trótski e a guerra

 

A natureza objetiva da guerra a converte num cálculo de probabilidades. Só lhe falta um elemento para fazer dela um jogo, e este elemento certamente não está ausente: é o acaso. Nenhuma atividade humana depende tão completa e universalmente do acaso como a guerra. O acidental e a sorte desempenham, pois, com o acaso, um grande papel na guerra.

CARL VON CLAUSEWITZ, DA GUERRA, CAPÍTULO I

Camaradas! Não temos o direito de cair. Subimos muito alto. Enquanto poder soviético, enquanto Partido, assumimos compromissos grandes demais para com o proletariado mundial. Temos a obrigação de vencer.

TRÓTSKI ÀS TROPAS VERMELHAS, 1918

Cinco meses depois da vitória da Revolução, em meados de março de 1918, Trótski é nomeado comissário da guerra e presidente do Supremo Conselho de Guerra.

Dois fatos chamam a atenção aqui.

Um, a singularidade de vermos um judeu à frente de operações militares: durante toda a Idade Média e a Idade Moderna, os judeus da Europa viveram segregados em guetos, à margem da história dos países onde viviam, até o século XIX, quando começa sua emancipação. Durante todo esse tempo, o exercício das armas sempre foi privilégio e monopólio dos goiim. Agora, aí está um judeu dirigindo as Forças Armadas e operações militares da Rússia soviética.

O grande contista russo Isaac Bábel, judeu, reporta a curiosa reação de cossacos e soldados russos diante da propaganda dos “brancos”, contrarrevolucionários, que espalhavam o boato de que eles, cristãos, lutavam sob as ordens de um judeu:

— Não, Trótski não é judeu, diziam. Lênin é judeu. Mas Trótski, não.

Nos contos de Bábel, um dos maiores narradores do século XX, judeu que lutou num destacamento de cossacos, podemos aquilatar bem a diferença de visão do mundo entre um cavaleiro cossaco e um filho de Israel: suas narrativas, reunidas no volume A cavalaria vermelha, registram, com indisfarçado espanto, aquele clima geral de brutalidade aberta e arrogância bélica, disposição para a violência e crueldade ilimitada, que constituía o universo do cavaleiro cossaco, casta militar que era o braço armado da Rússia czarista, por fim, conquistados para a causa da Revolução, gente que vivia com o sabre e o chicote na mão, eslavos de raça, mas que mantinham os hábitos e os mores, dos tártaros.

Trótski soube utilizar, com habilidade, todo o seu potencial militar.

Outra singularidade foi ver que Lênin e os velhos bolcheviques colocavam nas mãos do ex-menchevique, inimigo de outrora, crítico acerbo de Lênin por anos, simplesmente, os destinos da sobrevivência militar da Revolução e da Rússia soviética.

Liev esteve à frente do Comissariado da Guerra de 1918 até 1925.

Durante esses sete anos, realizou uma tarefa gigantesca, criando e organizando o Exército Vermelho, hoje, uma das maiores forças militares da Terra.

Quando assume o cargo de comissário da guerra, em 1918, o volume de responsabilidade que tinha pela frente era de fazer qualquer um desanimar. A Nova República nascia literalmente cercada de inimigos externos e internos, todos determinados a aniquilá-la.

Da parte de fora, a Rússia soviética sofria o ataque de destacamentos ingleses, franceses, alemães, poloneses, tchecoslovacos e japoneses.

No interior, as forças contrarrevolucionárias dos “brancos” arregimentavam-se em inúmeras unidades militares, congregando oficiais do antigo exército do czar, grandes proprietários expropriados, jovens aristocratas, burgueses arruinados pela Revolução, aventureiros, bandidos, oportunistas, liderados por generais veteranos da Grande Guerra: Kolchak, Denikin, Iudénich, Wrangel…

A sorte dos bolcheviques (o acaso, diria Clausewitz…) foi que essas forças antissoviéticas não chegaram a unir esforços na direção de um objetivo comum.

Agiram dispersamente. E, dispersamente, foram paulatinamente derrotadas e neutralizadas.

De 1918 a 1921, a Rússia soviética viveu o “comunismo de guerra”, as dores de parto do primeiro socialismo, período de fome e racionamento, miséria e desespero, incerteza e penúria.

Todo um mundo desmoronava. Mas um novo nascia. Os bolcheviques estiveram à altura dos acontecimentos. A disciplina férrea do Partido de Lênin, desenvolvida em anos de clandestinidade, iria superar todas as dificuldades e triunfar no fim.

Os problemas se apresentavam em todas as áreas: militares, administrativos, industriais, diplomáticos, policiais, educacionais, culturais, ideológicos, políticos, sociais…

Dos problemas militares, incumbiu-se Trótski, com uma eficiência que chegou a surpreender o próprio Lênin, que, seja como for, confiava nele.

De líder revolucionário clandestino a comandante do exército de um país, Trótski teve que se defrontar com um problema crucial, uma situação irônica, contraditória. A vitória da Revolução só tinha sido possível pela pregação antimilitarista e antibelicista, o derrotismo de Lênin, que sensibilizou todas as camadas inferiores do imenso exército czarista, constituído, basicamente, de camponeses. Nesse combate ideológico, a ideia de luta e de guerra, de exército e de virtudes militares, teve que ser desmoralizada, criticada, desmantelada. Com a vitória da Revolução, cercada de inimigos, é preciso reconstituir as Forças Armadas, restaurar os valores militares, voltar à guerra, só que, agora, com outros objetivos.

Durante a Revolução contra o czarismo, os bolcheviques estimularam todas as formas de democracia militar, a ponto de produzir unidades onde os oficiais eram eleitos pela tropa inferior. Agora, essa democracia tem que acabar. Ela só servia para dissolver o poder militar da antiga ordem vigente. Agora, é preciso disciplina de novo. Organização. Hierarquia. A verticalidade, sem a qual nenhuma ação militar é viável.

Era algo como dizer a uma imensa multidão, vá!. E, logo a seguir, dizer volte!.

Isso Trótski soube fazer. Em 1920, no auge da Guerra Civil, e das intervenções estrangeiras, o Exército Vermelho sob o comando dele já contava com o monstruoso efetivo de cinco milhões de homens.

Como chefe militar, não ficou, confortavelmente, em algum gabinete na retaguarda.

Com seu célebre trem, atravessou a Rússia, presente nos lugares perigosos, falando às tropas, dirigindo de perto, olho no mapa, o César da Revolução. Lênin é que nunca saiu do gabinete em Moscou…

Ao assumir a responsabilidade vital do Comissariado da Guerra, Trótski não tinha nenhuma experiência prévia de vida bélica. Judeu, não tinha prestado serviço militar. Tudo o que soube de guerra aprendeu estudando o livro de Clausewitz, o grande clássico (o Da guerra está para a guerra, assim como O capital, de Marx, está para a economia política, ou A origem das espécies, de Darwin, está para a biologia). O resto aprendeu na prática, iluminado por um tirocínio extraordinário, napoleônico, atento aos mínimos detalhes, de geografia, de sociologia, de psicologia das massas…

Não se deve, evidentemente, subestimar o tesouro de informações militares, técnicas, disciplinares, que o comissário extraiu dos grupos de oficiais do exército czarista, que conseguiu atrair para a causa da Revolução, na categoria de especialistas, o escândalo ideológico da Guerra Civil.

Contemporâneos reportam as longas horas que o comissário passava com esses oficiais, dentro da tenda do comando, discutindo técnicas, táticas, estratégias, operações de ataque e defesa.

Na alta direção bolchevique, eram muitos os que criticavam, às vezes, com razão. Vários desses oficiais do antigo regime se revelariam traidores de marca maior: a muitos, Trótski mandou fuzilar.

Mas com os que se mantiveram fiéis, deve ter tido um verdadeiro curso de informações militares do mais alto nível, em nível de alto comando: esses oficiais, afinal, tinham conduzido as tropas russas na guerra contra o kaiser e o Império Austro-Húngaro. Esse pragmatismo, além da ideologia, contou com o irrestrito apoio de Lênin, outro pragmático. Não há substituto para a vitória. Trótski vencia as batalhas que comandava.

Como chefe militar, reabilitou-se do fiasco que foi sua atuação em Brest-Litovski, como chanceler da Revolução, onde assinou aquilo que Lênin chamaria “tratado vergonhoso”, quando foi obrigado a abrir mão das possessões ocidentais do Império Russo (Polônia, Ucrânia, Países Bálticos, Lituânia, Letônia, Estônia).

Do rigor com que se houve à frente do Comissariado da Guerra, fala uma Ordem do Dia assinada por ele, em 14 de outubro de 1918, em relação ao comportamento de um destacamento de Petrogrado:

ordem do dia

Foi-nos reportado que o destacamento de combatentes de Petrogrado abandonou sua posição. Ordeno ao comissário Rosensoltz verificar os fatos.

Os soldados do Exército Vermelho, dos operários e camponeses não são uns covardes nem malandros. Querem se bater pela liberdade e felicidade do povo trabalhador. Se recuam ou lutam mal, a culpa é dos comandantes e comissários do Partido.

Advirto: se alguma unidade recuar sem autorização, o primeiro a ser fuzilado será o comissário, em seguida, o comandante.

Não tenhamos dúvidas de que muita gente foi passada pelas armas, sumariamente, até que o Exército Vermelho começasse a apresentar os níveis necessários de performance militar: Trótski não estava brincando de fazer revolução…

Sobre os desertores, o comissário tinha ideias claras: “O desertor é um homem que, num momento difícil, deixa que seus irmãos morram e tenta, antes de mais nada, salvar a própria pele. O desertor é um membro doente da família trabalhadora”.

A seguir, determina para os desertores do Exército Vermelho a pena de alta traição, vale dizer, o fuzilamento. Quantos desertores teriam sido fuzilados?

Na condução dos assuntos militares, Trótski adotou aquela medida, pragmática e eficaz, que lhe valeu inúmeras oposições na época: contratou os serviços de oficiais do antigo exército czarista, a partir do raciocínio, correto, de que quem entende de guerra são os militares, os especialistas. Muitos desses oficiais colaboraram, patrioticamente, e vieram a integrar os quadros do Exército Vermelho.

Essa riquíssima experiência militar foi escrita.

Não foi por acaso que, na mocidade, Trótski era apelidado pelos colegas de subversão de Pero, a Pena. Tudo o que fazia, escrevia. Sua experiência como comissário da guerra é acompanhada de vasta produção textual, constituída de Ordens do Dia, Advertências, Planos de Operação, Discursos aos Oficiais, Relatórios de Batalha, impressionante coleção de documentos escritos sob o fogo, reunidos no volume Como se armou a Revolução, um clássico da literatura militar do século XX, livro digno de alinhar com os clássicos de Sun Tzu, Júlio César, o bizantino Belisário e Clausewitz.

Em suas ordens drásticas como condutor de uma guerra, Trótski nunca se limita apenas ao aspecto militar das determinações. Justifica-as ideologicamente. Sua visada utópica está sempre presente. É o revolucionário que fala pela boca do general. Dá uma ordem, e diz por quê. Interliga determinações militares imediatas com tiradas e apelos para a instauração de uma ordem mais justa na sociedade. Nunca esquece que não é apenas um militar: é um agente do Partido, a serviço do socialismo e das massas trabalhadoras do mundo inteiro.

Afinal, não está dirigindo uma guerra como as outras, um mero entrechoque entre as classes dominantes de duas ou mais nações. A guerra que conduz tem como objetivo a instauração de uma nova ordem social, uma ordem como o mundo nunca tinha visto. É uma guerra entre classes, entre os trabalhadores e seus exploradores.

Trótski, como os bolcheviques, conhecia muito bem a história militar de outros movimentos revolucionários recentes: a Revolução Francesa de 1789, de 1848, a Comuna de Paris, a Revolução Russa de 1905.

Esse domínio do passado lhe dava precedentes, que projetavam luz sobre o presente russo.

Do resto, seu irredutível fanatismo bolchevique se encarrega. Numa ordem de 1918, ele determina, sobre o treinamento militar de operários: “A instrução militar terá lugar fora dos horários de trabalho. Ninguém terá o direito de reclamar a menor remuneração pelas horas que vai consagrar a seu primeiro dever de cidadão: estudar a arte de defender a República Soviética”.

À atividade de comissário da guerra, Trótski levou uma de suas mais fortes características: o extremismo de quem conduz as coisas às suas últimas consequências. Nunca foi homem de meias medidas.

Nisso, sim, era verdadeiro bolchevique, homem de sim-sim, não-não.

E foi no Partido que, certamente, pensava, quando conclui o prefácio a seus Escritos militares, em 1922, a guerra já ganha:

Em 1920, durante nossa luta contra Wrangel e a Polônia, o Exército Vermelho contava, em suas fileiras, com mais de 5 milhões de homens. Hoje, incluindo a marinha, ele compreende 1,5 milhão de homens, e continua a diminuir. A redução não vai tão rápida quanto desejaríamos, o que queremos é melhorar sua qualidade […]. Ao se reduzir em número, o exército não se enfraquece. Ao contrário: se fortalece. Sua capacidade de entrar em ação não para de crescer. Seu devotamento à causa da revolução social não é mais duvidoso.