o fim?

 

A democracia não se estabeleceu com métodos democráticos.

TRÓTSKI, MORAL E REVOLUÇÃO

Na história política do século XX, poucas coisas são mais espantosas que a súbita queda de Trótski, de grande líder da Revolução para proscrito e renegado, expulso do país que, com Lênin, sonho e trabalho, tinha ajudado a criar.

Em menos de cinco anos, de 1924 a 1929, o todo-poderoso criador e chefe do Exército Vermelho, membro do Politburo, revolucionário respeitado no mundo inteiro, caiu das culminâncias do Poder na condição de criminoso perseguido e caçado pelo mundo inteiro, seu nome execrado, seus partidários implacavelmente liquidados, sua obra simplesmente apagada das histórias oficiais da URSS.

As explicações, como os fatos, não são simples.

É quase irresistível um recurso ao confronto de personalidades e valor individual na liderança da revolução bolchevique. Lênin, Trótski e Stálin são os grandes nomes. Mas se impõem distinções.

Intelectualmente, não se pode comparar Lênin e Trótski com Stálin. Além de organizador de um partido, Lênin era um teórico de alto nível conceitual, verdadeiro pensador da luta de classes, do Partido, da Revolução e do Estado, alguém que, à maneira russa, continuava Hegel e Marx (sem muita originalidade, diga-se de passagem). Trótski não chegava a tanto.

Sua atuação revolucionária, cobrindo mais de vinte anos, é acompanhada de imensa produção de textos jornalísticos, ensaios, peças de ocasião, onde se apresenta um pensamento sólido e profundo, de extraordinária agudeza de leitura do processo histórico, tanto do passado quanto do presente, e perspectivas futuras. No plano da esquerda, no século XX, ninguém, nem mesmo Lênin, teve intuições tão fulgurantes, tão amplas e tão certeiras.

Stálin era feito de outro material. Embora capaz de teoria, como os bolcheviques em geral, era — sobretudo — um administrador e um político da mais extrema habilidade e astúcia. Na negociação entre tendências antagônicas, na paciência de saber esperar os fatos para colocá-los a serviço dos seus desígnios, Stálin não tem igual. Como intelectual (que era), jamais foi além de uma visão primária, imediatista, pragmática, daquele já então vasto pensamento de esquerda que englobava não só Marx e Engels, mas também Lassalle, Kautski, Rosa Luxemburgo e muitos outros teóricos revolucionários da Rússia e da Europa.

Com suas limitações, Stálin é o responsável pelo congelamento desse vivo pensar de esquerda na escolástica embalsamada, verdadeiro sistema metafísico, que se chama “marxismo-leninismo”. Com efeito, em setenta anos de revolução e regime socialista, a URSS não produziu um só pensador original, só repetidores de manual. Com Stálin, o pensamento passou a ser, apenas, o caminho mais curto entre duas citações.

Mas exatamente por suas limitações, Stálin sempre teve muito maior facilidade de comunicação com os quadros mais amplos da base do Partido, gente mais simples, recém-convertida ao comunismo. Donde vem o poder de um homem? Do apoio explícito ou tácito de sublideranças, firmadas sobre camadas amplas que lhes dão respaldo militar, policial, ideológico.

Trótski perdeu o poder (e a vida), sobretudo, por certas características de personalidade. Intelectualmente superior, grande escritor e orador, nunca conseguiu ver nos companheiros seus iguais. Sua formação europeia não tinha muita paciência com o primitivismo asiático da população russa, primitivismo onde Stálin, georgiano, se movia como um peixe na água. Essa consciência de superioridade, em Trótski, se converteu muitas vezes em pura arrogância individualista: havia em Trótski alguma coisa de ator, o convencimento de ser protagonista de um máximo evento histórico. Em suas memórias sobre Lênin, Górki reporta uma estranha fala dele que teria segredado ao escritor, num momento de franqueza:

— Ele sabe organizar. No entanto, não é dos nossos. Está conosco, mas não é dos nossos. É muito ambicioso…

Os bolcheviques tinham razão. Trótski não é um dos nossos. Afinal, não tinha passado anos disputando com Lênin, aliado aos mencheviques, sempre indeciso, mudando de postura, ao sabor dos acontecimentos? Stálin, sim, é o verdadeiro continuador da obra de Lênin, o fiel seguidor do seu pensamento.

Contra Trótski, Stálin pôde assim contar com o apoio irrestrito de toda a alta liderança bolchevique, os velhos discípulos formados na escola de Lênin, hoje, altos dignatários ocupando os cargos mais importantes da URSS, Kamenev, Zinóviev, Bukhárin, Tomski, Rikov, Bubnov, Dzerjinski… Um dia, Stálin mandaria matá-los todos. Em meados dos anos 1920, porém, todos viam em Stálin um moderado sensato, que apenas queria conduzir o socialismo no reto caminho traçado por Lênin.

Mas a velha profecia de Trótski, de 1905, estava para se cumprir: “o Partido ia ocupar o lugar da classe operária, o Comitê Central do Partido iria dominar o Partido e, um dia, um homem, sozinho, iria dominar o Comitê Central, o Partido e a classe operária”.

O resto da história é apenas um resto. Expulso da URSS, depois de um exílio com seus partidários e familiares no interior asiático do país, Trótski começa uma longa fuga trágica pelo mundo afora, primeiro na Turquia, depois na França, na Noruega e, por fim, do outro lado do Atlântico, no México, onde foi abatê-lo o longo braço de Stálin, em 1940, no primeiro ano da Segunda Guerra Mundial, donde a URSS sairia como um dos vencedores, disputando o poder mundial diretamente com os Estados Unidos.

Durante essa perseguição, o velho leão não ficou quieto. Ao contrário. Perseguido de país em país pela pressão da diplomacia soviética, Trótski vai reagrupando seus seguidores, exilados e estrangeiros, até fundar a Quarta Internacional, uma organização política para combater Stálin e os rumos da URSS sob o controle dele.

O movimento socialista mundial é balizado por sucessivas Internacionais, congressos de lideranças dos partidos operários, determinando as diretrizes para a ação do movimento, visando a uma sociedade socialista.

A Primeira Internacional foi fundada em Londres, em 1864. Nesta, várias tendências operárias e esquerdistas entraram em conflito, donde saíram vitoriosas as ideias do próprio Karl Marx, que assumiu pessoalmente a direção do movimento.

A Segunda Internacional foi fundada em Paris, em 1889, congregando os partidos socialistas e social-democratas da Europa. Nessa Internacional, da qual já participa Lênin, ocorre a cisão entre social-democratas, favoráveis a uma colaboração com a burguesia, e as tendências radicais de Lênin, conflito que a Grande Guerra de 1914 só agravaria.

Por fim, em 1919, Lênin, já no poder, funda a Terceira Internacional, o Komintern, totalmente subordinada aos interesses de potência da URSS (Zinóviev foi seu primeiro presidente). Stálin a extinguiria em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial.

Ao fundar, em 1937, depois de muita hesitação, a Quarta Internacional, Trótski dava um passo decisivo em sua carreira de revolucionário: colocava-se fora do comunismo oficial, que agora coincidia com os interesses nacionais da URSS e seu quadro governante. Para ele, era um passo doloroso: Trótski nunca deixou de se considerar um verdadeiro bolchevique. Seja como for, sua Quarta Internacional não poderia deixar de ser pouco mais que um gesto simbólico, vindo de alguém que, havia quase quinze anos, afastado de qualquer poder real, era enxotado de país para país. O trotskismo (Trótski dizia que não existia trotskismo), invocando a Quarta Internacional, chegou a ter certo papel durante a Guerra Civil Espanhola. Mas os grupos trotskistas que existem ainda em muitos países do mundo (Brasil, inclusive) nunca conseguiram um grau de coesão a ponto de ter peso na política real. Sempre aparecem como uma “esquerda da esquerda”, diante da direita da esquerda representada pelos partidos comunistas mais ou menos filiados ao da URSS, todos de inequívoca inspiração stalinista. A guerra implacável entre os dois grandes líderes sobreviveu à morte de ambos.

A bandeira trotskista ficou como uma espécie de horizonte utópico de um comunismo sem as deformações soviéticas, um comunismo com mais liberdade individual, aberto a inovações no plano artístico, contrário aos privilégios da Nova Classe burocrática, os aparátchik da Nomenklatura. Assim, Trótski sobreviveu como mito, como ideia. Mas a realidade histórica é um pouco diferente. Mas esse Trótski é fruto de uma fantasia (erótica ou heroica…) dos que invocam seu nome. Bolchevique, Trótski estava longe de ser um liberal. Quando esteve no poder, agiu de maneira tão implacável quanto Stálin. Comissário da guerra, suprimiu violentamente o levante dos marinheiros de Kronstadt (e os marinheiros estavam certos, pedindo mais liberdade e o fim da ditadura bolchevique). Nas questões de disciplina partidária, chegava a ir mais longe que Stálin, proclamando a infalibilidade do Partido. Defendeu o monopólio bolchevique da verdade e do poder. Opôs-
-se, com os seus, ao liberalismo relativo da NEP. E sempre lutou contra a liberdade dos sindicatos e o direito de greve, com base no argumento capcioso de que a greve era um instrumento de luta da classe trabalhadora contra seus opressores burgueses; ora, na URSS, os operários estavam no poder, logo não poderiam fazer greve, já que seria um absurdo fazerem greve contra si mesmos… Muito rápido de raciocínio e bom de formulação, era especialista nesse tipo de sofismas trágicos. E suicidas. Ninguém mais que ele defendeu, em 1921, a proposta de Lênin de proibir a existência de facções no interior do Partido, isto é, do governo da URSS. Foi com base nessa lei que, depois da morte de Lênin, Stálin pôde silenciá-lo, neutralizá-lo e isolá-lo, com toda a tranquilidade…

No plano econômico, foi o proponente da industrialização forçada (a superindustrialização) através da militarização do trabalho, a aplicação ao mundo do trabalho das leis implacáveis que regem a vida militar.

Estava longe de ser aquele anjinho libertário com que sonham os trotskistas ingênuos, que só guardam dele a imagem do revolucionário bonzinho, perseguido pela crueldade asiática de Stálin, o Caim que acabaria por assassinar o Abel da Revolução, depois da morte de Lênin-Adão…

Mas era uma inteligência muitos graus acima dos que deixava para trás. Era sobretudo um grande escritor. O vigor de sua prosa não tem igual na literatura política do século XX. A ampla História da Revolução Russa e a autobiografia Minha vida, que escreveu já no exílio, nada ficam a dever à magnitude dos eventos de que participou como personagem fundamental.

Na derrota e no degredo, amargou muitas dores que são privilégios dos homens excepcionais.

Uma delas foi ver Stálin se apossar de seus planos para a instalação do comunismo na Rússia e aplicá-los com toda a energia, a partir de 1929. A coletivização do campo e a liquidação dos médios proprietários, os kulaks. A rígida disciplina imposta ao trabalho industrial. A rigorosa planificação da economia. Tudo isso eram teses da Opozitzia, a Oposição de Esquerda, liderada por Trótski, cujos partidários constituíam uma elite de administradores, com ideias próprias sobre o que deveria ser a economia socialista.

Outra dor foi sua tragédia familiar. Trótski tinha duas filhas do primeiro casamento, dois filhos do segundo, com Natália. Uma de suas filhas se suicidou. Dos dois filhos, um morreu num campo de concentração de Stálin, talvez sob tortura. O outro, Serioja, morreu em circunstâncias misteriosas durante uma operação, num hospital de Paris, talvez assassinado por médicos comprados por Stálin.

E em sua fuga até o México passou por toda a sorte de dificuldades financeiras de primeira ordem, vivendo do incerto dinheiro ganho com colaborações esparsas em revistas socialistas, ajuda de partidários e outras irregularidades. Envelheceu precocemente: aos cinquenta anos, parecia ter setenta.

Lutou contra Stálin e o stalinismo até o último momento. Foragido e perseguido, jamais deixou de denunciar as deformações que Stálin introduzia no socialismo da URSS, que ele tinha ajudado a criar. Sua vasta produção jornalística e literária é um combate contínuo contra a traição da Revolução que ele via no stalinismo triunfante.

Dor toda especial deve ter sido a obliteração sistemática do seu nome na historiografia soviética, ou simpática a Stálin.

Nesse terreno, não há dúvidas: a historiografia soviética sobre a Revolução é uma mentira deslavada, completamente deturpada por Stálin.

Quem quiser saber uma opinião contemporânea e isenta leia John Reed em Os dez dias que abalaram o mundo: o jornalista americano, comunista, estava lá, em 1917. O nome e a atuação de Trótski estão presentes em todas as páginas (onde Stálin não aparece nenhuma só vez). Pois bem: o livro de Reed, com prefácio de Lênin, só pôde ser traduzido e editado na URSS depois da morte de Stálin. Durante sua vida, nenhum historiador russo se atreveria a mencionar sequer o nome de Trótski num trabalho sobre a Revolução. Essa gracinha poderia lhe custar, no mínimo, o emprego e, no máximo, a vida.

Essa institucionalização da mentira não se limitou aos textos. Até de fotografias históricas foi raspada e apagada a imagem de Trótski! Não há exemplo no mundo moderno de uma conspiração da memória semelhante. O paralelo mais próximo seria a prática dos faraós do antigo Egito que costumavam mandar apagar dos monumentos os nomes dos faraós anteriores, para botar o seu no lugar…

No exílio, Trótski denunciava essa e outras coisas.

No início dos anos 1930, ele, sempre tão atento às coisas da Alemanha, percebeu com clarividência a ascensão de Hitler e do nazismo e o que isso significava para a URSS.

Derrotadas as possibilidades de uma revolução comunista na Alemanha, diante do complexo quadro político, Stálin e URSS, absurdamente, consideraram o nazismo um mal menor, e localizaram os social-democratas como os verdadeiros inimigos. Essa estupidez favoreceu em muito a vitória do nazismo, com o qual o comunismo soviético tinha muitos pontos em comum (não era muito fácil distinguir entre fascismo, comunismo e nazismo, em 1936, digamos).

Evidente que seus alertas não surtiram o menor efeito. Em 1939, Stálin firmava um pacto de não agressão com a Alemanha, num aperto de mãos com Ribbentrop, representante de Hitler. Um ano depois, os tanques de Hitler e do Terceiro Reich invadiam a Rússia com fúria total.

O stalinismo é oportunista. Não é ideologicamente radical. Até hoje, os stalinistas argumentarão que, com o Pacto Germano-Soviético, a URSS ganhou um tempo precioso para se preparar contra o inevitável ataque nazista (foi contra a Rússia que Hitler lançou a elite de suas tropas). No final, Stálin e a URSS acabariam vencendo. O preço? Vinte milhões de russos mortos, o país reduzido a um campo de ruínas.

Trótski não viveria para ver o resultado dessa guerra.

Escorraçado por toda parte, encontrou precário refúgio no México, onde viveu nos arredores da capital, sempre ameaçado por atentados encomendados em Moscou. Passou seus últimos dias numa verdadeira fortaleza, em Coyoacán, nas proximidades da Cidade do México, protegido por partidários leais que funcionavam como uma verdadeira guarda pessoal.

Nesse abrigo, onde só entrava gente conhecida e devidamente identificada, foi alvo de ataques de comunistas comandados por Moscou, um deles liderado pelo pintor muralista Siqueiros.

Mas Stálin tinha determinado sua eliminação.

O fim de Trótski foi tão rocambolesco quanto sua vida.

Stálin, através do Partido Comunista Mexicano, conseguiu infiltrar na fortaleza de Coyoacán um agente seu, J. Monard, que se fez passar por jornalista de esquerda, interessado nas ideias de Trótski.

Um dia, sozinho com Liev, Monard agarrou a pequena picareta que trazia sob o casaco, e a cravou na cabeça do velho líder.

Trótski, que era homem vigoroso, ainda conseguiu lutar com o agressor. E só veio a morrer quando levado ao hospital.

Preso pela polícia mexicana, Monard declarou apenas:

— Eu matei Trótski.