aliócha

 

 

 

 

No outono de 1236, o khan mongol Batu, neto de Gengis Khan, derramou sobre todo o Leste da Europa sua inumerável cavalaria, devastando a Rússia, a Polônia e a Hungria.

“Tatar!” era o grito que se ouvia em cada aldeia, em cada burgo, em cada vila, em cada cidade, “tártaros!”.

Unificados pelo gênio político e militar de Gengis Khan, os nômades mongóis saíram aos milhares de suas planícies ao norte da China e caíram sobre a Europa como praga de gafanhatos, matando, queimando, saqueando e destruindo tudo à sua passagem.

Ao mesmo tempo, tropas mongólicas desciam para o sul, para o mundo muçulmano, arrasando as principais cidades do islã.

Nenhuma força militar parecia capaz de detê-los.

E só as dissensões internas e as lutas tribais pelo poder conseguiram parar a invasão dos nômades amarelos, que deixavam o deserto por onde passavam.

Mas os mongóis não eram apenas destruidores. Eram também organizadores.

No auge do seu poder, tinham em suas mãos o mais vasto império que o mundo já tinha visto, um império que ia da Coreia, nos confins da Ásia oriental, até a Polônia, na Europa, englobando, ao sul, territórios do islã, no Oriente Médio, Pérsia, norte da Índia, incluindo a China de Kublai Khan, neto do Gengis Khan, em cuja corte tinha muita força um certo italiano chamado Marco Polo…

Elite militar dominante, os mongóis logo impuseram a centenas de povos um ordenamento político: durante séculos, vigorou em todo esse território a chamada pax mongolica, uma organização político-administrativa, garantindo o trânsito seguro de caravanas comerciais e o crescimento dos negócios.

Os mongóis se contentavam com o recolhimento dos tributos e a obediência dos súditos.

Em casos de rebelião, tropas imbatíveis estavam sempre à mão para expedições punitivas, conduzidas com implacável rigor.

Quando Batu, no outono de 1236, invadiu a Rússia, os russos eram apenas tribos eslavas espalhadas num imenso território que ia das margens do mar Báltico aos montes Urais, pequenas comunidades vivendo da agricultura, da pequena pecuária, da caça e da pesca, em densas florestas, de invernos rigorosíssimos.

Mais ao norte, perto do mar Báltico, havia cidades russas, que viviam do comércio com os grandes burgos mercantis do mar do Norte, as cidades alemãs da chamada Liga Hanseática. Entre elas, Kiev e Novgorod. Os primeiros núcleos urbanos estáveis da Rússia parecem ter sido entrepostos comerciais dos vikings, que desciam pelos rios em direção ao sul, a Constantinopla.

Lênin afirmava que, ao proletariado, “a consciência tem que vir de fora”, já que, entregue às suas próprias forças, a classe operária não consegue ir além do mero sindicalismo reivindicatório, sem chegar até a ideia da revolução e de tomada do poder.

Pois bem. Na Rússia, a consciência sempre veio de fora, dos vikings escandinavos, de Bizâncio, dos mongóis.

É o que poderíamos chamar a síndrome de Ivan, o Karamázov que veio para o Ocidente estudar. E voltou com ideias estranhas.

Ideias estranhas foram introduzidas entre os russos pelos mercadores escandinavos — os vikings, chamados varegues —, entre elas a ideia de um Estado russo, além do estágio tribal.

Tão importante foi a ação desses varegues que parece que a própria palavra “russo” é um vocábulo finlandês que designava os vikings varegues, e não o povo eslavo que, hoje, chamamos russo. O próprio nome dos russos, portanto, não é russo. Era o nome de um povo que dominava os russos (é como se, no Brasil, chamássemos os negros de lusitanos).

Os primeiros príncipes de Kiev, a cidade da Ucrânia que lançou as bases do Estado russo, tinham nomes escandinavos: Rurik, Oleg, Ígor.

Por toda a vastidão da Rússia, o poder estava pulverizado nas mãos de pequenos príncipes locais (os Kniaz), senhores de cidades que, na realidade, eram grandes aldeias fortificadas feitas de madeira (as palavras russas para cidade, grad e gorod, na origem, significavam fortaleza).

Novgorod, o centro cultural e comercial ao norte, embora nunca tivesse sido molestado diretamente pelos mongóis, a eles pagou tributo, durante muito tempo.

Os príncipes russos eram pequenos senhores feudais, obedientes súditos dos seus senhores mongóis.

Eram os khans da chamada Horda de Ouro que outorgavam aos senhores feudais russos o yarlik, em mongol, a investidura na dignidade do seu cargo. Em troca, os príncipes russos arrecadavam tributos entre seus dependentes e os enviavam a seus senhores mongóis.

Os khans, porém, podiam, a qualquer momento, retirar o yarlik de um príncipe russo, e dá-lo a quem bem entendessem.

Muito cobiçado era o título de Grande Príncipe, que os mongóis manipulavam para manter os príncipes russos divididos e em luta entre si.

Esse título é a origem do czarismo, monarquia absoluta que combinou o cacicato mongólico com o absolutismo da corte de Bizâncio.

Com efeito, as tribos russas foram convertidas ao cristianismo, através da ação de missionários gregos ortodoxos, vindos de Bizâncio (Constantinopla), a herdeira de Roma no Oriente. Dentre esses missionários, os irmãos Metódio e Cirilo, criador do alfabeto russo, dito cirílico, usando o alfabeto grego como base, mais algumas letras especiais para grafar sons específicos da língua russa.

A Rússia resulta deste cruzamento com os mongóis e o Império Bizantino.

Em 1240, Alexandre Nevski, célebre pelo filme de Einsenstein, príncipe de Novgorod, vencedor dos suecos e dos Cavaleiros Teutônicos, germânicos do Ocidente, apressou-se em prestar vassalagem aos khans mongólicos da Horda de Ouro, em suas cortes em Sarai e Karakórum.

Nessas alturas, começa a aparecer o nome da cidade russa de Moscou.

O primeiro de seus príncipes foi Danilo, filho de Alexandre Nevski. Um de seus sucessores, Kalita, o Cruel, obteve, a preço de ouro, o yarlik de Grande Príncipe. Como o arcebispo de Kiev abandonou a cidade e veio para Moscou, esta cidade começa cada vez mais a se tornar o centro cultural e político da vida russa.

Mas ainda estava longe a libertação.

Na época, era frequente que destacamentos e exércitos mongólicos incluíssem príncipes e tropas russas como aliados.

Da parte do Ocidente, as forças mongólicas da Horda de Ouro começavam a encontrar inimigos temíveis, os reinos da Polônia, da Lituânia e da Hungria, que começavam a se estruturar, política e administrativamente, forçados a isso pelo poder tártaro.

Logo, o reino da Polônia seria o último baluarte da Europa e da Cristandade contra as vagas amarelas vindas do interior da Ásia.

A partir de 1350, o poder da Horda de Ouro, depois de algumas derrotas, começa a declinar.

Em 1380, Dmitri, Grande Príncipe de Moscou, derrotou os mongóis na planície de Kulikovo. Era a primeira vez que russos derrotavam tártaros em campo aberto. Os benefícios imediatos foram pequenos. Mas o efeito psicológico, enorme. Os mongóis não eram invencíveis.

Dois anos depois, porém, os mongóis tomam e incendeiam Moscou.

Reconstruída, a cidade foi tomada, de novo, pelos tártaros em 1408. E o Grande Príncipe Vassíli I teve que pagar pesado tributo.

O crescimento do poder do principado moscovita atrai alianças europeias mais a ocidente. E os príncipes de Moscou, cada vez mais importantes, fecham alianças com a Polônia, a Lituânia e a Hungria contra os mongóis, cujo poder entra em declínio.

A independência russa só viria com o czar Ivan III, dito o Terrível, príncipe de Moscou, que subiu ao trono em 1462.

Dos mongóis e de Bizâncio, os príncipes de Moscou, logo czares da Rússia, herdam toda uma máquina burocrático-administrativa, altamente centralizada e baseada na semidivinização do soberano, que de Deus recebia o poder e só a ele devia contas.

Essa máquina é o antepassado remoto da tecnoburocracia soviética.

Concomitantemente, isso que chamamos Rússia foi a extensão gradativa do poder de uma cidade, Moscou.

Moscou não era uma cidade de mercadores como Novgorod. Era uma fortaleza, um posto militar avançado na luta contra os tártaros.

A Rússia foi unificada, manu militari, de cima para baixo.

Mas o passado mongol não desapareceu tão depressa.

Até em tempos do czar Pedro, o Grande (1672-1725), a Rússia ainda pagava tributo aos khans remanescentes da Horda de Ouro, um dia, senhora absoluta da terra russa.

Mas a partir desse momento a situação começa a se inverter: a contínua expansão do poder moscovita sobre áreas cada vez maiores coincide com o esfacelamento do poder mongol. Em breve, pouco a pouco, são os mongóis que estarão pagando tributo e dependendo politicamente daquela cidade e daquele povo que, há pouco, era seu humilde servo.

Essa Rússia que começa a crescer vai ser, até a Revolução de 1917, uma monarquia absoluta, de direito divino.

No campo, os grandes senhores governam suas propriedades com mão de ferro, tendo exércitos de servos a seu comando (na Rússia, a servidão no campo só foi abolida em fins do século XIX, depois da abolição da escravatura no Brasil).

A Igreja ortodoxa russa é onipresente e quase onipotente.

A vida russa gira em torno de igrejas e mosteiros. O clero domina a vida cultural e espiritual do país.

Separada do Ocidente cristão pela diferença de religião, a Rússia não foi tocada nem pelo Renascimento italiano, nem pela Reforma Protestante, os dois grandes movimentos que fundam a modernidade. É a Rússia de Aliócha Karamázov, paralisada na ignorância e na superstição.

Assim, a Rússia chegou até o Século das Luzes, esse século XVIII que viu nascer a Razão crítica, a tolerância, a luta contra os preconceitos, o Enciclopedismo, o pensamento da burguesia transformado em sistema filosófico.

Nesse momento, um czar também foi acometido da síndrome de Ivan.

Determinado em fazer da Rússia um país moderno, em pé de igualdade com o Ocidente, o czar Pedro, o Grande, o mais genial dos governantes russos, veio incógnito para o Ocidente estudar a técnica naval da Inglaterra e da Holanda. Consta até que teria trabalhado como simples operário nos estaleiros da Holanda para se assenhorear dos segredos da mais moderna técnica de construção de navios.

A intenção básica de Pedro era militar. Ele queria dotar a Rússia de uma frota de guerra capaz de enfrentar os suecos ao norte e os turcos ao sul. A Rússia está em vésperas de virar grande potência.

Mas não foram apenas saberes navais e militares que Pedro assimilou no Ocidente. Ele conheceu um outro mundo, o mundo que já vivia o dinamismo da vida burguesa, mais livre, mais aberto, mais desembaraçado de preconceitos e superstições.

No Ocidente, Pedro-Ivan entra em contato com “a razão”.

De volta à Rússia, ao mundo de Aliócha, Pedro introduz, de cima para baixo, o maior pacote de reformas que um país já recebeu de uma só vez.

Brutalmente, colocou fora da lei as vestimentas típicas da Rússia, obrigando todos a se vestir à maneira ocidental.

E como no Ocidente a moda era o rosto escanhoado, proibiu os russos de usar a barba comprida, conforme o costume do país.

Baniu também o velho calendário, adotando o ocidental.

Para montar a máquina militar que desejava, teve que montar, paralelamente, uma máquina de arrecadação fiscal de extremo rigor.

Para coroar todas essas reformas, criou nos pantanais do norte a nova capital, São Petersburgo, hoje, Leningrado.

O verticalismo das decisões de Pedro foi tipicamente russo.

Governava despoticamente sem nenhum tipo de assembleia que representasse o interesse ou a opinião dos vários segmentos da sociedade.

Ao contrário. Para montar sua pesada máquina fiscal, criou uma nova nobreza de funcionários, nomeada por ele e dele dependendo em tudo.

As semelhanças com Stálin são nítidas demais para que deixemos de mencioná-las. Pedro liquidou fisicamente a classe dos grandes terra-tenentes (os streltsy), condenando à morte mais de quatro mil deles, assim como Stálin liquidaria a classe dos kulaks, médios proprietários, na década de 1930.

Pedro é protótipo do governante modernizador, aquele que introduz reformas sem tocar nas relações sociais nem nas estruturas jurídicas que regem a sociedade. Isso só uma revolução pode fazer. Não era uma revolução que Pedro queria.

Por baixo das reformas de Pedro, tendentes a transformar a Rússia numa nação moderna, tudo continuava na mesma: a terra na mão de meia dúzia de grão-senhores, os servos atrelados à terra, a inexistência de uma sociedade civil organizada, nenhuma representação popular, e, sobretudo, uma imensa rede de funcionários públicos dependentes da coroa.

Com Pedro, a Rússia já tinha se tornado um mundo de funcionários públicos, organizados em complexa hierarquia, que ia do czar ao mais humilde escrivão de um vilarejo da Sibéria.

A tecnoburocracia soviética de hoje teve por quem puxar.

Desde Pedro, a Rússia é o paraíso dos burocratas.

O Estado sempre foi tudo na Rússia. E a sociedade civil, tal como a entendemos, nunca pôde se organizar diante dos poderes estatais.

Pedro esmerou-se sobretudo na repressão a toda dissidência.

Durante seu reinado, a censura foi mais rigorosa do que nunca (a Rússia só esteve livre da censura no breve interregno entre 1917, a Revolução, e 1921, quando Lênin e Trótski proíbem toda dissensão no interior do Partido Comunista).

E com ele, a montagem de uma polícia secreta, com redes de espias a informantes, chegou às raias da perfeição.

As prisões arbitrárias e execuções sem julgamento, a tortura como procedimento normal, completam o quadro de um sistema de opressão asfixiante.

As ideias iluministas chegam até a Rússia, mas só até suas camadas sociais mais altas. A imperatriz Catarina II, a Grande (1729-96), deu-se ao luxo de ter como amigos pessoais e correspondentes filósofos liberais como Voltaire, Diderot e D’Alembert, que defendiam, na teoria, um mundo oposto a tudo aquilo que representava aquela Rússia que Catarina herdara de Pedro, o Grande.

Esse mundo oposto logo seria realizado concretamente no Ocidente pela Revolução Francesa (1789), que chegou à Rússia sob a forma de invasão napoleônica.

Mais uma vez, “a consciência vinha de fora”.

Mas Napoleão, agente dos ideais da Revolução Francesa (separação entre Estado e Igreja, secularização do ensino, introdução de formas parlamentares de representação popular), foi derrotado pelo inverno e pelo gênio do general russo, Kutuzov, filho de um general de Pedro, o Grande. E, sobretudo, pela bravura especificamente russa, a extraordinária valentia do soldado russo, sempre que o território da Santa Rússia é invadido (Hitler que o diga). Aliócha Karamázov defende com unhas e dentes o único mundo que lhe faz sentido.

Vitorioso, Napoleão teria, certamente, introduzido na Rússia parlamentos e eleições, ensino leigo nas mãos do Estado, tribunais com júri, uma divisão dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário —, independentes e soberanos, como na doutrina do enciclopedista Montesquieu.

Com a derrota de Napoleão, a Rússia perdeu sua última chance de se modernizar, em estilo burguês, através de reformas gradativas e incruentas.

Agora, só uma revolução.

No século XIX, sob o impacto da Revolução Industrial, a Rússia de Aliócha entra em profunda crise: a industrialização é inseparável de certos mecanismos liberais. Não se pode industrializar um país com instituições políticas herdadas dos khans da Horda de Ouro e dos basileus de Bizâncio.

Mas Aliócha é contra toda mudança.

É aqui que Ivan entra em ação.

 

Image

Mujiques, camponeses russos, o mundo de Aliócha…
Gravura russa de 1650.