograma , como na palavra ju-dô).

Esses (ou caminhos) são vias de acesso a uma experiência: através da sua prática, vivem-se circunstâncias zen, circunstâncias em que o zen pode manifestar-se, ocasiões nas quais se torna visível, nas cores dos nossos gestos.

Bashô praticou vários deles.

Os principais: ken-dô (o caminho da espada), kyu-dô (o caminho do arco e flecha), chá-dô (o caminho do chá), chu-dô (o caminho da caligrafia), ka-dô (ikebana, o caminho das flores). E — claro — o haiku (o caminho do haikai), a partir de Bashô, um .

Ele transformou a prática frívola do haikai em caminho espiritual para a experiência zen. Assim como Jigorô Kano, duzentos anos depois, transformou as técnicas de luta corpo a corpo do Japão feudal numa arte chamada judô, hoje esporte olímpico.

1. ken-dô

Todos os povos lutaram com espadas. Nenhum levou o culto da espada tão longe quanto os japoneses.

A kataná (donde vem a palavra portuguesa “catana” = “facão”, trazida das viagens marítimas) era arma decisiva nos combates homem a homem, nas guerras entre os senhores feudais do Japão medieval. Bashô, samurai do barão Yoshitada Todô, devia manejá-la muito bem.

Vamos imaginá-lo adolescente, numa academia de esgrima, treinando com outros jovens samurais, sob a direção de um mestre (um sen-sei, em japonês, aquele que “nasceu antes”).

A prática do kendô se faz com espadas de bambu, rachadas na ponta, para fazer barulho, quando atingem o corpo do parceiro de treino. Com espadas de bambu, o discípulo aprende a se movimentar, a golpear certo, a desviar os golpes e a estar sempre em boa posição.

Em kendô, fundamental o conceito de MA, em japonês, “distância”. De saber jogar com MA depende a performance do espadachim.

Um combate homem a homem com espadas japonesas (mais propriamente um sabre, usado com as duas mãos, mais com o fio que com a ponta, mais cortando que perfurando) acaba muito rapidamente. As espadas não se tocam, como na esgrima ocidental com florete (sobre a qual o filósofo francês René Descartes escreveu um opúsculo, na juventude).

Em meia dúzia de movimentos, o confronto está liquidado, o perdedor mutilado ou sangrando.

Para maior brilho dessa arte, os japoneses desenvolveram extraordinário artesanato na fundição do aço das lâminas e na feitura das espadas.

Uma kataná é uma obra-prima, como objeto: lâmina de aço puríssimo, poder de corte digno de uma navalha, peso, desenho, curvatura, empunhadura perfeitos.

Há museus da espada no Japão. Algumas, assinadas por artesãos célebres, têm nome, como se fossem pessoas. Como a Excalibur, dos cavaleiros do rei Artur.

Um samurai você reconhecia pelas duas espadas que portava ao cinto, a kataná, espada propriamente dita, que definia seu “status”, e a kô-kataná, o pequeno sabre, ambos em luxuosas bainhas.

Eram o último bem de que o samurai se desfazia. Muitos tiveram que trocá-las por arroz, na decadência da classe samurai que acompanhou a ditadura Tokugawa, a introdução das armas de fogo e a ascensão da burguesia mercantil, no Japão dos séculos XVI-XVIII, fechado como o Paraguai do dr. Francia.

O uso da kataná chegou a ser uma arte zen.

Nela, os conceitos de “não pensamento”, espontaneidade, liberdade natural do corpo para se mover conforme sua própria lógica, lógica que não difere da lógica das coisas, a queda da pedra, a transformação da flor em fruto, a vitória da água sobre os outros elementos, no kendô, o zen achou um lugar para manifestar-se.

Junto com as manhas e destrezas no manejo da espada, o kendô-ka assimilava toda uma doutrina espiritual: “não prestar atenção em sua própria espada […]. Não prestar atenção na espada do outro […]. Não interromper o fluxo das coisas com o ego”.

O ken-dô chegou a produzir sua própria teoria, em termos de conceito, de palavra. Estamos nos referindo a um dos mais extraordinários textos zen, que o Japão nos legou, a chamada “Carta sobre a compreensão imóvel”. Trata-se de uma carta enviada por um mestre desconhecido a Takuan, instrutor de esgrima do século XVII.

Quando um adversário te desafia para lutar e todo o teu sentido converge sobre a tua espada, deixas de ser senhor dos teus próprios movimentos, ficando escravo dos movimentos dele. Chamo a isso servidão, visto que te deténs num único ponto. Se tua atenção, por um instante sequer, estiver presa à espada na mão do adversário ou à tua própria espada, enquanto ponderas como deves brandi-la, ou à personalidade, à arma, ao alvo ou ao movimento, dás ao adversário uma vantagem e ele poderá atingir-te. Não deves também te preocupar com a oposição entre ti e o adversário, senão é outra vantagem para ele. Sobretudo, pensar em ti. Em cada um de nós, existe algo que se chama “compreensão imóve”. É isso que deves exercitar.

Imobilidade não quer dizer ficar parado como uma pedra ou um tronco de árvore sem entendimento. A compreensão imóvel é o que há de mais ágil no mundo, está pronta a assumir todas as possíveis direções e não tem nenhum ponto de paragem.

Imóvel significa sem excitação, significa não fixar nem deter a atenção num único ponto, impedindo-a, assim, de se voltar para outros pontos que se seguem continuamente. Ali está uma árvore, com tantas hastes, ramos e folhas. Se a tua mente se detiver numa das folhas, não vais poder ver todas as outras, mas queremos poder ver cada uma das suas folhas. Para isso, não devemos parar em nenhum ponto que se desintegre da sequência do existente.

Nenhuma dúvida que Bashô tenha praticado o kendô nos anos mais impressionáveis de sua vida. Ele era da “escola das facas”.

Como conciliar o kendô, arte de matar, com o zen, afinal, uma manifestação do budismo, que prega o respeito absoluto à vida (budistas não matam nem mosquitos)?

Não é fácil enxergar o kendô nos poemas de alguém tão feminino como esse Bashô, que chorava ao se separar de seus discípulos.

A espada, porém, está lá.

Na exatidão. Na economia. Na precisão do corte. “Uma faca só lâmina.”

 

Image

“Poesia é coisa de mulheres, indigna de um guerreiro. Um homem nascido
samurai deve viver e morrer, espada na mão” (Koba Yoshimasa, general japonês
do século xvii). Neste desenho de Bashô, o samurai é representado de maneira
grotesca, bufa, paródica, muito ao modo de zen. A truculência do guerreiro,
armado de espadas, alabarda na mão, é ironizada por um traço circense,
“ingênuo”, felliniano.

2. kyu-dô

Como o Caminho da espada, o do arco e flecha (kyu-dô) é outra arte marcial que serve de suporte para a experiência zen.

Sobre esse Caminho, dispomos de um testemunho excepcional, o livro Zen na arte dos arqueiros, do filósofo alemão Eugen Herrigel. Herrigel foi para o Japão lecionar filosofia.

Ouviu falar em zen. Soube que o zen só se vivencia através da experiência.

Soube que a arte do arco e flecha era uma das artes zen. E foi praticá-la, baseado no vago fato de que era bom atirador de carabina em caçadas na Baviera.

O que Herrigel encontrou, sob a direção do mestre Kanzo Awa, era bem diferente.

Jamais imaginaria que tanta coisa pudesse se esconder entre o desejo, o arco e flecha e o alvo.

Desde o começo do aprendizado, que Herrigel relata minuciosamente, Awa vai introduzindo, a flechadas, o filósofo alemão num estranho universo espiritual, que não se distingue da técnica de disparar flechas num alvo.

Herrigel passa por toda uma mudança de gestos e hábitos respiratórios, até se tornar capaz de manejar o arco e flecha de modo espontâneo.

Primeiro, descobre que acertar no alvo ou na mosca não é a meta: é consequência natural da assimilação do método, baseado no relaxamento, na concentração desconcentrada, na não intenção.

Awa a Herrigel: “Não pense no que tem que fazer, não reflexione em como fazê-lo. O tiro só se produz suavemente, quando toma o arqueiro de surpresa”.

De flecha em flecha, Herrigel começa a entender.

Samurai, Bashô deve ter sido exímio arqueiro.

Do kyu-dô, guardou a pontaria certeira. A calma em disparar. O tiro na mosca.

3. chá-dô

A tradição representa Bodhidharma, o primeiro patriarca do zen chinês, como homem de aspecto feroz, com espessa barba e olhos muito abertos e penetrantes (“andava como um boi e olhava como um tigre”). Adormeceu, uma vez, em meditação, e ficou tão furioso que cortou as pálpebras, que, ao caírem no chão, deram origem à primeira planta do chá. Desde então, o chá tem proporcionado aos monges zen uma proteção contra o sono, nas longas sessões de meditação, e de tal modo esclarece e revigora a mente que já foi dito, com elegante trocadilho, em chinês: “o gosto do zen (ch’an) e o gosto do chá (ch’a) são o mesmo”.

O uso do chá, introduzido, no Japão, por monges zen, no século XII, logo foi sendo formalizado numa cerimônia altamente ritualizada, chamada chá-no-yu.

A cerimônia do chá é muito simples e, ao mesmo tempo, muito complexa. Alguém convida quatro ou cinco amigos. Estes se reúnem em volta de uma chaleira de água fervendo.

O dono da casa distribui os utensílios para o consumo do chá.

A água fervendo é derramada sobre a planta, que todos sorvem, em silêncio e tranquilidade.

Por trás de toda essa simplicidade, inúmeras sutilezas.

O lugar da casa onde se pratica chá-no-yu deve ser especial e disposto de certa maneira. Os utensílios usados para a cerimônia (taças, chaleiras, colheres) devem ser obras de arte, de preferência assinadas por artesãos famosos.

Harmonia, respeito, pureza e tranquilidade, as qualidades da arte do chá.

Todô Shinshirô, o senhor a quem Bashô, jovem samurai, servia, era devoto da arte do chá. Com sua morte, Bashô foi para Kyoto, onde a arte estava sendo profundamente praticada.

Blyth: “o modo como um mestre do chá caminha, sua inconsciência, seu andar-como-se-não-estivesse-andando, era o que Bashô queria atingir no haikai”.

4. haiku-dô

Quão longe nos é dado ver, o tema central do zen é a superação das dualidades. A dissolução dos maniqueísmos. A síntese dos contrários. Além do bem e do mal. Do sagrado e do profano. Do espiritual e do material. Do transcendental e do imanente. Do aqui e do além. Isso, Matsuó Bashô procurou em seus haikais. Neles, a mais funda espiritualidade manifesta-se nos eventos mais vulgares.

Os pensamentos mais sutis revelam-se nas condições mais materiais. E a mais alta poesia, nas circunstâncias mais pedestres e corriqueiras. Assim, Bashô transformou uma prática de texto, uma produção verbal, em “caminho” para o zen, a mais extraordinária aventura espiritual do bicho homem.

O caminho do haikai, arte zen, parece um contrassenso nesse zen tão não verbal. Exatamente por isso desconfiamos que o haikai, talvez, não seja escrito em palavras.

Duvidamos até que seja escrito.

Ele é inscrito. Desenhado. Incrustado, como um objeto, em outro sistema de signos.

Palavras mais que palavras: gestos, vivências, coisas em si.

5. zen

Existe uma relação muito direta entre zen e poesia. Entre zen e arte. O zen parece ser uma “religião” de artistas e poetas.

Coloco “religião” entre aspas, porque essa palavra, que, em latim, quer dizer “re-ligação” (religio), é ocidental demais para designar, por exemplo, o conjunto das crenças hindus, onde há correntes ateias, até o budismo, que é, quanto a deuses, agnóstico. A norma, no Extremo Oriente, é o sincretismo.

Um japonês da Era Clássica, como Bashô, era, ao mesmo tempo e sem conflitos, budista, confucionista e xintoísta.

A exclusividade de uma confissão religiosa é produto tipicamente semita, judaico, cristão, islâmico. As três grandes religiões do Ocidente são excludentes. “Não admitirás outros deuses, ao lado de Javé, Jesus, Alá.”

Bem mais plásticas são as coisas no Extremo Oriente.

O zen (chinês) resulta da interação entre o budismo hindu e o taoismo sínico. No Japão, esta doutrina não teve dificuldade em assimilar os valores animistas do shintô nipônico, culto das forças da natureza, onde todas as entidades naturais (árvores, rios, montanhas, ventos, praias) são kámi, “deuses”.

Ponto de confluência de inúmeras “religiões”, ponto-diamante, o zen é uma fé de artistas. Uma fé que valoriza, absolutamente, a experiência imediata. A intuição. O aqui e agora. A superfície das coisas. O instantâneo. O pré ou post-racional.

acenda a luz de leve

eu lhe mostro uma beleza

a bola de neve

BASHÔ

Conforme a tradição, Bashô teria tido, em vida, três mil discípulos.

Depois de sua morte, a mínima forma a que conferiu uma chispa definitiva tomou conta do Japão e extravasou até o Ocidente, onde aportou em fins do século passado.

Seu advento se deu com o das gravuras japonesas, que tanto influenciaram os impressionistas da Europa, com fundas marcas na gênese da chamada “arte moderna”, a meio caminho entre a abstração e o figurativo, feita mais de vazios e lacunas do que de massas e superfícies.

As minúsculas pegadas do haikai são visíveis no imagismo inglês, liderado por Ezra Pound nos anos 1920. Franceses, ingleses, alemães e até latino-americanos o praticaram na alvorada do século XX.

Em 1919, o mexicano Tablada publica sua coleção de haikais: Un día

É de suspeitar odores nipônicos no “imagismo” de García Lorca e na brevidade aforismática do poeta espanhol Antonio Machado.

No Brasil, o haikai disse ô-hayô com o modernismo de 1922.

Por via francesa, evidentemente.

Tiveram caso com ele, nos anos 1920, entre outros, Afrânio Peixoto, Ronald de Carvalho e, principalmente, Guilherme de Almeida, que bolou para o haikai uma forma brasileira, chumbada numa estrutura fixa de rimas, como se fosse um microssoneto parnasiano.

Difícil não desconfiar, de resto, que os poemas-minuto de Oswald de Andrade, micromomentos de superinformação, não tenham inspiração no haikai, que Oswald, claro, conhecia, em versão francesa ou através de contemporâneos e colegas de agitação.

Nos anos 1930, até a celebérrima pedra no caminho de Drummond traz consigo um certo perfume zen, que acusa, lá atrás, o haikai de Bashô.

Nem faltam registros de livros de haikai brasileiros nos anos 1940. Nos anos 1950, o haikai encontrou-se com a poesia de vanguarda: no concretismo paulista. De comum entre eles, a ênfase na síntese, na brevidade, na inventividade de linguagem.

Poucos criadores brasileiros, porém, prestaram tantos serviços à forma cultivada por Bashô quanto Millôr Fernandes. Não contente em popularizar a palavra “haikai”, Millôr ainda produziu alguns dos melhores espécimes no gênero, entre nós.

Via Millôr, o haikai é uma das formas do humor brasileiro de hoje, ao lado do cartum, do “picles” e da frase de efeito.

Em Millôr e seus discípulos, prevalece, é claro, o elemento humorístico sobre o lírico. Mas esses dois elementos não são tão distantes assim.

Na poesia brasileira escrita nos anos 1960, por sobre as diferenças, a grande semelhança: a preferência pela expressão breve, aforismática, afim ao grafite, ao título de propaganda, ao slogan.

Os distintos cavalheiros e damas presentes terão, agora, a oportunidade de apreciar um grande pequeno espetáculo: um desfile, em arquipélago, de haikais.

Todos os micropoemas são, igualmente, candidatos ao prêmio luxo e ao troféu originalidade.

Com os senhores, os descendentes de Bashô.

o vaga-lume

— ó,

quase eu disse

mas estava só

TAIGI, SÉCULO XVIII

pobre sim pobre pobre pobre

a mais pobre das províncias

mas sinta essa brisa.

ISSA, SÉCULO XVIII

nuvem de mosquito

atrás dela

    quioto

ISSA

no pântano da montanha

nada se move

na manhã de neve

CHIYO-NI, SÉCULO XVIII, CONSIDERADA A MAIOR HAIKAISISTA DO JAPÃO, TRADUÇÃO DE ALICE RUIZ

outono a tarde cai

penso apenas

em minha mãe e meu pai

BUSON, SÉCULO XIX

de mim

inscrevam aqui

adorava

haikai e caqui

SHIKI, SÉCULO XIX

numa estação do metrô

A aparição dessas caras na multidão;

Pétalas num galho úmido, escuro.

EZRA POUND

Folhinhas.

Linhas. Zibelinas só-

zinhas.

MAIAKÓVSKI,

TRADUÇÃO DE AUGUSTO E HAROLDO DE CAMPOS

América do Sul

América do Sol

América do Sal

OSWALD DE ANDRADE

Lava, escorre e agita

A areia. E enfim, na bateia,

Fica uma pepita.

GUILHERME DE ALMEIDA

Stop.

A vida parou.

Ou foi o automóvel?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

ao vento que ruge

Que sílaba você investiga,

Vocalissimus,

Nas distâncias adormecidas?

Diga-a

WALLACE STEVENS

estrela errante

Fugaz como o instante em que a miro,

une o céu à terra

e a seu pranto de ouro meu suspiro.

JOSÉ JUAN TABLADA

chove

Em que ontem, em que pátios de Cartago,

Cai também esta chuva?

JORGE LUÍS BORGES

Ontem

em tua cama

Éramos três:

Você eu a Lua

OCTAVIO PAZ

Quis gravar “Amor

No tronco de um velho freixo:

“Marília” escrevi.

MANUEL BANDEIRA SOBRE UM VERSO DE

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Tivemos uma troca de palavras

Mesquinhas

Agora eu estou com as dele

E ele está com as minhas

MILLÔR FERNANDES

jardim japonês

(o signo com vida em si)

convida a viver

PEDRO XISTO