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A Rússia, o elo mais fraco…

LÊNIN

A Revolução Russa, o máximo acontecimento político do século, não foi obra, etnicamente, de russos.

Dos seus principais líderes, Lênin era mestiço de calmuco (um tártaro) com alemão (o sobrenome de sua mãe era Stein), natural de Simbirsk, no interior oriental do país.

Stálin (Ióssif Djugachvili) era um asiático, do Cáucaso, da Geórgia, que sempre falou russo com forte sotaque georgiano.

E Trótski (Liev Davidovitch Bronstein) era um judeu ucraniano.

Mais uma vez, “a consciência vem de fora”.

Todos, porém, cidadãos russos, quer dizer, súditos do czar, cujo império já tinha atingido proporções mastodônticas, indo da costa do Pacífico, da Ásia, até a Polônia.

Com ligeiras variações, o mesmo território da URSS de hoje.

Língua oficial, o russo, sobre centenas de outras línguas, reduzidas à condição de patois regionais. Em russo, o ensino nas escolas, os documentos oficiais, a legislação.

Religião oficial, a Igreja ortodoxa russa.

Os três principais chefes da Revolução de Outubro e da implantação do comunismo começaram a conspirar desde cedo.

Todos conheceram a prisão, a deportação, a fuga, o medo da delação, as reuniões secretas, o uso de documentos falsos, todas as agruras de uma intensa vida de criminosos políticos.

Essa militância clandestina está inscrita no próprio nome com que os conhecemos. Lênin, Trótski e Stálin não são seus nomes. São apelidos, codinomes de militância subversiva, dois deles diretamente ligados a vicissitudes da vida de um criminoso político. Vladimir Ilitch chamou-se Lênin, porque esteve preso numa colônia penal no interior da Sibéria, às margens do rio Lena. Quanto a Trótski, era o nome de um dos carcereiros de Liev Davidovitch, em uma de suas inúmeras prisões, e que Liev adotou quando fugiu da prisão, uma vez que seu verdadeiro nome já era conhecido em todas as delegacias da Rússia. Irônico o caso deste obscuro carcereiro cujo nome entrou na história através de um acidente da luta política entre os irmãos Karamázov e o Grande Pai Castrador…

Esse que nós conhecemos como Trótski era filho de um judeu fazendeiro do sul da Ucrânia, proprietário da fazenda Yanovka, na província de Kherson, perto do vilarejo de Bobrinetz.

Desde o início, Trótski já traz as marcas de um destino singular.

Onde é que já se viu um judeu lavrador? Os judeus foram, na Europa, sempre, um povo essencialmente urbano, vivendo de atividades ligadas ao setor terciário.

Seu pai, como fazendeiro, era um típico self-made man, que trabalhava de sol a sol ao lado de outros camponeses, na azáfama da vida rural, plantio, colheita, trato de gado e animais menores, compra e venda de produtos agrícolas.

Parecia mais um camponês ucraniano do que um judeu. Do judeu, não tinha o preparo intelectual e abstrato, a prática das escrituras sagradas, o domínio da língua hebraica, o respeito pelo elenco de tradições e gestos sociorrituais que, sobretudo, fazem de alguém um judeu.

Em Yanovka, falava-se ucraniano, não iídiche, a língua tribal dos judeus ashkenazi, os judeus da Europa centro-oriental.

A mãe, mais sofisticada intelectualmente, e de origem urbana, zelava mais pelos ritos judaicos tradicionais, respeitando religiosamente o sábado.

Mas a fazenda Yanovka ficava muito longe de qualquer sinagoga. Liev cresceu, “menino de engenho”, entre trabalhos do campo e rudes lavradores ucranianos, livre, como seu pai, das amarras do judaísmo ortodoxo tradicional.

Talvez esteja aí a raiz da extraordinária liberdade de pensamento crítico que sempre lhe foi característica, como teórico, como orador e como homem de ação. Nessa liberdade, seu estilo de pensar tem algo que lembra o pensar de Marx, outro judeu desjudaizado, um pensar de essências e medulas, com a coragem de ir até as últimas consequências do seu movimento inicial, passando por cima dos preconceitos, lugares-comuns e verdades estratificadas.

Um dia, Trótski encontraria igual agudeza em outra inteligência, na de Lênin. Mas o pensamento de Lênin é mais imediatista, mais aplicado diretamente a O que fazer?, nome do seu ensaio célebre. Os ensaios teóricos e filosóficos de Lênin não nos levam muito além de Marx e Engels: é um pensamento escolástico, que Stálin depois transformaria em pensamento acadêmico.

Na estratégia e na tática da ação política, a inteligência de Lênin supera em muito a de Trótski, mais hesitante, mais sujeita a erros e leituras equivocadas dos fatos.

Mas a máquina mental e intelectual de Trótski era mais complexa que a de Lênin. Seus interesses eram mais plurais. Suas leituras, mais diversificadas. Seu horizonte, muito mais amplo. Leia-se, por exemplo, o voo utópico do final do ensaio “Arte revolucionária e arte socialista”, capítulo oitavo do seu livro Literatura e revolução.

Lênin jamais poderia ter escrito essas páginas de um sopro verdadeiramente épico-utópico sobre o novo homem que o socialismo poderia criar. Nem poderia dizer, como diz Trótski, nesse mesmo livro: “a arte se fundirá com a vida, quando a vida enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte”.

Lênin sempre olhou meio de lado, desconfiado, para as manifestações de vanguarda artística que marcaram o início do comunismo na Rússia (futurismo, suprematismo, Eisenstein, Maiakóvski, Meyerhold, Tátlin). Seus gostos em matéria de arte eram bem conservadores. Há testemunhos de que chorava ao ouvir “Pour Élise”, de Beethoven. E sua visão do cinema era pedagógica e doutrinária: bom para educar as massas.

Dessa vanguarda, Trótski, agudíssimo crítico literário, fez leituras mais ricas, como nos ensaios “O futurismo”, de 1922, e “O suicídio de Maiakóvski”, de 1930, incluídos em Literatura e revolução, o mais extraordinário livro sobre literatura que um político jamais escreveu.*

Quando, já exilado no México, nos anos 1930, Trótski assina um manifesto surrealista com André Breton, vindo da França para conhecê-lo, o velho leão está apenas sendo fiel a algumas de suas riquezas da juventude.

A robustez e a saúde de pensamento, Trótski deve ter herdado do pai. Mas a sofisticação intelectual, que sempre o distinguiu entre os bolcheviques e atraiu invejas e ódios surdos, só pode ter vindo da mãe, que era assinante de uma biblioteca de livros de empréstimo e lia em mais de uma língua.

O que importa guardar dos primórdios de Liev Davidovitch é que Trótski teve uma infância e adolescência sem penúria, como, aliás, Lênin, filho de um funcionário público, de alguma graduação na máquina burocrática. Diverso é o caso de Stálin, filho de um pobre sapateiro do Cáucaso, o único dos chefes da Revolução de Outubro a ter origens realmente populares.

Aos sete anos, os pais de Liev Davidovitch o enviaram para uma escola judaico-alemã a quilômetros de distância da fazenda Yanovka. Não se adaptou, e os pais o trouxeram de volta, sem que tivesse chegado a aprender nem o iídiche nem o hebraico das Escrituras. Em compensação, tinha aprendido bem o russo, ele que só falava o ucraniano dos camponeses. Ao voltar, já escrevia bem em russo, e começava a ler avidamente livros na língua oficial.

Pouco depois, pelas mãos de um parente mais velho, de nome Spentzer, vai estudar em Odessa, o maior porto do mar Negro, uma cidade de clima quente, fervilhante, de vida cosmopolita.

Na casa dos Spentzer, Liev iniciou-se numa vida intelectual muito cuidada, música clássica, hábitos polidos, leituras de clássicos russos e europeus em geral (Goethe, Púchkin, Tolstói, Dickens).

O jovem camponês ucraniano transforma-se num judeu urbano de classe média, um europeu culto e educado.

Em Odessa, frequentou uma escola alemã, ligada à Igreja luterana, onde estudou, entre as matérias do currículo, francês e alemão. Nessa escola, a Realschule, parece ter sido aluno excepcionalmente sério, sempre o primeiro da classe.

Já podemos ver aí os germes da vaidade intelectual que sua figura sempre irradiou, a certeza de ser mais inteligente do que os outros, de ver mais longe ou pensar mais fundo, vaidade que só se transformava em modéstia diante da figura superlativamente carismática de Lênin (e isso só depois de muita briga entre os dois…).

Em Odessa, cidade esfuziante de atrações, frequenta a ópera, como os outros estudantes, veste-se com elegância (traço que sempre o distinguiu) e apaixona-se, platonicamente, por cantoras líricas, como um poeta romântico do século XIX.

Aos dezessete anos, o futuro chefe da Revolução de Outubro ainda não ouviu falar de marxismo. E seu talento para a matemática o inclina a sonhar com uma carreira universitária dedicada à matemática pura.

Tais eram seus dons nesse terreno que, consta, eminentes matemáticos lamentariam depois que tamanho talento se perdesse na mediocridade da vida política: que grande talento a matemática estava perdendo…

A atividade política de Trótski, percebe-se já, não vai nascer de uma revolta contra um estado pessoal de carência.

Como em Lênin, outro bem-nascido (como Mao e Fidel), em Trótski, a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza lógica, uma convicção feita de ferro em brasa. Uma das cruéis ironias da vida: só os bem alimentados podem lutar pelos famintos. Os muito miseráveis nem sequer se revoltam: deixam-se morrer à míngua. É preciso muita proteína para fazer uma revolução.

Mas na Rússia de Alexandre III (1881-94) não é preciso ser um pária para se revoltar. Todos são párias nessa Rússia cada vez mais opressiva, mais mongólica, mais bizantina, onde o czar, contra as reformas do seu predecessor, tentava restabelecer “o total domínio do pai sobre a família, do dono da terra sobre suas propriedades e do monarca sobre toda a Rússia”.

Só havia um jeito: alguém tem que matar o Velho Karamázov, o Pai, o Grande Tirano. Qual dos irmãos se habilita? Aliócha? Ivan? Dmitri?

A ala terrorista naródniki tentou. Alexandre III escapou do atentado. Dele participou Alexander Uliánov, o irmão mais velho de Lênin. Preso, Alexander Uliánov morreu sob tortura. A vida toda de Lênin foi inspirada pela lembrança deste irmão mártir.

Nessa época, as ideias socialistas, liberais e revolucionárias penetravam em todas as classes sociais, nas elites, inclusive, e sobretudo.

A paixão intelectual, que era o móvel de Liev Davidovitch, logo iria encontrar um alimento mais sólido do que os vazios arquiteturais da matemática pura.

E veio por intermédio de uma mulher.

Aleksandra Sokolovskaia era a jovem filha de uma família de alta classe média, que reunia em sua casa outros idealistas de sua idade, que discutiam coisas como justiça social, a derrubada do czarismo e as ideologias novas que fervilhavam no momento. O pai de Aleksandra era naródniki, como muitos do seu círculo. Mas ela já tinha sido tocada pelo marxismo, que vinha sendo propagado na Rússia, clandestinamente, através de folhetos de divulgação, onde se ouvia falar, pela primeira vez, em “materialismo dialético e materialismo histórico”, em “luta de classes como motor da história”. Sobretudo, pela primeira vez, contra o agrarismo dos naródniki, ouvia-se falar que o futuro estava com os operários fabris, a mão de obra técnica do mundo urbano. Aqueles operários magros, sujos de graxa, com um dedo faltando na mão, perdidos numa prensa, olheiras fundas de jornadas de trabalho de doze horas (ou mais), naqueles operários estava o germe da nova humanidade liberta e redimida da opressão.

Não era romântico.

A base de todo o pensamento radical russo, de classe média, era naródniki, idealizando uma suposta “pureza” original do camponês, o homem em estado natural, com muitas influências de Rousseau (o tolstoísmo é um momento dessa tendência).

No fundo do movimento naródniki, estava, mais uma vez e sempre, Aliócha Karamázov, o monge ortodoxo, o devoto, a velha Rússia dos ícones das igrejas com cúpula em forma de cebola, dos mujiques e dos kniaz, uma Rússia atolada na superstição, no conformismo e no passado, como uma carroça na lama da primavera.

O que o marxismo trazia eram ecos de um novo mundo, o mundo das fábricas e das grandes máquinas, o mundo dos operários e das greves, o mundo urbano do salário, não o mundo da safra e da colheita.

Em 1896, uma greve de 30 mil operários industriais paralisou São Petersburgo.

Trótski, a princípio, tomou o partido naródniki contra o marxismo, que lhe parecia “frio e desumano”, “uma doutrina seca e sem sangue”, “uma ideologia boa para lojistas e comerciantes”, dizia.

Sua conversão ao marxismo viria a seguir por influência de Shvigóvski, o jardineiro tcheco da família Sokolovski, que mantinha reuniões secretas com jovens a quem expunha o marxismo.

A conversão de Trótski foi fulminante.

Recusou a mesada que o pai lhe pagava, e passou a viver de aulas particulares. Abandonou os confortáveis aposentos que ocupava, e foi viver numa pensão pobre, junto com outros estudantes que, como ele, estavam vivendo a transição ideológica da doutrina naródniki para o marxismo.

Esta metamorfose inesperada é típica de Trótski, e apareceria depois em outros momentos de sua vida, tão rica em transformações.

Esse seu modo de ser lhe criará não poucas complicações no futuro. Para os mais lerdos, gente de psiquismo mais estável, a volubilidade das mudanças que marcam a carreira de Liev pareceram, muitas vezes, apenas manifestações de um oportunismo individualista, evidências da sua inconsistência ideológica e política.

Seu oposto era Lênin, uma inteligência mais metódica, mais modesta diante da realidade, praticando transformações gradativas. Mais certeira em relação a resultados. Mas menos ampla em suas ambições.

Trótski sempre se declarou leninista. Duvida-se.

O verdadeiro herdeiro do tipo de inteligência de Lênin é Stálin, cauteloso, calculista, só tomando decisões quando tem certeza da vitória, ou não tem outro jeito (o Pacto Nazi-Soviético e a demora em reagir à invasão alemã são demonstrações disso). É este tipo de inteligência que caracteriza, até hoje, os governantes e altos hierarcas da burocracia soviética. Stálin é pai de um estilo de governar que vem dando certo há décadas.

Mal convertido ao marxismo, Trótski parte para a luta social direta em contato com os trabalhadores. Assim, idealiza e começa a organizar um sindicato dos trabalhadores do sul da Rússia.

Em 1897, já o encontramos conspirando contra o regime, à frente de uma organização proletária composta por eletricistas, serralheiros, marceneiros, costureiros e estudantes, lutando para articular o sindicato dos trabalhadores do sul da Rússia.

Essa tentativa de organização combatente da classe operária tinha tido seu primeiro momento com o “Grupo de Emancipação do Trabalho”, em 1885, criado no estrangeiro por Plekhánov, Axelrod e Vera Zassúlitch. Esse grupo conduziu um grande trabalho de difusão da doutrina marxista e publicou o primeiro Programa dos social-democratas russos.

Depois disso, “Alianças para a Luta pela Emancipação da Classe Operária” começam a surgir por toda a Rússia, sempre com a mesma composição: intelectuais, pretendendo apoiar-se na força da classe trabalhadora contra o governo czarista, convertendo o movimento operário em instrumento principal de luta.

Surge o Partido dos Socialistas-Revolucionários, em 1905.

As questiúnculas interiores que costumam dividir os partidos dificultavam qualquer unificação dos esforços, que visavam a um objetivo comum: a derrubada do regime e a instauração de uma nova ordem, centrada na força e nas necessidades da classe operária.

Em 1898, nasce o Partido Social-Democrata Operário. Deste partido, descende o Partido Comunista, que tomaria o poder em 1917.

No exterior, seu porta-voz era o jornal Iskra, A Faísca, dirigido por Vladimir Ilitch Uliánov, aliás, Lênin, exilado político.

Até vésperas da Revolução de 1917, os entrechoques internos, os reagrupamentos das facções, as cisões e os rachas evidenciam a riqueza de vida política que ia pela Rússia.

É assunto muito intrincado acompanhar as divisões e as alianças, os desentendimentos e os acordos súbitos entre esses grupos. Isso, talvez, só tenha um interesse acadêmico para os que amam as minúcias e sabem extrair delas o sólido e o definitivo.

De definitivo, o que havia é que a ideologia naródniki estava superada e o marxismo tomava seu lugar.

Ideologicamente, a Revolução de Outubro estava em marcha.

Só faltava uma faísca, em russo, uma iskra, nome da revista dos social-democratas, dirigida por Lênin.


* Trótski também se debruçou sobre questões como a família, o trabalho doméstico, a religiosidade, e até as boas maneiras! (Questões do modo de vida). (N. A.)