o que foi feito de jesus

 

Deus factus est homo ut homo fieret Deus.

Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus.

AGOSTINHO

Uma nação de estilo mágico é a comunidade confessional, a associação de todos aqueles que conhecem o caminho da salvação e que são unidos, intimamente, pelo idjma desta crença.

OSWALD SPENGLER, O DECLÍNIO DO OCIDENTE

Traduções (tanto católicas quanto protestantes) dos evangelhos costumam vir carregadas de adições de nomes e títulos de capítulos, que não existem no original: os textos gregos de Mateus, Marcos, Lucas e João são blocos de episódios e relatos, sem títulos dividindo as partes.

Tanto quanto possível, os evangelhos procuram manter uma cronologia lógica e linear de biografia, nascimento, desenvolvimento e morte de Jesus.

Mateus, Marcos e Lucas acompanham mais ou menos o mesmo desenho no enredo da saga de Jesus: muitos episódios de um são variantes de episódios dos outros evangelhos.

Por isso, esses três são chamados de sinóticos, em grego, literalmente, “os que veem junto”.

Singular é o caso do evangelho atribuído a João.

João teria sido o mais jovem dos discípulos de Jesus. Em seu nome, correm três epístolas do Novo Testamento. E — sobretudo — o Apocalipse, livro-fecho das Sagradas Escrituras, o Livro último, a profecia do Juízo Final, culminação da história.

A ser assim, João é um dos maiores poetas da literatura hebraica antiga: inexcedível, o esplendor imagético do Apocalipse.

Houve muitos apocalipses: era, entre os judeus, um dos gêneros textuais mais praticados um pouco antes e um pouco depois do advento de Jesus.

Nestes livros do fim do mundo, narrava-se, com abundância de detalhes fantásticos, a catástrofe máxima da culminação dos tempos, quando a história, a aventura humana, adquiria seu sentido último, pesada e medida por um superOlhar vindo de Fora.

O conceito de apocalipse, como os de demônio e inferno, estranhos ao judaísmo primitivo, parecem ser de origem persa: assim falavam o Zend-Avesta e Zaratustra nas crenças de Israel, depois que o rei iraniano Ciro libertou os hebreus do Cativeiro da Babilônia (616 a.C.).

A mesma pena que escreveu o quarto evangelho teria, também, escrito o livro-ponto-final das Escrituras?

O fato é que o evangelho atribuído ao apóstolo João difere bastante dos demais.

Na ordem dos fatos. No encadeamento entre os episódios. Nos detalhes inéditos. Em tudo, o evangelho de João discrepa.

Incontáveis gerações de exegetas despenderam eternidades para colocar em concordância o evangelho de João e os sinóticos.

Mas não é esta diferença “ficcional” que separa João e os outros. Jesus, nas palavras de João, parece ser outra pessoa. De fato, já é.

Na lembrança da sua “eclésia”, o nabi galileu começa a se transformar na Segunda Pessoa da Trindade, não mais filho de Deus, como todo mundo, mas Deus mesmo, sua parte que se fez carne e se envolveu, irremediavelmente, com a história concreta dos homens.

Começa o mistério da Encarnação, mito fundante do cristianismo e fonte de toda a sua vitalidade duas vezes milenar: a noção de que Deus, a Transcendência Absoluta, viveu, gozou e padeceu na carne do homem toda a miséria e a desgraça da condição humana.

A coincidência homem/deus era comum no Oriente.

Os egípcios não tinham nenhuma dificuldade em ver na pessoa dos seus faraós a presença de um nume, um deus. Um orixá, diria como brasileiro?

Com Jesus, foi diferente.

No evangelho de João, ele começa a aparecer, não como mais um deus ao lado dos outros, mas como parte da divindade mesma, da qual é parcela materializada em carne e osso no planeta Terra, feito palco de um drama divino, como se a Suprema Inteligência, Lógica e Sentido Último deste Escândalo que se chama Ser tivesse vontade de viver aqui. Num mortal e sofrível corpo de homem.

 

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Cena pascal, a última ceia de Jesus, com os discípulos, doze como os signos do
zodíaco e as tribos de Israel (séc. iv a.C., igreja de Santo Apolinário, em Ravena).
A tradição guardou a imagem de Jesus hirsuto, barbudo e cabeludo, essênio,
nazir, habi, discípulo de João Batista.
À mesa, pão e peixes. A ceia pascal judaica é o arquétipo do “ágape” das
igrejas primitivas, de que, hoje, a missa católica é uma projeção amplificada
teatralmente, ao longo dos séculos, conforme a necessidade dos fiéis e a fantasia
do clero.

 

Conforme a tradição, o mais jovem dos discípulos diretos de Jesus teria vivido mais de cem anos, modo oriental de dizer que é muito tardio o evangelho que leva seu nome.

Em João, definitivamente, Jesus deixa de ser uma pessoa real.

E ingressa, triunfante, na galeria das ideias-primas, aquelas que proclamam o sentido dentro da vida humana.

Há uma rima entre a condição escrava dos hebreus no Egito dos faraós, donde Moisés os tirou, e o status do cristianismo nascente, religião de escravos no Império Romano.

Oprimido entre muitos inimigos, o judaísmo, a fé de Jeová, reagiu criando o cristianismo, sua modalidade expansiva, proselitista, imperialista, universal.

Judaísmo e cristianismo sobreviveram a todos os Baal, todos os Zeus, todos os Ra, todos os Júpiter de que foram contemporâneos e oponentes.

Católico ou protestante, o cristianismo é, sob muitos aspectos, o triunfo do judaísmo.

No ímpeto profético inspiradíssimo da abertura do evangelho de João, sempre se suspeitou da presença de odores de incensos gregos (e egípcios), vindos das escolas filosóficas de Alexandria, no Egito, então, a capital intelectual do mundo mediterrâneo, onde milhares de judeus viviam havia séculos:

No princípio,

era a palavra.

E a palavra

estava em Deus.

E Deus era a palavra.

Isto, no princípio,

estava em Deus.

Tudo aconteceu

através disto

e sem isto nada aconteceu

do que acontecido está.

Quão longe toda essa metafísica da fé simples dos patriarcas hebreus, ninguém saberia dizer com precisão. No introito de João, Jesus desprende-se da carne humana.

E começa a sua carreira como ideia. Ou como o quê?