A NOITE
ME PINGA UMA ESTRELA NO OLHO
E PASSA
Magra é a safra de um poeta de haikai.
Já não bastasse a extrema escassez de meios que essa forma implica, algumas palavras, alguns buracos, o haikai demanda dias e dias de brisa e mormaço, birita e desempenho, desespero e euforia, namoros e despedidas, só os piores e os melhores pedaços da vida.
Um belo momento, pinta:
saudades desfraldadas
nunca esqueço vocês
em minhas orações subordinadas
O fenômeno pode ocorrer em papel nobre ou vil, cobre ou madeira, colomy ou sulfite, pele humana ou talão de cheque, fita magnética ou memória de namorado, não sendo raro que se dê em guardanapos de bar.
Nesses casos, meus caros, pode desaguar nisto:
— garçom, mais uma dose!,
coração doendo
de amor e arteriosclerose
Nem sempre é bem assim.
Periga suceder que tenha acontecido alguma coisa no quintal que todo poeta de haikai tem que ter.
Assim, ó:
verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida
Ah, haikai, doce como um amigo, bem-vindo como um aumento, amargo feito um soneto, quantas horas te cacei, vaga-lume bêbado.
Enfim, apanhei-te, cavaquinho!
pra que cara feia?
na vida
ninguém paga meia
Prezado haikai, venho por meio desta entrecortada convidá-lo a participar da minha próxima festa, que terá lugar no momento e ocasião que você achar mais oportuno.
Sendo só o que se apresenta no momento etc.
Uma semana, um mês, um ano não dão para a saída: nada passa igual a um dia.
De repente, por dentro de um dia, passa um haikai, que acabou de roubar a alma de um instante, como se roubaria um beijo, se o tempo fosse uma mulher bonita.
Ou:
soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento
Isto é:
a chuva é fraca
cresçam com força
línguas-de-vaca
Certas coisas são fatais. Viver exige muitos haikais.
Este, por exemplo, é absolutamente indispensável:
NUVENS BRANCAS
PASSAM
EM BRANCAS NUVENS
Sobretudo, se escrito em letras brancas num papel transparente ou vidro. Ou esquecido, logo depois de lido.
A viagem mais para fora é a viagem mais para dentro.