a escritura crística

 

Nada está oculto, que não venha a ser revelado, nem tão secreto que não venha a se saber.

O que digo a vocês nas trevas, digam na luz, e o que vocês ouvem, ao pé do ouvido, proclamem sobre os telhados.

MATEUS, 10,27

Como se percebe, o título deste capítulo é totalmente inadequado. Primeiro, porque Jesus não deixou nada escrito. Tudo o que se sabe de seus feitos e ditos foi transmitido pela tradição oral, enfim registrada em evangelhos.

Depois, porque o nome “Cristo” é grego: com certeza, Jesus, falante do aramaico, jamais ouviu essa palavra, que é, apenas, a tradução do vocábulo hebraico meshiah, “o ungido”, “o consagrado com óleo”, como Davi foi ungido rei pelo profeta Samuel.

Já no nome pelo qual é mais conhecido indicam-se as duas direções de sua doutrina.

Seu nome mesmo, Jesus, é judeu. E isso o reporta às suas origens, à fé tradicional do povo em que nasceu.

A palavra grega “Cristo” transporta a mensagem de Jesus até um mundo muito mais amplo, o universo das cidades helenísticas, entre as quais se pode incluir, comodamente, Roma, a cidade senhora do mundo ocidental civilizado por volta do ano I da era cristã, esse mundo que girava em volta do Mediterrâneo. Jesus (o cristianismo) é a tradução de uma palavra aramaica para o grego.

No meio-dia do poder romano, entre as cidades gregas da bacia do Mediterrâneo, o aramaico era algo assim como o guarani do Paraguai, o quêtchua e o aymará dos Andes ou o basco na Europa, em nossos dias um calão qualquer, falado por povos sem importância.

Não para aí o mistério.

Jesus não falava claro. Nabi, profeta, falava por parábolas. Vale a pena saber que parábola, em grego, quer dizer “desvio do caminho”. O essencial das mensagens de Jesus está longe de ser transmitido por cadeias de raciocínios. Mas através de “estórias paralelas”, as parábolas, unidades poéticas e ficcionais, capazes de irradiar significados espirituais e práticos, abertas à exegese, à explicação, à liberdade. Jesus, Joshua Bar-Yosef, pensa concreto.

Daí a duração do seu pensar, constituído pela infinitude de interpretações de suas elementaridades doutrinárias.

Admire-se, por exemplo, a formosura da parábola do semeador, a primeira relatada por Mateus.

Naquele dia, saindo Jesus de casa, sentou-se à beira do mar. E juntou-se em volta dele uma multidão de gente, de forma que Jesus teve que subir numa barca e sentar-se nela.

A multidão estava de pé na praia.

Falou-lhe muitas coisas por parábolas, dizendo:

O semeador saiu a semear.

Parte da semente

caiu ao longo do caminho,

vieram as aves do céu

e comeram-na.

Parte caiu na pedra,

não tinha terra,

nasceu, veio sol e secou.

Parte caiu entre os espinhos,

os espinhos a sufocaram.

Parte, enfim, caiu em terra boa

e deu frutos,

cem por um, outros sessenta por trinta.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Não se sabe o que admirar mais aqui.

Mas merece destaque o contraste entre um Jesus falando, de uma barca no mar, sobre alguém que semeia na terra.

Na circunstância desta parábola, um mistério nos hipnotiza.

Concretamente, nela, Jesus flutua sobre as águas, falando da terra.

Água. Terra. Pescar. Semear. Jesus fala por elementaridades: numa palavra, fala coisas.

Na parábola do semeador, Jesus fala, na realidade, dos efeitos e consequências da pregação de sua palavra.

A semente, aí, é metáfora e imagem da palavra.

O mais estranho vem a seguir: “e chegando-se a ele, os discípulos disseram: por que lhes fala em parábolas?”.

A vocês, é concedido

conhecer os mistérios do reino dos céus,

a eles, não.

Pois a quem tem, vai ser dado,

e abundará.

De quem não tem,

até o que tem

vai ser tirado.

Por isso, falo a eles por parábolas.

Para que, vendo, não vejam.

E, ouvindo, não ouçam

nem compreendam.

Assim se cumpra neles a profecia de Isaías:

ouvindo de ouvir, não vão entender,

e, videntes, vendo, não vão ver.

A parábola é um gênero oriental, encontradiço entre todos os povos da Ásia, a revelação de verdades abstratas através da materialidade de uma anedota, uma unidade ficcional mínima. Aquilo que Joyce chamava de “epifania”.

Uma epifania é uma manifestação espiritual e, especialmente, a manifestação original de Cristo aos reis magos. Joyce acreditava que esses momentos chegam para todos, se somos capazes de compreendê-los. Às vezes, nas circunstâncias mais complexas, levanta-se repentinamente o véu, revela-se o mistério que pesa sobre nós e manifesta-se o segredo último das coisas.

Harry Levin, James Joyce: A Critical Introduction [Norfolk, Conn.: New Directions, 1960].

As parábolas de Jesus são epifanias (em grego, “sobreaparições”), nós de histórias donde se desprende um princípio geral.

Assim fez Confúcio. Assim fez o autor do Gênesis. Assim fizeram os cínicos gregos. Assim fizeram os rabinos. Assim fizeram os gurus da Índia. Assim fizeram os sufis do islã.

Esse procedimento de revelar ocultando tem um sabor, indisfarçavelmente, zen.

Por isso, Jesus diz:

Graças te dou meu Pai,

senhor do céu e da terra,

porque escondeste estas coisas

aos sábios e doutores

e as revelastes aos pequenos.

Intriga, em Jesus, ao lado de um processo de re-velação, um de velação.

De ocultamento da doutrina. De despistamento.

As parábolas de Jesus são ícones. E, na família dos signos, ícones são signos produtores de informação, signos emissores.

Há dois mil anos, extrai-se significado das parábolas atribuídas a Jesus pelos evangelhos. Nem é outra coisa que estamos tentando fazer aqui.

“Quem tiver ouvidos de ouvir, ouça.” A linguagem de Jesus é cifrada.

É a linguagem de um nabi, um profeta, como tantos que o povo de Israel produziu, a linguagem de um poeta, que nunca chama as coisas pelos próprios nomes, mas produz um discurso paralelo, um análogo, que os gregos chamavam parábola, “desvio do caminho”.

Essa linguagem paralela rima com o anúncio de um eminente (e paralelo) “reino de Deus”, frequente entre os profetas da Bíblia: a profecia de Abdias, talvez o mais antigo profeta cujo texto chegou até nós, termina falando no meluchah Adonai, em hebraico, o reino de Deus, tema central do discurso de Jesus, a escritura crística.

Nisso, Jesus estava sendo, talvez, fiel a uma tradição hebraica.

Olhando bem, os judeus substituíram a idolatria das imagens e simulacros pela idolatria a um texto: a Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés. A análise linguística não confirma: os cinco primeiros textos do Antigo Testamento, para os especialistas, parecem ter tido sua redação final por volta do século VII a.C. (Moisés deve ter vivido em torno do ano 1200 a.C.). Nada obsta, porém, que um material mais antigo tenha sido manipulado por mãos posteriores: movemo-nos num território muito judaico, em que textos remetem a textos e mensagens servem de contexto a outras mensagens.

Isso, no entanto, de Jesus recorrer ao enigma nunca deixa de evocar a cabala, um dos três pilares sobre os quais repousa a sabedoria de Israel.

Os outros são a Torá e o Talmude (e a Mishná).

Aquilo que católicos e protestantes chamam de “Antigo Testamento”, para os judeus é o Tanach, sigla que designa (T) a Torá, (N) Naviim, os profetas, e (Ch) Chetuvim, os escritos, os livros históricos, sapienciais e líricos.

No Tanach, a Torá desfruta de um status especialíssimo: são os livros de Moisés, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, na tradução grega, o fundamento da fé judaica, a essência da crença.

O Talmude (e a Mishná) congregam as doutrinas de rabinos posteriores, que regulam a mitzvah, o modo de viver que faz um judeu.

Até à minúcia, o Talmude legisla sobre vida e morte, sobre o dia a dia, até a guarda do sábado. Obra de gerações de rabinos, há dois Talmudes, que regem o judaísmo, até nossos dias. Torá. Talmude. Cabala.

Sobre a cabala, é mais difícil falar.

A palavra vem de um radical que quer dizer “transmitir”: cabala quer dizer “a transmitida”.

É a tradição oral de Israel, aquela que não foi escrita, porque não pode ser escrita.

A tradição cabalística parece ter passado de boca a boca, de geração em geração, de rabino a rabino, de gueto a gueto.

Essencialmente, parece consistir na leitura dos textos da Torá, a partir de processos combinatórios codificados.

Evidente que a prática da cabala só é acessível a quem dominar a língua hebraica.

Um dos processos cabalísticos mais simples é o da leitura invertida. O alfabeto hebraico, derivado, como o grego, da escrita fenícia, tem uma ordem, que reflete, em linhas gerais, a ordem do nosso A-B-C. Imaginemos, agora, cabalisticamente, que a série das letras do ABC correspondesse a letras do A-B-C invertido.

Assim:

A B C D E F G H I J L M N O P Q R S T U V X Z

Z X V U T S R Q P O N M L J I H G F E D C B A

Neste código, A se refere a Z. C é V. F vira S. E assim por diante. Este, o código mais elementar.

A cabala, porém, prevê codificações mais complexas. Com alternâncias dois a dois. Três a três. E, aí, até o infinito.

Fazendo estas trocas conforme os esquemas cabalísticos, os rabinos descobriam subsentidos e significados ocultos, no texto sagrado: lendo de trás para diante, alterando a ordem das letras, permutando, des-lendo.

Evidentemente, o exercício da cabala só é possível numa língua semita, onde todas as palavras têm um radical trilítero, constituído, basicamente, de três consoantes, que dão o sentido geral da raiz.

A cabala, basicamente, é um jogo com estas três letras de cada radical. Digamos o radical semita para “matar”, em árabe e hebraico: QaTaL. Lido ao contrário, é LaTaQ, “proteger”.

O rabino cabalista, ao ler uma frase na Torá com a palavra “Qatal” a lia ao inverso, lendo sentidos ao contrário.

Assim, o texto dos livros sagrados diz muitas coisas ao mesmo tempo. A críptica escritura crística parece apontar para esta tradição cabalístico-esotérica, onde a verdade é apanágio de poucos.

“E apareceram os fariseus, que começaram a disputar com ele, pedindo-lhe, para o tentar, um signo no céu.”

Jesus tirou um suspiro do coração e disse:

Por que esta geração

pede um signo?

em verdade vos digo,

a esta geração

não será dado signo.

A declaração é tanto mais estranha quanto, nos evangelhos, Jesus vive fazendo milagres, signa, prodígios, que demonstram sua força sobrenatural. São, na maior parte, milagres médicos ou econômicos: cura de doenças (cegueira, surdez, paralisia) ou multiplicação de alimentos (pão, peixe, vinho), o que bem situa Jesus em seu universo de gente miúda, sempre às voltas com a penúria ou a moléstia.

De qualquer forma, os signos foram dados.

E, quase dois mil anos depois, estão longe de parar de rolar. De desistir de sua capacidade de serem interpretados.

Chegando a Betsaida, trouxeram-lhe um cego e suplicavam-
-lhe que o tocasse. E, tomando o cego pela mão, conduziu-o fora da aldeia e, pondo-lhe saliva sobre os olhos e impondo-
-lhe as mãos sobre a cabeça, perguntou-lhe se enxergava alguma coisa. O cego, levantando os olhos, disse: vejo as pessoas andando como árvores.

Depois, Jesus impôs-lhe, novamente, as mãos e ficou completamente bom, vendo claramente todas as coisas. E Jesus mandou-o para casa, dizendo:

Vai para tua casa,

e se entrares na aldeia,

não digas nada a ninguém.

Esse cuidado com o sigilo acompanha a pregação e a trajetória do “Filho do Homem”.

Esse exclusivismo fariseu e essênio transparece no episódio da mulher fenícia, não judia, que o procura, para ouvir dele:

O pão foi feito

para dar aos filhos,

não aos cães.

Há traços de ferocidade na escritura crística, o jeito de Jesus fazer as coisas, bastante discrepante das adocicadas versões das Igrejas que dele saíram e o administraram.

Quem disse não vim trazer a paz, vim trazer a espada, não estava brincando em sua brabeza beduína.

A saudação semita, hebraica e árabe, é “paz”: shalom, salâm. Perfeitamente possível imaginar que Jesus tenha afirmado a espada, diante do shalom de um amigo ou discípulo.

Este que diz que veio trazer a espada é o mesmo celerado que devastou as mesas e balcões dos vendilhões do templo, os pequenos mercadores e “camelôs” que vendiam na entrada do templo de Jerusalém. E o mesmo disse, falando de João, o Batista: “desde os dias de João Batista até agora, o reino de Deus adquire-se à força, e só os violentos o conquistam”.

Essa violência de Jesus, camuflada, escamoteada e maquilada pelas Igrejas, traduz-se na linguagem do filho de José.

De acordo com os evangelhos, Jesus adorava jogos de palavras.

Inúmeros momentos de sua vida e militância são marcados por trocadilhos.

Ao convidar os pescadores do mar da Galileia a segui-lo, disse: “farei de vocês pescadores de homens”.

E ao escolher seu sucessor, Simon Bar-Jona, deu-lhe o nome de Quefas = “pedra”, em aramaico, “Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra, edificarás a minha igreja”, paronomástico veio que, no século XX, foi radicalizado, no Finnegans Wake, pelo irlandês e católico James Joyce.

A escritura crística está muito presente, nessa prosa máxima da modernidade, gigantesca e monstruosa parábola que conta a história da queda de um pedreiro irlandês (“the pftjschute of Finnegan”) e sua subsequente ressurreição no velório, quando gotas de uísque dos convivas tocam seus lábios.

Oh, it will be lots of fun at Finnegan’s Wake”, “vai ser uma farra quando Finnegan despertar”, diz a canção do Eire.

Para Joyce, a queda de Finnegan do alto do muro é emblema da queda de toda a humanidade, depois do pecado de Adão, legenda fundamental da mitologia judaico-cristã.

Para Joyce, essa queda, porém, é uma felix culpa, no dizer de Agostinho, “uma culpa feliz”: por causa dela, Deus se encarnou e o princípio de inteligência que rege o universo confundiu-se com essa modalidade de macaco que chamamos homem. A Encarnação é o mistério supremo da cristandade, a humanização de Deus e/ou a deificação do homem.

Quando Marx falou em “… o homem ser deus do homem”, estava ecoando o tema crístico por excelência.

Não pode haver trocadilho maior do que entre Deus e homem: por isso, o trocadilho é o recurso fundamental no Finnegans Wake, a ressurreição do homem comum.

Nem passa despercebida a relação entre Finnegan, o pedreiro, e Pedro, a pedra sobre a qual Jesus, em elegantíssima paronomásia, edificou sua “eclésia”.

O Wake é todo percorrido pela presença de Patrick, são Patrício, o apóstolo da Irlanda, o missionário beneditino que converteu os irlandeses ao cristianismo no século VII, dos quais foi o primeiro bispo.

O olho/ouvido trocadilhesco de Joyce percebe a similaridade dos nomes de Pedro/Patrick, brincando com ela, a partir da forma inicial “thuartpeatrick”, “you are Peter/Patrick”, “tu és Pedro e sobre essa pedra…”, na abertura do Wake.

Essa críptica escritura crística traduziu-se, no cristianismo primitivo, pelo modo como os primeiros cristãos, perseguidos, se identificavam e, esotericamente, se comunicavam: através do desenho de um peixe, querendo dizer, em grego, ikhtys = “peixe”.

Talvez, haja aí a alusão à condição de pescadores dos primeiros apóstolos, discípulos diretos de Jesus.

Na realidade, trata-se de um signo muito complexo, um logogrifo, acróstico, no qual as letras da palavra grega para “peixe” significam I (Iésus, “Jesus”), Kh (Khristós, “Cristo”), T (Theou, “de Deus”), Y (Yiós, “filho”) e S (Sóter, “Salvador”).

O desenho de um peixe, assim, para um cristão dos primeiros tempos, das cidades gregas que bordavam o Mediterrâneo, significava e dizia Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador.

No universo das charadas, esse peixe-Cristo é um “rêbus”, um hieróglifo, um polissigno críptico, que quer dizer (e diz) muitas coisas ao mesmo tempo.

Na ambiguidade pisciana das palavras, Jesus se movia como um peixe na água.

Nem é impertinente lembrar que, na tradição astrológica, Jesus é do signo de Peixes, embora seu nascimento lendário em 25 de dezembro faça dele um filho do signo de Capricórnio.

A multiplicação dos peixes, um dos milagres mais célebres de Jesus, é, no fundo, a multiplicação infinita dos significados.

A melhor parte da mensagem de Jesus é transmitida através de parábolas e trocadilhos, recursos de arte que só um poeta, como um profeta de Israel, podia produzir.

É minha crença que Jesus concentrou toda a sua doutrina em parábolas, tudo o mais, axiomas, teorias, conceitos sendo interpolações e comentários posteriores.

Dito isto, não tenho muita certeza: obscura, por natureza, a escritura crística, o discurso de Jesus, melhor dizendo.

A quem vou comparar esta geração? Ela parece as crianças sentadas nas praças, que dizem aos seus camaradas:

Cantamos pra vocês,

vocês não dançaram.

Choramos, choramos,

vocês não choraram.

Evidente que, aí, Jesus reproduz a cantilena de uma brincadeira infantil da Galileia.

Ninguém nunca soube direito o que Jesus queria dizer.