outubro

 

As revoluções distinguem-se sempre pela falta de delicadeza: provavelmente, porque as classes dirigentes não tiveram o cuidado, a seu tempo, de ensinar ao povo as boas maneiras.

LIEV TRÓTSKI, HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO RUSSA

Com o czarismo e tudo, a Rússia, nas duas primeiras décadas do século XX, abrigava um dos maiores parques industriais da Europa, vale dizer, uma das maiores concentrações operárias e proletárias do mundo.

Na Europa, superavam-na, apenas, a Inglaterra, a França e a Alemanha. Na América, apenas os Estados Unidos. E, na Ásia, só o Japão podia lhe fazer alguma frente.

Esse parque industrial russo e as massas operárias correspondentes concentravam-se nas grandes cidades, São Petersburgo (Petrogrado, hoje, Leningrado), Moscou, Odessa, Kiev, Minsk.

Embora recente, esse proletariado numeroso logo atingiu aguda consciência política. E foi de dentro dele que nasceu a primeira instituição da democracia operária: o soviete, a assembleia livremente eleita de representantes da classe trabalhadora, fábrica a fábrica, categoria profissional a categoria profissional, setor por setor.

Espontaneamente, de baixo para cima, de dentro para fora, a democracia popular foi inventada pela massa obreira. A fábrica de cinco mil operários elege seu soviete, quarenta representantes seus, que falam em seu nome, diretamente ligados à reivindicação de seus problemas, os mais lúcidos, os mais corajosos, os mais bem-falantes, os de maior senso crítico.

Não apenas operários. Logo começam a aparecer sovietes de soldados, de soldados no front, de soldados voltados do front, que discutem politicamente a guerra, julgam seus oficiais, organizam-se de baixo para cima. Humanidade ascendendo à consciência e à liberdade.

O nascimento dos sovietes russos é um dos mais belos espetáculos da história humana, esse rosário de massacres e baixezas, opressões e tiranias.

Foi com eles que os bolcheviques tiveram que se haver, na escalada em direção ao poder. E não foi fácil. Os operários russos tinham longa tradição de luta, clara consciência do seu poder, coesão grupal, coragem, idealismo e teimosia. Não eram uma massa amorfa de carneiros, à espera do primeiro demagogo.

E, é Trótski quem observa, a massa decisiva que fez a Revolução era constituída de jovens, jovens operários, jovens soldados, jovens camponeses, etariamente, o mais apto elemento humano das camadas oprimidas e exploradas.

Foi sobre esse tecido de jovens trabalhadores e soldados, organizados em sovietes, que os bolcheviques atuaram.

Conseguir dar uma sintaxe a toda essa tempestade social em direção a um objetivo definido foi tarefa e mérito do Partido de Lênin.

Estranha simbiose, na verdade. Os sovietes eram assembleias de uma democracia popular e proletária espontânea. O Partido Bolchevique funcionava diferente. Era, no seu cérebro e no de seu coração, uma concentração de intelectuais militantes, na maioria, de origem não operária, fortemente centralizada, equipada filosoficamente com o marxismo, um produto cultural sofisticado, muito acima do imediatismo dos operários e camponeses-soldados da Rússia do czar Nicolau.

Na hora em que os Aliócha viraram Dmitri, surge Ivan, “a consciência de fora”.

Os acontecimentos de fevereiro de 1917 apanharam todos de surpresa, revolucionários e czaristas.

Sacudido violentamente pela derrota na guerra, greves envolvendo milhares de operários, revolta generalizada no campo, falta de alimentos e combustível nas cidades, choques nas ruas entre massas populares e cossacos, o czarismo, por fim, cai. Mas não cai de todo. A fórmula adotada é uma solução de compromisso. Nicolau II renuncia ao trono da Rússia, mas passando o poder para um grupo que representava a velha aristocracia, mais elementos da alta burguesia, funcionários e até representantes dos partidos “socialistas” menos radicais, um governo de conciliação nacional, onde se mudava alguma coisa para não perder o principal.

O principal era o poder.

Na insurreição de fevereiro de 1917, a pré-revolução, as massas russas derrubaram a autocracia czarista. Mas não souberam ganhar o poder para si. Mais rápida, a burguesia constituiu rapidamente o primeiro gabinete do Governo Provisório: sob a presidência do príncipe Lvov, ministro-presidente e do Interior, a Rússia estava para se transformar em mais uma república parlamentar, pelo figurino inglês. Nesse gabinete, viria a se destacar o ministro da Justiça, Kerenski, cuja figura domina esse período de interregno entre a insurreição de fevereiro e Outubro.

Quando estas coisas, longamente esperadas, começam a acontecer, as principais lideranças revolucionárias encontravam-
-se espalhadas pela Europa, e até além. Lênin, Zinóviev e outros estão na Suíça, neutra, não beligerante. Trótski, em Nova York.

Lênin é o primeiro a voltar, no controverso episódio do “trem lacrado”. Sabendo das posições derrotistas de Lênin, as autoridades alemãs teriam autorizado a passagem de um “trem lacrado”, transportando o líder e companheiros próximos, através de toda a Alemanha, até a Rússia. Com isso, o governo do kaiser, extenuado pela guerra, esperava favorecer a tomada do poder na Rússia por alguém que tiraria a Rússia da guerra, assim que assumisse o controle do país. Não é impossível: até hoje, essa história não ficou bem contada. O fato é que Lênin, em matéria de Grande Guerra, era abertamente derrotista. Isto é, torcia para que a Rússia perdesse a guerra, abrindo caminho para a revolução social. “Transformar a guerra imperialista em guerra civil” era sua palavra de ordem.

Trótski não ia tão longe, achando que uma derrota da Rússia só reforçaria, com a ocupação alemã, os poderes da classe dominante russa.

Também de trem, um mês depois de Lênin, no dia 17 de maio, Liev chegou a Petrogrado, onde foi recebido triunfalmente, com multidões agitando bandeiras vermelhas.

Estava para começar o segundo ato, o decisivo.

Bem a seu estilo, Trótski mal desceu do trem, alojou a família numa pensão e partiu diretamente para o Instituto Smolny, a sede do soviete de Petrogrado.

Essa associação de origem proletária representava, agora, um grande poder. Depois de algumas objeções, Trótski foi aceito como membro dela. Sem direito a voto, mas com direito à palavra, que era o que Liev, orador incomparável, queria.

Era o último dos grandes líderes a voltar. Mas não ia ficar entre os últimos.

A situação política apresentava uma dinâmica estonteante. O Gabinete de Coalizão, com Lvov como primeiro-ministro, cambaleava. Os mencheviques e outros grupos revolucionários apoiavam o governo atual. Mas as assembleias de trabalhadores adquiriam a cada dia uma importância cada vez maior.

Os remanescentes da velha ordem, agora no poder, imaginavam ser possível sustentar uma situação de compromisso, onde a velha aristocracia, a classe média e os socialistas moderados acabariam por dar conta das diferenças entre os vários grupos em conflito.

Logo o gabinete desta primeira revolução começaria a entrar em crise com a renúncia de vários ministros, o da Guerra e o do Exterior, em primeiro. Logo a seguir, Trótski viria a assumir esses dois ministérios. Eram os mais problemáticos. Afinal, a Rússia se achava, ainda, em guerra contra a Alemanha e o Império Austríaco. Mas os exércitos russos queriam a paz, nessa guerra que, para eles, não fazia o menor sentido. E a democracia popular já tinha penetrado nessas tropas de origem camponesa. Os regimentos tinham seus sovietes, elegiam seus oficiais e não aceitavam ordens de oficiais nomeados de cima.

Pairava no ar a proposta de uma Assembleia Constituinte, o órgão legislativo, omni-representativo, que, por fim, daria à Rússia uma lei máxima, regulando a vida do país e legitimando a nova ordem de coisas.

Entre fevereiro e outubro de 1917, a Rússia oscilou entre duas coisas: de um lado, uma democracia, de tipo parlamentar, a burguesia no poder, com instituições derivadas das revoluções inglesa e francesa; e de outro lado, uma coisa nova, radicalmente nova, misto de despotismo asiático com democracia de massas, rígido centralismo estatal com socialização dos meios de produção, uma coisa que nunca tinha existido, essa coisa que, valha o que valha a expressão, hoje, chamamos de comunismo. Alguma coisa entre a velha aldeia e o Império Bizantino… mas com eletricidade, ensino e medicina gratuitos, alfabetização geral e democratização das oportunidades. Mas um mundo ideologicamente fechado, como a Igreja ortodoxa, onde só há lugar para uma verdade, um só jornal, um só projeto nacional.

Foi entre fevereiro e outubro, em meio a tempestades e conflitos, que Trótski acabou rendido ao peso superior do bolchevismo de Lênin e sua monolítica doutrina ideológico-partidária. A realidade parecia falar uma linguagem leninista. O partido de Lênin era a única coisa que fazia sentido.

Nesse ano, até a Revolução, a vida de Trótski se confunde integralmente com a história, com o fluxo revolucionário dos fatos que levariam a Outubro.

Sua vida, nesse ano fundamental, foi uma sucessão inacreditável de discursos, comícios, debates públicos, envolvendo todos os problemas que atingiam o povo russo, naquela hora.

Paralelamente, desenvolve intensa atividade escrita pela imprensa, polemizando sobre tudo, discordando, apoiando, atento às questões mais sutis do processo revolucionário. Nesse ano, já fala como porta-voz dos bolcheviques, já é um homem de Lênin. Mas procura manter sua independência de pensamento, brigando com companheiros, ou até com o próprio Lênin, se achasse necessário. Pois as discussões entre esses russos não se limitavam a questões práticas imediatas, de militância e tomada do poder. A camada superior da liderança bolchevique era constituída por intelectuais, os Ivans, gente com elevada capacidade teórica e preparo filosófico. Os bolcheviques não estavam lutando apenas por cargos num determinado regime. Todos sabiam que estavam dando a vida por um novo mundo, pela instauração de uma ordem de coisas como nunca tinha havido antes no mundo.

Questões teóricas gerais, portanto, atravessavam constantemente as discussões mais imediatas. Só com dificuldade Lênin e os bolcheviques aceitaram a tese trotskista da “revolução permanente”, o internacionalismo proletário radical, que reduzia a Revolução Russa a um momento apenas de uma revolução operária mundial, que deveria eclodir na Alemanha, na Inglaterra e na França, como Marx tinha predito. Em compensação, Trótski começou a aceitar o monolitismo partidário de Lênin que, alguns anos atrás, lhe parecia pura tirania e prelúdio de tiranias maiores. Ivan sabe de que os Alióchas são capazes…

Nesse momento, parece ter havido na Rússia, país com grande tradição oral, uma proeminência da oralidade: os poderes de Trótski deviam-se, em grande parte, a seus dotes excepcionais como orador e tribuno. Onde falava, sua palavra era fogo e ordem, lógica e fonte de entusiasmo. Nem foi por acaso que lhe era contemporâneo um poeta como Maiakóvski, também dotado de alta potencialidade oral.

O Governo Provisório vacilava. Os gabinetes se sucedem. A crise na cidade e no campo se agrava, a guerra está presente. Ao príncipe Lvov, sucede como primeiro-ministro o advogado Kerenski, um representante dos partidos socialistas moderados, que queriam o parlamentarismo.

Enquanto isso, os bolcheviques crescem nos sovietes, nos sindicatos, nas associações de classe. Logo seus slogans serão os slogans de todo o povo russo: “abaixo os ministros capitalistas!”, “abaixo a guerra!” e “todo o poder aos sovietes!”.

Nas ruas, já se ouvia claramente: “todas as terras aos camponeses”, “todas as fábricas aos trabalhadores”.

Enquanto isso, os soldados começavam a resolver a questão a seu modo: pela deserção em massa. Os camponeses incendiavam as casas dos seus senhores e dividiam as grandes propriedades entre si. Os operários paralisavam a produção industrial pela sabotagem e pelas constantes greves,

diz, em Os dez dias que abalaram o mundo, o jornalista americano John Reed, que estava lá na época.

A moeda se desvalorizava a cada dia. As filas para comprar pão eram cada vez maiores.

Esse caos social empurrava cada vez mais os revolucionários para uma proposta radical.

Na noite de 23 de julho, Trótski e Lunatcharski foram detidos e encarcerados, presos políticos misturados com presos comuns. Mas nenhuma cadeia conseguia esfriar o ânimo revolucionário de Liev, que, de dentro do cárcere, enviava artigos e matérias para todos os jornais revolucionários russos.

Enquanto estava na cadeia, uma tentativa de golpe militar veio mostrar quais eram as disposições da direita. Kornilov, comandante em chefe das Forças Armadas, nomeado por Kerenski, moveu tropas para derrubar o frágil governo que representava a última sombra de legalidade.

Em 4 de setembro, Trótski foi libertado, mediante fiança.

Mal saiu do cárcere, se encaminhou para o Instituto Smolny, sede do soviete de Petrogrado, onde se estruturava o Comitê pela Luta contra a Contrarrevolução. Esse comitê seria o embrião do Comitê Revolucionário Militar, que conduziria a ação na tomada do poder em outubro.

A tentativa de golpe de Kornilov abortou. Seus soldados, trabalhados pela propaganda e doutrinação bolcheviques, desertaram, antes de entrar em ação. Mas a questão do poder, agora, se colocava mais premente do que nunca.

Duas questões para o Partido Bolchevique: apostar tudo numa tentativa de tomar o poder? Em caso positivo, quando?

A essas alturas, os bolcheviques já tinham adquirido tamanha força e influência junto às massas populares, operários, soldados e camponeses, que uma palavra de ordem, vinda do alto e sustentada por agitadores eficientes, seria respondida por milhares.