trótski e a cultura

 

Várias vezes tentei ler Maiakóvski e nunca pude ler mais que três versos: sempre durmo.

LÊNIN

Para nós, hoje, a imagem da Revolução de Outubro está ligada às manifestações artísticas de vanguarda que, então, fervilhavam na Rússia.

A grande reviravolta histórica, a grande reviravolta artística: as vanguardas expressando, na arte, a grande transformação política…

Essa história, porém, está cheia de pontos falsos: as coisas não foram bem assim.

Em primeiro lugar, os movimentos russos de vanguarda, importantíssimos (futurismo, o zaúm, a linguagem transmental de Khliébnikov e Krutchônikh, cubo-futurismo, suprematismo, imaginismo, o Oberju, o grupo 41o), são anteriores à Revolução. Expressam mais o espírito pré-revolucionário do que a Revolução propriamente.

Essa espantosa florescência criativa não se limitou à literatura e à poesia (a arte por excelência do povo russo).

Todas as artes conheceram na Rússia pré-revolucionária um desenvolvimento extraordinário, em consonância com os movimentos de vanguarda que, desde o final do século XIX, sacudiam e renovavam a arte europeia (expressionismo, impressionismo, fauves, futurismo italiano, cubismo…).

A Revolução Industrial e a importação de técnicas e capitais do Ocidente colocavam a Rússia em contato com o que se fazia de mais avançado nos demais países da Europa. As elites russas circulavam por Paris, Berlim, Londres, Roma, os Ivans do século XX

A civilização burguesa europeia era, então, uma unidade de sentido, da Lisboa de Fernando Pessoa a Moscou de Maiakóvski, unidade que a Revolução de Outubro quebraria para sempre, ao inaugurar o mundo da igualdade proletária ao lado do mundo da liberdade burguesa.

Mas essa Rússia pré-revolucionária não apenas importava novidades artísticas do Ocidente: exportava também.

Mal podemos fazer hoje uma ideia do impacto que provocaram em Paris, na época o coração do mundo, os célebres “balés russos”, montados por Diaguilev, um empresário de raro gênio, que revelou ao mundo valores do naipe de Stravinski e um Prokófiev, na música, ou de um Nijinski e uma Ana Pavlova, na dança. A partir de 1909, data do primeiro balé russo em Paris, os espetáculos promovidos por Diaguilev arrebataram as plateias ocidentais pela inovação e ousadia.

Basta dizer que, em seus balés, Diaguilev teve como cenaristas Picasso, Braque, Matisse, Jaun Gris, Miró, De Chirico, a nata da pintura ocidental da época. Diaguilev foi, além do mais, o grande incentivador de Cocteau, que criou para ele.

Nesse início do século, tão fecundo em revoluções e inovações em todos os terrenos da arte, nenhuma obra musical teve o impacto da Sagração da primavera, de Stravinsky, apresentada em Paris, em 1913, num misto de sucesso e escândalo nunca vistos: foi Diaguilev quem deu o grande impulso na carreira de Stravinsky, encomendando a ele seu primeiro balé, O pássaro de fogo, em 1910.

Em termos de realizações, irradiações e consequências, os balés russos de Diaguilev foram tão importantes para a arte do século XX quanto o futurismo italiano que, hoje, leva as glórias de matriz da modernidade.

Os artistas são, realmente, as antenas da raça, de que falava Pound: na Rússia, a revolução política foi precedida por uma revolução artística de proporções nunca vistas.

Esse momento ímpar da criatividade russa (talvez só comparável à explosão de criatividade grega, na Atenas do século de Péricles) não se limitou às artes.

Manifestou-se também na área das ciências da linguagem, com a constituição do Centro Linguístico de Moscou, o grupo de cientistas e pesquisadores da linguagem, hoje, englobados na designação genérica de formalismo russo (o nome lhes foi atribuído pelos adversários…). Esse grupo lançou as bases para o estabelecimento de uma verdadeira ciência da literatura. Entre seus representantes mais conhecidos (Shklóvski, Tiniánov, Eikhenbaum, Óssip Brik), Roman Jákobson, sem dúvida, o mais brilhante linguista do século XX.

Os conceitos desenvolvidos pelo Centro Linguístico de Moscou e a Opoiaz (Círculo para Estudo da Linguagem Poética) são, hoje, centrais em teoria literária: o estranhamento, a surpresa, a intertextualidade, a função poética.

Os teóricos do Centro Linguístico de Moscou trabalhavam em estreita ligação com os poetas mais criativos e inovadores da época (com o crítico e teórico Óssip Brik, Maiakóvski chegou a ter relações mais íntimas ainda, já que dividia com ele os favores e fervores da linda Lília Brik, o grande amor de Maiakóvski, mulher de Óssip, num ménage à trois que o vanguardismo ético daqueles tempos permitia…).

Jákobson chega a dizer que sua intuição linguística da natureza do fonema nasceu do estudo da poesia sonorista, e ilógica do genial Vielímir Khliébnikov, para ele, o poeta mais original do século XX, mestre de linguagem de Maiakóvski e ídolo de todos os futuristas.

Nas artes plásticas também a criatividade russa se expressou com extraordinário vigor, nas duas primeiras décadas do século XX.

É essencial a contribuição dos artistas plásticos russos à arte desse século: Maliévitch, Chagall, Larionov, Pevsner, Kandinsky, El Lissítzki, Naum Gabo, Tátlin, Gontcharova (mulher de Larionov), Rodtchenko (este um dos criadores da arte fotográfica, inventor da fotomontagem).

Vários deles engajaram-se no processo revolucionário de Outubro, buscando uma síntese entre inovação artística e uma nova sociedade.

Em 1917, Chagall foi nomeado comissário do povo para as Artes, em Vitebsk, onde fundou uma oficina de arte popular de vanguarda, com Maliévitch e Lissítzki. Este, engenheiro, pintor, desenhista e arquiteto, inovou na técnica do cartaz e da tipografia, tendo exercido forte influência sobre a estética construtivista e funcional da Bauhaus alemã.

Tátlin, arquiteto, concebeu um dos mais audaciosos projetos arquitetônicos do século XX, um monumento à Terceira Internacional, constituído por um imenso edifício giratório de vidro, que não chegou a se concretizar, evidentemente.

Durante as festividades do primeiro aniversário da Revolução, em 1918, Moscou foi toda decorada com cartazes e motivos abstratos e não figurativos.

Por um momento, a miragem da fusão revolução artística/revolução política parecia não só possível, mas lógica (como era para Maiakóvski): uma nova arte para um novo mundo, novas linguagens para uma nova vida.

Por toda parte (no Brasil, inclusive…), a poesia moderna chegou a ser qualificada, negativamente, de “bolchevismo literário”…

Mas a miragem de uma lua de mel entre a rebeldia das vanguardas e o Estado soviético é pura ilusão, desenvolvida a partir da atuação de Maiakóvski, na poesia, Eisenstein, no cinema, e Meyerhold, no teatro.

Maiakóvski suicidou-se em 1930. Eisenstein acabou domesticado, fazendo filmes patrióticos. Meyerhold desapareceu, depois de preso pela polícia de Stálin. A revolução devorou seus filhos mais talentosos…

Os grandes artistas russos dos anos 1920, porém, não são filhos da Revolução. São os últimos frutos da ordem que acabava de desabar.

Muitos deles se tornaram sinceramente comunistas: o fervor de Maiakóvski não deixa margem para dúvidas. Nas artes plásticas, Chagall, Maliévitch, Tátlin, Lissítzki; os escritores Aleksandr Blok, Iessiênin, Górki, Bábel, Pilniak apoiaram a Revolução, assim como os cineastas Djiga-Viértov e Pudóvkin.

Mas a rebeldia artística que eles representavam, no plano da forma e da inovação de linguagem, não era compatível com a consolidação do “socialismo num só país”. A maior parte deles teve o destino trágico ou doloroso: exilados, desaparecidos, suicidados, confinados em campos de concentração ou simplesmente castrados em sua criatividade pela estupidez artística dos funcionários do Partido, agora, Estado.

A inovação artística se dá muito bem nas temperaturas revolucionárias. Mas fenece quando os regimes se consolidam.

Até hoje, espanta a medíocre esterilidade da arte soviética, no quadro de um país próspero, bem alimentado e cientificamente avançadíssimo.

Em setenta anos de Revolução, a URSS não produziu um só artista realmente inovador: só rotineiros executantes de diretrizes partidárias, funcionários da arte num país de funcionários. A URSS produz a arte mais retrógrada do planeta, indigna de um povo que deu um Tolstói e um Dostoiévski, um Maiakóvski e um Khliébnikov, um Eisenstein e um Meyerhold, um Chagall, um Maliévith, um Stravinsky, um Diaguilev, um Nijinski…

A explicação para esse fato está tanto nas diretrizes culturais do Estado soviético nascente quanto nas limitações artísticas das grandes lideranças da Revolução.

O socialismo russo foi um projeto global de vida coletiva, uma proposta de engenharia social, de cima para baixo. A partir da economia planificada, nenhum aspecto relevante da vida humana ficaria entregue aos acasos da iniciativa privada ou do arbítrio dos indivíduos, gênios ou não.

A República soviética tinha um plano educacional e cultural, visando às massas, em cujo nome, ficcionalmente, os bolcheviques exerceram o mais amplo poder. Não ficaria apenas na alfabetização e escolarização de vastas camadas da população. Teria que se meter no próprio tecido da criatividade artística, coibindo certas tendências, estimulando outras, através dos mecanismos da editoração, da verba para o filme, do acesso aos teatros, às salas de exposição, às colunas de crítica da imprensa, todas nas mãos do Estado onipotente.

O poder soviético não ficou nisso. Chegou, depois, a elaborar uma doutrina oficial em matéria de arte (os bolcheviques sempre foram muito bons em matéria de teoria…): o chamado “realismo socialista”, formulado por Idanov, apoiado por Stálin.

Detalhes à parte, o essencial da doutrina do “realismo socialista” é a interdição da experimentação. Da inovação no plano das formas.

A forma é o social na arte, observou o stalinista húngaro Lukács.

Quem mexe nas formas está mexendo no que não é seu. A produção artística soviética congelou-se no academicismo em todas as áreas, repudiando o não figurativo na pintura, a experimentação verbal na poesia, a inovação estrutural no romance, sempre alegando a necessidade didática e pedagógica de satisfazer o gosto simples das grandes massas, afinal, as donas do país…

Existe um caráter intrinsecamente subversivo na criação artística, que é desejo de liberdade, abertura de novos horizontes, busca de novos espaços. Conservador como todo Estado consolidado, o Estado soviético não poderia compactuar com a essencial subversividade da arte livre.

Durante toda a sua vida, Maiakóvski foi perseguido pela acusação de ser “incompreensível para as massas”, tema, aliás, que usou para fazer um de seus mais belos poemas comunistas. Mas seu suicídio em 1930, um ano depois da expulsão de Trótski, fala mais alto.

Essa situação choca ainda mais, quando constatamos que, num determinado plano, a URSS é uma das nações do mundo onde a cultura artística e literária é mais desenvolvida. O povo russo dispõe das maiores facilidades para escolarização e acesso a livros. O ensino é gratuito. Os livros, imensas edições, são os mais baratos do mundo. As realizações artísticas são estimuladas, financiadas, premiadas. Os artistas, desde que não incomodem, encontram as mais amplas facilidades de sobrevivência.

Mas o exercício da criatividade artística continua sujeito a todo tipo de restrições prévias, que vão do sexual ao formal. Nesse sentido, a arte soviética, a nós, ocidentais, lembra mais o artesanato do que a arte: é o mundo paralisado do artesanato, a arte parada, artificialmente, num determinado momento da sua evolução.

Aqui, de novo, um paradoxo: é a própria difusão e a democratização da cultura, em níveis de massa, que conduzem ao dirigismo artístico e ideológico.

Um livro, no Ocidente, é um objeto cultural que impacta apenas uma elite letrada, explícita ou implicitamente, conivente, com a ordem vigente.

Na URSS, com edições de milhões de exemplares, um livro é um furacão.

Marx, aliás, já dizia que “uma ideia, quando penetra na massa, é uma força material”…

Dialética: a democratização da cultura exige o controle para que essa democratização não venha a chocar os ovos da sua própria destruição…

Os percalços da história da URSS estão marcados por livros: o Doutor Jivago, de Pasternak, a Autobiografia precoce, de Ievtuchenko…

Além do mais, a própria existência onipresente da censura leva a caminhos curiosos: uma ideia liberada é uma ideia que os poderes do Estado referendam, avalizam, favorecem ou patrocinam.

Na URSS, é a própria existência da censura e do dirigismo artístico quem dá testemunho da impressionante amplitude da democratização dos veículos e instrumentos de cultura.

Essa democratização é inegável.

Daí, o fenômeno recente dos artistas soviéticos, como os bailarinos Nureyev e Baryshnikov, ou o cineasta Tarkóvski, que se exilaram no Ocidente, por razões puramente artísticas, sem fazer críticas globais ao modo de vida soviético, democracia social de quem nem podemos fazer ideia no Ocidente capitalista, com suas desigualdades absurdas, analfabetismo, bolsões de miséria e egoísmo generalizado.

Na URSS, a Revolução foi — sobretudo — econômica, social e política.

Não houve, propriamente, uma revolução cultural: apenas uma massificação de oportunidades de acesso ao livro, ao museu, às academias de arte.

Essa situação singular da criatividade artística soviética tem suas raízes, também, no gosto e na formação artística dos grandes líderes de Outubro.

Lênin, por exemplo, intelectual dotado de altos poderes de conceituação filosófica, era, em matéria de arte, um primário.

Clara Zetkin, em suas Recordações acerca de Lênin, reporta uma declaração do líder, que teria dito a um grupo de mulheres:

Somos bons revolucionários mas, não sei por quê, nos sentimos obrigados a provar que estamos à altura da cultura moderna. Eu me atrevo a me declarar um bárbaro. Não consigo considerar como manifestações supremas do gênio artístico as obras do expressionismo, do futurismo, do cubismo, e de outros “ismos”. Não os compreendo. E não me proporcionam o menor prazer.

Os escritores de que gostava eram os clássicos: Tolstói, Púchkin, Shakespeare e (pasmem!) Byron. Consta que chorava ouvindo a “Sonata ao luar”, de Beethoven. Uma ocasião, para homenagear o grande chefe, os vanguardistas prepararam para ele uma peça musical executada pelos apitos dos navios da frota do mar Negro. Lênin levantou-se no meio da homenagem, e se retirou, irritado…

Seu instinto centralizador sempre desconfiou da proliferação caprichosa dos bandos artísticos, surgindo e mudando conforme uma lógica de grupos que o Estado não podia controlar.

Se Lênin era assim, imagine-se Stálin. É célebre sua declaração de que o escritor é um “engenheiro de almas”. Sua visão didática e pedagógica da criação artística é inequívoca e direta.

Evidentemente, desde o início, colocaram-se as questões relativas à utilidade (ou não) da arte. O momento era de construção, de intenso sentimento coletivo, vertigem utópica de edificação de uma nova sociedade: a arte tem que servir. Nisso, estavam de acordo o grupo futurista da LEF e o cada vez mais poderoso movimento de Proletkult (Cultura Proletária), depois RAPP (Associação dos Escritores Proletários).

Em 1923, Maiakóvski fundou a revista LEF (em russo a sigla para Frente Esquerda de Arte), em torno da qual logo se organizou uma grande efervescência teórica e criativa, na direção da fusão das conquistas de linguagem das vanguardas (futurismo, cubo-futurismo, geometrismo, abstracionismo) com um inequívoco engajamento na construção da sociedade socialista.

Maiakóvski era o redator-chefe da revista, na qual colaboravam artistas de primeiríssimo nível: Eisenstein, Pasternak, Djiga-
-Viértov, Isaac Bábel.

A revista (depois como a nova LEF) subsistiu até 1928.

Do outro lado, o Proletkult promovia a criação de uma nova cultura não apenas feita para as massas trabalhadoras, mas por elas. Proliferaram poetas metalúrgicos, atores pedreiros, contistas operários, escritores saídos diretamente da classe trabalhadora e diretamente ligados ao processo do trabalho braçal e fabril. A nós, parece absurdo. A eles parecia lógico. A Revolução não era dos trabalhadores? A eles cabia lançar também os fundamentos da cultura da nova sociedade. Uma cultura com alma proletária, com cheiro de povo, com calos nas mãos.

Seria lindo. Se não fosse equivocado. A arte é fruto da divisão do trabalho: para fazer um bom escritor, leva tanto tempo quanto para fazer dez bons torneiros mecânicos. Da vastíssima produção proletkultista, nada sobrou de esteticamente duradouro.

A LEF, Maiakóvski à frente, combateu o obreirismo cultural do Proletkult. Não pelo obreirismo. Mas pelo primarismo de linguagem de uma literatura feita por semialfabetizados. Seu maniqueísmo de tipos. Sua tendência ao clichê e às fórmulas de fácil efeito. Seu essencial conservadorismo formal. Artisticamente, não teria sentido querer que o proletariado, mal saído da ignorância e do analfabetismo, pudesse criar obras significativas que pudessem competir com os artistas burgueses, herdeiros de séculos de escolaridade, informação e requinte formal.

Do ponto de vista social e político, não há como não admirar a radicalidade da postura proletkultista. Mas esteticamente não funcionou.

A LEF congregava sob sua bandeira os maiores talentos da Rússia pré-revolucionária, todos convertidos à causa do proletariado, mas saídos de camadas cultivadas da pequena e da alta burguesia.

Não se pense, porém, que a LEF propunha uma estetização da arte proletária. Muito pelo contrário.

Pela boca de Maiakóvski, a LEF propunha até mesmo a destruição da arte. Sua desindividualização e desprofissionalização.

No manifesto da LEF, lá está:

a posição fundamental da LEF: contra a ficção, contra o estetismo e o psicologismo em arte, pelo trabalho de propaganda, o jornalismo combativo, a crônica […]. Uma das palavras de ordem, uma das grandes conquistas da LEF é a desestetização das artes aplicadas, o construtivismo. Seu complemento poético é o poema de agitação econômica: o anúncio publicitário […].

Não se pode ser mais radical.

Linguagem inovadora a serviço do combate político direto: o Proletkult não ia tão longe… Queria apenas que os operários também escrevessem seus versos e suas narrativas simples.

Nessa “desestetização das artes aplicadas”, do construtivismo da LEF, podemos vislumbrar um parentesco com as preocupações da Bauhaus alemã, fundada em 1919, matriz do design industrial moderno e da chamada “arte funcional” (Gropius, Mies Van Der Rohe e Moholy-Nagy, que sofreu influência do construtivista russo, El Lissítzki).

O titanismo prometeico da LEF não vingou. Prevalecerá o prudente primarismo populista do Proletkult. Foi contra os proletkultistas que Maiakóvski lançou a frase-síntese do programa da LEF: “sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”. O Proletkult não podia ir tão longe. Os operários nem sabem o que é forma literária…

Como podem querer revolucionar o que nem conhecem?

Em seu ensaio sobre “O futurismo”, Trótski formula muito bem essa contradição dos futuristas da LEF:

esse apelo (da LEF) torna-se um disparate evidente, tão logo o dirigem ao proletariado. A classe operária não rompe nem pode romper com a tradição literária, porque não se encontra presa, de modo algum, a essa tradição. A classe operária não conhece a velha literatura. Deve ainda familiarizar-se com ela, dominar Púchkin, absorvê-lo e, assim, superá-lo. A ruptura dos futuristas com o passado representa, sobretudo, uma tempestade no mundo fechado da intelligentsia.

Na primeira metade dos anos 1920, os choques entre Proletkult e tudo o que a LEF representava, ambos lutando pela nova arte da nova sociedade, foram extraordinariamente fecundos. Ligados à LEF e suas plataformas os maiores talentos artísticos da Rússia, alguns dentre os maiores artistas deste século: Eisenstein, Meyerhold, El Lissíntzki, Trétiakov.

O titânico programa gorou. Em 1930, o próprio Maiakóvski capitula, aderindo à RAPP, proletkultista. Nesse mesmo ano, suicida-se.

O fracasso da LEF, no entanto, não deve ser atribuído apenas a pressões do Estado ou dos poderes. Lênin e Trótski eram contrários ao obreirismo primário do Proletkult. Eles, intelectuais sofisticados, nutridos de toda cultura europeia, lendo em várias línguas, sabiam que o Proletkult não ia além de um populismo ingênuo e bem-intencionado (com um certo sabor naródniki).

As tendências proletkultistas acabaram prevalecendo por força mesmo do primarismo das suas propostas: a proposta do Proletkult obteve apoio compacto junto às massas trabalhadoras.

Maiakóvski e o grupo da LEF faziam uma proposta muito acima da capacidade de compreensão das imensas massas recém-libertadas da ignorância e do analfabetismo, ávidas por se integrar à “cultura”…

Em seus últimos anos, Maiakóvski, um poeta oral, de espetáculo, foi implacavelmente perseguido pela acusação de ser “incompreensível para as massas”.

Um dia, acossado além da medida, prorrompeu num choro convulsivo, dizendo:

— Depois que eu morrer, vocês vão ler meus versos com lágrimas de emoção.

Realmente. Depois de sua morte, o stalinismo, proletkultista, acabou transformando-o numa espécie de totem literário da Revolução. Stálin mesmo reconheceu: “é o poeta mais talentoso da era soviética”. Hoje, na URSS, Maiakóvski é nome de praça, tem estátua pública e o pequeno quarto onde viveu é o museu Maiakóvski, ele, que era inimigo jurado de todos os museus…

Dos grandes chefes da Revolução, foi Trótski quem teve a abordagem mais flexível e abrangente da questão cultural. Mas não muito… Os bolcheviques, intelectualmente, eram um grupo excepcionalmente homogêneo, apesar das diferenças individuais. Ocorre que Trótski era homem de gosto literário muito cultivado. Escritor de tremenda força (algumas páginas da História da Revolução Russa são obras-primas de vigor e finura), conhecia o romance francês, a poesia inglesa e alemã, que lia no original.

Era suficientemente aculturado para saber que a arte não pode ser conduzida a chicote como um mongol conduz sua manada para os pastos da primavera. Parece que achava que o Partido não deveria interferir nas controvérsias e entrechoques dos grupos artísticos que apoiavam a Revolução. O Partido não é, dizia, um círculo literário. É o representante e defensor dos interesses globais da classe trabalhadora. A arte não é um terreno onde o Partido possa mandar.

Mas essa visão quase liberal é, de repente, corrigida pelo instinto centralizador do líder, do comissário da guerra, do bolchevique:

o Partido, evidentemente, não pode entregar-se ao princípio liberal do laissez-faire, laissez-passer, mesmo na arte, mesmo por um só dia. A questão é saber quando deve intervir, em que medida e em que caso. O Partido orienta-se por critérios políticos e repele, na arte, as tendências nitidamente perniciosas e desagregadoras.

O Partido, claro, saberia distinguir essas tendências das tendências sadias…

No que diz respeito às vanguardas artísticas que ferviam na época, sua posição não diferia muito da de Lênin.

Suas posturas em matéria de arte e literatura estão mais bem expressas no volume Literatura e revolução, onde aborda temas como “O futurismo”, “A cultura e a arte proletárias”, “A política do Partido na arte” ou “Arte revolucionária e arte socialista”.

Esse livro tem uma história curiosa.

Foi fundamentalmente escrito no verão de 1922. Trótski pretendia apenas redigir o prefácio para a edição estatal das suas Obras, que estava para sair. Mas Trótski era acometido de uma verdadeira grafomania, índice de sua exuberância teórica e argumentativa: nunca se contentou apenas em fazer. Ele tinha que dizer, para si e para os outros, o que significava o que estava fazendo. Era um obcecado pelo sentido: não se conformava em viver num mundo sem significado.

E assim, em vez de um mero prefácio, saiu um livro inteiro, a mais lúcida meditação sobre arte e literatura deixada por um bolchevique.

Em matéria de gosto literário, porém, o comissário da guerra não tinha posições tão avançadas quanto na área política ou econômica.

Entre o simbolista místico Aleksandr Blok e o comuno-futurista Maiakóvski, fica com o primeiro, autor, para ele, da “obra mais significativa de nossa época”.

Blok, sem dúvida, é um alto poeta. Em seu longo poema “Os doze”, exalta a revolução dos miseráveis e oprimidos, numa marcha alegórica da multidão sob a neve, conduzida por Cristo, o Cristo vermelho de alguns comunistas de linhagem mística. Sobre ele, Trótski afirma: “‘Os doze’ é um poema que permanecerá para sempre”.

Sobre Maiakóvski, Trótski mantém uma posição bem mais compreensiva que o sono de Lênin. No capítulo X, de Literatura e revolução, “O suicídio de Maiakóvski”, Trótski reconhece, com agudeza:

Havia, em Maiakóvski, reflexos de gênio. Não era, porém, um talento harmonioso. Onde se poderia, aliás, encontrar harmonia artística neste decênio de catástrofes, no limite não cicatrizado de duas épocas? Na obra de Maiakóvski, os cumes despontam ao lado dos abismos, manifestações de gênio explodem ao lado de estrofes banais, às vezes mesmo de uma vulgaridade gritante.

Ao fino gosto de Trótski não escapariam as desigualdades, os desníveis da caudalosa obra poética de Maiakóvski, que, realmente, não consegue se manter sempre à altura de si mesmo. Principalmente nos poemas mais engajados, a serviço de alguma causa imediata, o gigante da poesia soviética erra. Seu longo poema “Lênin”, por exemplo, é um mero exercício de grandiloquência vazia: o grande Maiakóvski está alhures, nos poemas iniciais, radicalmente experimentais, nos poemas de amor, nas peças de circunstância…

Lênin, certamente, não tinha tempo (nem sensibilidade) para examinar assim de perto a obra de Maiakóvski.

Já o ensaio “O futurismo”, em Literatura e revolução, é uma das análises mais profundas jamais feitas sobre esse movimento, fundador da modernidade. Nele, Trótski analisa o modo como um gesto artístico e literário se insere no tecido vivo da história, aponta, lúcido, suas contradições, reconhece suas grandezas e mapeia seus limites.

E reconhece que o futurismo está trazendo uma contribuição importante a ser incorporada pela arte da nova sociedade (o que não aconteceu).

Mas o futurismo levantava uma questão que, essa sim, era de importância vital para a nova sociedade que surgia: a questão da continuidade e/ou ruptura com a tradição cultural passada.

Foi exatamente aqui que se deram as lutas mais importantes no front cultural e artístico.

O futurismo, movimento surgido nas altas classes cultivadas, preconizava uma negação do contributo passado, do imenso lastro cultural dos séculos, em prol de uma quase idolatria do mundo moderno, da técnica e da máquina.

Não admira que tenha surgido, com Marinetti, na Itália sufocada sob o peso de um passado esplêndido, mas decrépito, um país-museu, o túmulo do Renascimento.

Na Rússia, o apelo futurista tomou outra coloração: na Itália, era fascista, na Rússia, seria comunista. O culto à máquina e ao mundo industrial, do futurismo marinettiano, na Rússia, parecia coincidir com ímpeto de industrialização que o comunismo representava.

Mas, em matéria de política cultural, a questão crucial era a atitude a tomar em relação à contribuição do passado, burguês ou czarista.

Os bolcheviques acabavam de anular todas as estruturas econômicas, políticas e sociais do mundo burguês, em direção a uma democracia proletária.

E a cultura? Seria possível recusar também as obras artísticas do passado?

Seria o proletariado capaz de recriar a cultura a partir de zero, fundando novas formas, novos padrões formais, um novo gosto, uma nova estética, uma nova poética?

Lênin e Trótski não eram idiotas. Sabiam que isso não era possível. O comunismo teria que ser o herdeiro de toda a cultura passada, escravagista, feudal, burguesa. Os dois líderes tinham consciência muito nítida do caráter de carência da condição trabalhadora. Sabiam muito bem que o trabalhador, fabril ou agrário, caracteriza-se pela ignorância, pelo conservadorismo, mais obtuso, pela superstição, pela pobreza mental de horizontes, pelo imediatismo de visão política.

Não era dessa classe que viria uma nova cultura, uma cultura que pudesse produzir pintores como Michelangelo, romancistas como Balzac ou pensadores como Marx.

É aqui que se agudiza a discussão sobre o Proletkult.

Lênin sempre se opôs à tentativa de criação de uma “cultura proletária”, in vitro. O papel histórico do proletariado, nesse momento de transição, era assimilar a cultura burguesa passada.

Trótski vai mais longe, afirmando que a ditadura do proletariado era apenas um momento de transição, não podendo, assim, produzir uma cultura própria. Esta só viria no estágio posterior, com o homem socialista já livre dos entraves da sociedade de classes.

Essa discussão, nos termos em que foi colocada nos inícios dos anos 1920, ocuparia depois (e até hoje) um lugar decisivo no pensamento soviético sobre arte e cultura.

Que coisas, e de que maneira recuperar o passado cultural da humanidade numa sociedade socialista?

Nessa questão, ocupou papel importante o comissário bolchevique da Instrução, Anatol Lunatcharski, que apoiou o Proletkult, promovido por Bogdanov e Lebedev-Polianski. Mesmo assim Lunatcharski, que era, ele mesmo, um intelectual, dramaturgo, crítico literário, favoreceu um clima de livre movimentação para futuristas e outros grupos de vanguarda.

Literatura e revolução termina com um retrato in memoriam de Lunatcharski em que Trótski, com todo o seu amor à verdade, rende preito ao camarada, em suas grandezas e fraquezas, num retrato implacável e, ao mesmo tempo, terno.

Trótski deixou imensa produção textual. Mas foi, certamente, em Literatura e revolução que formulou com maior clareza suas utopias mais vastas, a medida de amplidão do sonho revolucionário que o consumia e o impulsionava.

Sobre a fusão da arte com a vida, pretendida pelos futuristas:

A separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classe da sociedade […]. A evolução da arte, no futuro, seguirá o caminho de uma crescente fusão com a vida […]. Mais de uma geração virá e desaparecerá, entre a pobreza econômica e cultural dos dias de hoje, e o momento em que a arte se fundirá com a vida, quando a vida enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte.

Já exilado e perseguido, no México, Trótski receberá a visita do surrealista André Breton, comunista e desvairista militante, disposto a colocar o sonho e a escrita automática a serviço da causa do proletariado. Só então dirá: “a arte só pode ser o grande aliado da revolução na medida em que permanecer fiel a si mesma”. Agora, era muito tarde. Ele não é mais senhor de nenhum país, de nenhum exército, de nenhum governo. E talvez ainda seja muito cedo para sonhar um sonho do tamanho do sonho que ele sonhou, no final do ensaio “Arte revolucionária e arte socialista”, capítulo 8 daquele Literatura e revolução, em 1922, ainda comissário da guerra, ainda khan:

A humanidade sairá do período das guerras civis empobrecida, em consequência de terríveis devastações, sem falar dos tremores de terra como o que acaba de ocorrer no Japão. O esforço para vencer a pobreza, a fome, a necessidade, em todas as suas formas, isto é, para domesticar a natureza, dominará a nossa preocupação, durante dezenas e dezenas de anos. A paixão pelo progresso mecânico, como na América, marcará toda a jovem sociedade socialista. A contemplação passiva da natureza desaparecerá da arte. A técnica tornar-se-á a inspiração mais poderosa do trabalho artístico. E mais tarde, a oposição entre a técnica e a arte se resolverá numa síntese mais elevada.

Os sonhos pessoais de alguns entusiastas de hoje, que procuram dar à vida qualidades dramáticas e educar o homem na harmonia do ritmo, coadunam-se coerentemente com essa perspectiva. O homem, nacionalizando a economia, penetrando-a com a sua consciência e planificando-a, não deixará qualquer vestígio da atual vida cotidiana. A tarefa cansativa de alimentar e educar as crianças passará da família para a iniciativa pública. A mulher sairá enfim de sua semiescravidão. Ao lado da técnica, a pedagogia formará, psicologicamente, novas gerações e regerá a opinião pública. Experiências de educação social, na emulação de métodos, atingirão níveis até agora inconcebíveis. O modo de vida comunista não crescerá cegamente como os recifes de coral no mar, mas controlado, dirigido e retificado, de forma consciente, pelo pensamento crítico. O homem, que saberá deslocar rios e montanhas, que saberá construir palácios do povo nas alturas do monte Branco ou no fundo do Atlântico, dará à sua existência riqueza, cor, intensidade dramática e o maior dinamismo. Mal uma crosta comece a formar-se sobre a superfície da vida humana e estourará sob a pressão de novas invenções e realizações. Não, a vida do futuro não será monótona.

O homem, enfim, começará seriamente a harmonizar seu próprio ser. Tentará obter maior precisão, discernimento, economia e, por conseguinte, beleza nos movimentos de seu próprio corpo, no trabalho, no andar, no divertimento. Tentará dominar os processos semiconscientes e inconscientes de seu próprio organismo: a respiração, a circulação do sangue, a digestão, a reprodução. E, nos limites inevitáveis, desejará subordiná-los à razão e à vontade. A espécie humana, congelada no Homo sapiens, transformar-se-á radicalmente e se tornará, sob as suas próprias mãos, em objeto dos mais complexos métodos de seleção artificial e dos exercícios psicofísicos.

Essas perspectivas decorrem de toda a evolução do homem. Ele começou por expulsar as trevas da produção e da ideologia, por quebrar, por meio da técnica, a bárbara rotina de seu trabalho e por triunfar sobre a religião pela ciência. Expulsou o inconsciente da política, derrubando as monarquias e substituindo-as pela democracia e pelo parlamentarismo racionalista, depois pela clara e transparente ditadura dos sovietes. E, pela organização socialista, elimina a espontaneidade cega, elementar, das relações econômicas. O que permite reconstruir em outras bases, a vida da família. A natureza do homem esconde-se nos recônditos mais obscuros do inconsciente. Não resulta claro que, para libertá-la, se voltem o pensamento e a iniciativa criadora? A espécie humana, que parou de rastejar diante de Deus, do czar e do capital, deveria capitular diante das leis obscuras da hereditariedade e da cega seleção sexual? O homem libertado buscará melhor equilíbrio no funcionamento de seus órgãos e mais harmonioso desenvolvimento de seus tecidos. Manterá assim o medo da morte nos limites de uma reação racional do organismo em face do perigo. Não há dúvida, com efeito, de que a falta de harmonia anatômica e fisiológica, a extrema desproporção no desenvolvimento de seus órgãos ou a utilização de seus tecidos provocam esse medo histérico, mórbido, da morte, turvando o raciocínio e alimentando as humilhantes e estúpidas fantasias de outra vida.

O homem esforçar-se-á para dirigir seus próprios sentimentos, para elevar seus instintos ao nível do consciente e torná-los límpidos, para orientar a sua vontade nas trevas do inconsciente. Levantar-se-á, assim, a um estágio mais elevado da existência e criará um tipo biológico e social superior, um super-homem, se isso lhe agrada.

É tão difícil predizer a extensão do autocontrole suscetível de alcançar-se como prever até onde o homem desenvolverá a sua técnica, seu domínio sobre a natureza. A construção social e a autoeducação psicofísica tornar-se-ão duas faces de um só processo. E todas as artes — literatura, teatro, pintura, escultura, música e arquitetura — darão a esse processo uma forma sublime. Mais exatamente, a forma que revestirá o processo de edificação cultural e de autoeducação do homem comunista desenvolverá ao mais alto grau os elementos vivos da arte contemporânea. O homem tornar-se-á incomparavelmente mais forte, mais sábio e mais sutil. Seu corpo tornar-se-á mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E, sobre ela, se levantarão novos cimos.

 

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Misérias da Guerra Civil.
Desenho: Maiakóvski.

 

 

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O sonho do campo feliz: pão, paz e tratores…
Desenho: Maiakóvski.

 

 

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Revolução no campo: o mujique começa a ler…
Desenho: Maiakóvski.

 

 

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Vodca, o ópio do povo.
Desenho: Maiakóvski.