jesus macho e fêmea

 

 

 

 

“E soprou o Senhor Adonai um sono sobre Adão: quando dormiu, tirou uma de suas costelas e encheu o lugar com carne. E da costela que tirou de Adão o Senhor Adonai edificou a mulher.” Nesse mito do Gênesis, o fundamento metafísico do rigoroso patriarcalismo semita (hebreus e árabes).

Notável na estrutura do mito da origem de Eva é que ele constituiu uma inversão da realidade: biologicamente, é o homem que sai da mulher, não a mulher do homem.

Curiosamente, o Gênesis, ainda por cima, referenda o mito com uma pseudoetimologia, um argumento filológico, fundando o mito no próprio tecido morfológico da linguagem.

“E ela se chamou ‘mulher’ porque do ‘homem’ foi extraída.”

Em hebraico, homem é isch, mulher, ischah: nenhuma dúvida, ischah é uma forma derivada de isch

O patriarcalismo falocrático, próprio dos pastores nômades, que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua tradução mais literal na poligamia, regime no qual a mulher desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma fração de um harém. Os antigos hebreus e o judaísmo posterior são fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o islã, derivados diretos da fé de Moisés.

Nesses três credos (no fundo, um só), a mulher não tem acesso às funções sacerdotais: os intermediários entre o sacro e a humanidade são rabinos, padres, ulemás.

Isso vem de muito longe.

No livro do Gênesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus (Abraão, Isaac, Jacó) têm muitas mulheres, como cabe a um próspero sheik do deserto.

Como distinguir o esplendor do reino de Salomão, sem lembrar as setecentas mulheres do seu harém, entre as quais brilhava, inclusive, uma filha do faraó do Egito?

Nesse universo patriarcal, falocrático, poligâmico, a mulher só pode ter uma existência, uma condição ontológica rarefeita, essencialmente subalterna, secundária, menor, algo entre os camelos e rebanhos e os humanos plenos, que são os machos.

Daí os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a sodomia, instâncias de aguda feminilização do homem, punidos com a morte.

Por isso mesmo, espanta o registro da saga de várias mulheres, entre os antigos hebreus, tal como os apresenta o Antigo Testamento: Míriam, irmã de Moisés, Judite, Rute, Ester.

Antes dos reis Saul e Davi, os hebreus eram regidos pelos shofethim, “juízes”. Um desses juízes foi Débora, uma mulher que dirigiu o povo hebreu durante os duros tempos da ocupação da Palestina contra os filisteus que a habitavam (uma antepassada de Golda Meir?). Um shofeth era, ao mesmo tempo, um líder militar e a suprema autoridade judiciária entre as doze tribos em que se dividiu o povo hebreu na conquista de Canaã/Palestina.

Como explicar a presença de uma mulher exercendo um cargo dessa importância numa sociedade onde o fálus é o cetro e a coroa apenas uma hipérbole da glande?

No Livro de Josué, Débora é chamada de “profeta”: uma mulher podia ser nabi, em Israel.

Essa anomalia talvez se explique pela permanência de resquícios matriarcais-tribais entre os hebreus. Talvez se trate da infiltração de valores egípcios: na terra donde Moisés tirou seu povo reinou Hatsepschut, faraó-mulher, que a tradição grega, através do historiador Heródoto, chamou de Nitócris.

Os gregos da era clássica, aliás, sempre se espantaram com a liberdade de movimentos de que desfrutava a mulher no Egito, mais um dos absurdos desse povo cujos costumes soavam tão estranhos aos ouvidos helênicos.

Nos tempos de Jesus, a situação da mulher hebreia não deve ter melhorado muito, embora a poligamia dos tempos patriarcais pareça ter quase desaparecido, substituída pela monogamia, pelo menos entre as classes mais modestas.

Complexas as relações de Jesus com as mulheres.

Parece que sua doutrina e sua presença exerciam grande fascínio sobre elas.

Marcos descreve a cena logo depois que Jesus, crucificado, morreu, “dando um grande grito”.

Ali estavam também algumas mulheres que olhavam de longe, entre as quais Maria Madalena, e Maria, a mãe de Tiago o Menor e de José e Salomé, as quais, estando ele na Galileia, o seguiam e o serviam e muitas outras que com ele tinham subido a Jerusalém.

Seguiam-no e o serviam. Muitas outras. A saga de Jesus está cercada de mulheres.

O Evangelho de Lucas é mais exato.

Indo ele, logo depois, por cidades e aldeias, pregava e anunciava o reino de Deus. Acompanhavam-no os doze e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos malignos e enfermidades. Maria, chamada Madalena, da qual havia expulsado sete demônios, Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes, e Suzana, e outras muitas, que o serviam com seus bens.

Eram as mulheres do séquito de Jesus que asseguravam sua subsistência, bem dentro de um esquema mãe-filho: eram as mulheres que davam de comer a Jesus.

Nada de anômalo nisso: a espiritualidade nas mulheres é mais intensa. Entre elas, todos os criadores de religiões, os inventores do signo transcendental, encontraram logo seus mais pacientes ouvintes e seus primeiros seguidores.

Até nesse tão masculino islã, o primeiro convertido por Maomé à fé de Alá foi sua mulher Kadidja.

Na expansão da fé cristã, no Império Romano, o papel das mulheres parece ter sido fundamental.

Religião de escravos, em seus primórdios, o cristianismo passou por um processo de ascensão social até chegar ao palácio dos imperadores romanos. Nessas altíssimas rodas, os primeiros convertidos foram imperatrizes e grandes damas da família imperial. A partir da dinastia Flávia, em meados do século I, suspeita-se que inúmeras imperatrizes e familiares de imperadores romanos fossem adeptas do cristianismo.

O terreno já estava preparado pela infiltração da fé judaica entre as mulheres desde os primórdios do império.

A historiografia romana imperial registra relações íntimas entre Pompeia, amante de Nero, e o judaísmo de Roma (milhares de judeus na capital do império no início da era cristã).

Com Jesus, não deve ter sido diferente.

As mulheres o ouviam melhor que os homens.

Nele, viam um pai? Ou um filho?

De pai, ele tinha o tom autoritário de quem sabe o que diz, porque fala em seu próprio nome: a certeza de quem é senhor de uma verdade que criou.

De filho, devia ter algo dessa fragilidade infantil dos homens muito espirituais: Jesus sempre gostou de crianças, e dizia mesmo que elas entrarão no Reino dos Céus antes de todos.

No Antigo Testamento, não há crianças.

Adão e Eva já são criados adultos.

E Moisés, bebê flutuando num cesto no Nilo, prepara apenas a saga do líder adulto.

Os evangelhos, porém, estão cheios de mulheres e crianças.

Muito curiosas as relações de Jesus com Maria, sua mãe.

Parecem ter sido muito ligados. O pai José desaparece logo da cena, ausente de todos os episódios: evidente que já tinha morrido quando Jesus, aos trinta anos, nabi sagrado em água, pelas mãos de João, o Batista, inicia sua militância.

Em algumas passagens dos evangelhos, Jesus parece ter em relação à mãe uma oblíqua atitude de repulsa.

Na fábula da transformação da água em vinho, num casamento no vilarejo de Caná, Jesus e sua mãe, convidados, discutem.

No episódio, Jesus a chama apenas de “mulher”.

Em outra ocasião, Jesus pregava cercado de ouvintes.

Alguém chega e lhe comunica que sua mãe e seus irmãos (parece que sua família não acreditava muito nele) tinham acabado de chegar para vê-lo.

“Minha mãe e meus irmãos? Minha mãe e meus irmãos são os que me ouvem”, respondeu aquele que multiplicava pães e peixes e transformava a água em vinho (a lenda evangélica pode estar baseada, imagino, em alguma expressão popular judaica que significava “fazer o impossível”). De qualquer forma, a mãe estava com ele na hora de sua execução. E a ela, nessa hora, recomendou seu amado discípulo, João, o mais jovem dos seus seguidores, por quem tinha um carinho especial (na Ceia, o evangelho o registra com a cabeça reclinada no peito de Jesus).

De novo, chama Maria de “mulher”: “Mulher, eis aí teu filho”. Depois da morte de Jesus, conforme os Atos dos Apóstolos, seus seguidores diretos parecem ter tido Maria em grande consideração. E ela parece ter desempenhado um papel prestigioso na formação da Igreja primitiva, traduzida na importância teológica que viria a adquirir na história do catolicismo (Maria vem a ser quase uma deusa-mãe, objeto de um culto especial, aberrante no mundo rigidamente patriarcal e machista do judaísmo primitivo).

Muitos episódios da saga de Jesus envolvem mulheres.

Nos evangelhos, porém, não há traços da vida sexual de Jesus.

Não admira. Jesus era nazir, um homem abstinente dos prazeres da bela aparência e do desfrute de fêmeas.

Não custa ver aí mais um traço essênio, já que esses monges do judaísmo professavam a abstinência do sexo como suprema oblação do seu mais forte desejo. Como negação da carne e da matéria. Como o mais alto sacrifício.

Para nós, geração permissiva, que viemos depois de Freud e Reich, é incompreensível um mundo em que o sexo é negado. Mas isso é possível. Milhões de monges e monjas, padres e freiras disseram não ao mais imperioso desejo.

Vamos imaginar que Jesus disse não.

O desejo, porém, tem estranhas formas de se manifestar.

Formas sublimadas. Espiritualizadas. Abstratizadas.

Jesus, por exemplo, era muito namorador.

Em inúmeros episódios, vamos surpreendê-lo fazendo essa coisa vaga que pode ocorrer, sempre, entre homem e mulher (entre homem e homem, mulher e mulher), que se chama namorar.

Vejo Jesus namorando em duas ocasiões.

Com a mulher samaritana à beira do poço.

Jesus caminhava, naquele bruto sol da Ásia, ardendo de sede, quando chegou a um poço.

Água à vista. Mas cadê o balde?

Nisso, surge uma mulher samaritana com um balde e uma corda.

Os samaritanos eram uma minoria dissidente do judaísmo ortodoxo, desprezados por todos os verdadeiros crentes.

Jesus entabula conversação com ela e pede-lhe água.

Ela se espanta: “Como é que um judeu como você pede água a mim, samaritana?”.

Com ela, a seguir, Jesus entra num daqueles jogos parabólicos e trocadilhescos, nos quais ele era exímio:

se você me der dessa água,

vou te dar a água da vida,

água que, uma vez bebida,

sacia a sede para sempre.

Nenhuma dúvida de que Jesus ganhou seu gole d’água.

Duas mulheres aparecem, nos evangelhos, em relação muito pessoal com o profeta, Maria e Marta, irmãs de Lázaro, um dos melhores amigos de Jesus: cada vez que chegava a sua aldeia, era na casa dele que o filho de Maria se hospedava. A lenda da ressurreição de Lázaro por Jesus atesta a solidez dessa amizade.

Lucas registra uma cena de terna intimidade entre Jesus e as irmãs de Lázaro.

Indo Jesus e os seus a caminho, ele entrou numa aldeia.

Uma mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa.

Ela tinha uma irmã chamada Maria, a qual, sentada aos pés de Jesus, escutava-lhe a palavra.

Marta estava atarefada pelo muito trabalho doméstico e, aproximando-se, disse: Jesus, não te importa que minha irmã me deixe sozinha fazendo todo o serviço? Manda ela me ajudar.

Jesus respondeu, dizendo: Marta, Marta, você se inquieta e se perturba com muitas coisas. No entanto, só uma coisa é necessária. Maria escolheu a parte melhor, que ninguém vai tirar dela.

Ao longo dos séculos, nos círculos de religiosidade cristã, o episódio sempre foi usado como parábola que ilustrasse a eminência da vida teórica sobre a prática (um mestre zen acharia exatamente o contrário…).

Marta, apenas (apenas, Alice?) lavava roupas, amassava o pão, assava o peixe, cozinhava a lentilha e queimava os dedos tirando a coxa de carneiro do forno, arrumando a casa, preparando a comida de todos.

Maria, sim, é que estava certa, arrodilhada aos pés do profeta, ouvindo as maravilhas que saíam da boca do nabi e poeta, palavras bonitas de tão verdadeiras, parábolas fascinantes, aforismos que deixavam alguma coisa vibrando dentro do coração da gente… Em João, o episódio aparece mais rico de detalhes.

Seis dias antes da Páscoa, Jesus veio a Betânia, vila onde estava Lázaro, que Jesus tinha ressuscitado dos mortos.

Ali prepararam uma ceia para ele, e Marta servia, e Lázaro era dos que estavam à mesa com ele. Tomando uma libra de unguento de nardo legítimo, substância aromática de altíssimo preço, Maria derramou o óleo perfumado nos pés de Jesus e enxugou-o com seus cabelos.

João acrescenta: “e a casa se encheu do cheiro do nardo”.

Aberrante esta sensorialidade do cheiro do nardo nos quadros tão abstratos e conceituais da religiosidade judaica: nada mais resta que lembrar as cores, formas e aromas, eróticos, do Cântico dos Cânticos, o grande poema do amor físico, o Shir Ha-Shirim, uma das maiores obras-primas da literatura hebraica.

A este ato de amor, este excesso, este literal derramamento de Maria sobre Jesus, estranha metáfora de uma ejaculação às avessas, culminando com a fricção dos cabelos de Maria nos pés de Jesus, segue a intervenção de Judas Iscariotes, o discípulo que portava a bolsa de dinheiro da minicomunidade que cercava Jesus, roubava os companheiros e acabou por vender Jesus por trinta dinheiros. O unguento que Maria derrama nos pés de Jesus vale dez vezes esse preço. Judas: “Por que não se vendeu esse unguento por trezentos dinheiros e não se deu aos pobres?”.

Jesus responde a Judas como se já estivesse morto, “guarde para minha sepultura”, o nardo sendo a substância com que se untavam os cadáveres.

Nesse relato, o cruzamento do tema erótico com o tema monetário, dentro da escritura crística.

De repente, uma mulher misteriosa e sem nome cruza os caminhos do profeta. É a adúltera, surpreendida em pleno delito, e trazida pelos fariseus até Jesus.

— Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra.

Jesus parecia ter uma compreensão muito profunda da mulher.

Não o bastante, evidentemente, para ver em Deus uma Mãe.

Para o filho de Maria, Deus é sempre pai, a nostalgia do pai, talvez aquele pai José, que morreu cedo demais, deixando um vazio insuportável e impossível de preencher.

Um vazio que só um Pai podia completar, com toda a grandeza do seu tamanho de pai. O pai cósmico, o Pai Total, o doador máximo de todos os sentidos, a suprema lógica última.

Pais, porém, são homens.

Em cada homem, o sexo do pai.

Por isso, Jesus não teve apóstolas.

Os doze que o acompanhavam mais de perto eram homens. A eles, confiou tarefas, transmitiu doutrinas, passou poderes.

Por que Maria, Marta ou Madalena não foram chamadas como apóstolas, transmissoras da doutrina, como o foram o bancário Mateus ou Pedro, obtuso pescador a quem Jesus confiou a administração da sua habhurah, seu grupo, sua “eclésia”, talvez sabendo que a administração aos obtusos pertence?

Depois da morte de Jesus, as várias “eclésias” regionais foram se transformando em Igreja, com embriões de hierarquia, Igreja que herdou do Império Romano uma vocação para a unidade, a centralização e a ortodoxia.

Esse processo atinge seu primeiro ponto agudo com Paulo, judeu da Diáspora, fariseu, grego da cidade de Tarso, na Cilícia.

O nome pelo qual é conhecido o primeiro grande “epíscopo” da “eclésia”, em que se transformava a habhurah de Jesus, é uma latinização de Saul, nome do primeiro rei hebreu, o maior personagem da tribo de Benjamin, a que a família pertencia. A transformação do fariseu em cristão está materialmente registrada nesta passagem de S para P, em que Saul vira Paulo.

E vira o contrário. Saul é um nome de rei. Paulo, em latim, quer dizer “pouco”. Mas não foi pouco o que fez este judeu de origem, grego de língua e romano de cidadania, este homem que reunia em sua pessoa todo o melhor da civilização mediterrânea.

Com ele, a habhurah de Jesus, o pequeno círculo de crentes, se alastra e começa sua escalada até se transformar em religião oficial do Império Romano e do Ocidente. O primeiro grande “bispo” (em grego, epí-skopos, literalmente “o que olha por cima”), Saul/ Paulo, além de ser um administrador com letra maiúscula, foi o primeiro teórico da doutrina de Jesus, nas notáveis cartas que escreveu às várias “eclésias”, igrejas regionais, as epístolas de Paulo, no Novo Testamento, textos só menores em autoridade aos próprios evangelhos.

Foi também um grande poeta/profeta capaz de dizer “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”, na mesma carta à “eclésia” de Corinto, na Grécia, onde consagra, para sempre, a inferioridade da mulher e seu afastamento definitivo do altar.

Depois de Paulo, na Epístola aos Coríntios, só restava às mulheres se transformarem em bruxas.

A cabeça de todo varão é Cristo, e a cabeça da mulher é o varão […]. Na Igreja, o varão não deve cobrir a cabeça, porque é imagem e glória de Deus, mas a mulher é glória do varão, pois o varão não procede da mulher e sim a mulher do varão, nem o varão foi criado para a mulher, mas a mulher para o varão.