apêndices

 

 

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Fardado, o comissário da guerra arenga às tropas do Exército Vermelho, durante
a Guerra Civil.

apêndice 1
uma ordem do dia do comissário da guerra

 

 

 

 

Krasnov e os capitalistas estrangeiros que o apoiam lançaram no front de Voronej centenas de seus agentes mercenários que penetraram de diversas formas nas unidades do Exército Vermelho onde conduzem o trabalho sujo de decomposição e incitação à deserção. Em algumas unidades pouco firmes do front de Voronej, observam-se sinais de indisciplina, covardia e mercantilismo. Enquanto em todas as outras frentes, nossas tropas vermelhas perseguem o inimigo e avançam, no front de Voronej, há frequentemente retiradas absurdas, criminosas e uma decomposição de regimentos inteiros.

Declaro que, de agora em diante, medidas implacáveis vão botar um fim nessa situação.

1. Todo canalha que incitar a retirada, a deserção ou a não execução de uma ordem superior será fuzilado.

2. Todo soldado do Exército Vermelho que abandonar seu posto de combate, por sua própria conta, será fuzilado.

3. Todo soldado que jogar fora o fuzil ou vender partes de seu equipamento será fuzilado.

4. Em toda a zona do front, estão estabelecidos destacamentos para dar caça aos desertores. Todo soldado que tentar opor resistência a esse destacamento será fuzilado no ato.

5. Quem abrigar ou esconder desertores será fuzilado.

6. As casas onde forem descobertos desertores serão queimadas.

Morte aos mercenários e traidores!

Morte aos desertores e aos agentes de Krasnov!

Vivam os bons soldados do Exército Vermelho operário e camponês!

Ass.: Liev Trótski,

presidente do Conselho

Militar Revolucionário, aos exércitos do Sul,

24 de outubro de 1918

apêndice 2
cinema X religião

 

 

 

 

O divertimento e a distração representam um enorme papel nos ritos da Igreja. A Igreja age por métodos teatrais sobre a vista, o ouvido e o olfato (o incenso!) e, através dele, age sobre a imaginação. No homem, a necessidade de espetáculo — ver e ouvir qualquer coisa de não habitual e de colorido, qualquer coisa para além do acinzentado do cotidiano — é muito grande, é irremovível, e persegue-o desde a infância até a velhice. Para libertar as largas massas desse ritual, dessa religiosidade rotineira, a propaganda antirreligiosa não basta, embora seja necessária. A sua influência limita-se apenas a uma minoria ideologicamente mais informada. Se as largas massas não se submetem à propaganda antirreligiosa, não é porque sejam fortes os seus laços com a religião; é, pelo contrário, porque não têm nenhum vínculo ideológico, mantendo com a Igreja relações uniformes, rotineiras e automáticas de que não têm consciência, como o basbaque que não recusa participar de uma procissão, ou uma solenidade faustosa, ouvir cânticos ou agitar as mãos. É esse ritualismo sem fundamento ideológico que, pela sua inércia, se incrusta na consciência, e do qual a crítica, por si só, não pode triunfar, mas que se pode desagregar por meio de novas formas de vida, por novas distrações, por uma nova espetaculosidade de efeitos culturais.

E aqui o pensamento volta-se, de novo, naturalmente, para o instrumento mais poderoso por ser o mais democrático: o cinema. O cinema não carece de uma hierarquia diversificada, de brocados ostentosos etc.; basta-lhe um pano branco para fazer nascer uma espetaculosidade muito mais penetrante do que a da igreja, da mesquita ou da sinagoga mais rica ou mais habituada às experiências teatrais seculares. Na igreja apenas se realiza um ato, aliás sempre igual, ao passo que o cinema mostrará que na vizinhança ou do outro lado da rua, no mesmo dia e à mesma hora, se desenrolam simultaneamente a Páscoa pagã, judia e cristã. O cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e afasta o desejo de entrar na igreja. Tal é o instrumento de que devemos saber fazer uso, custe o que custar.

 

Trótski, “A vodka, a igreja e o cinema”, em Questões do modo de vida

[Lisboa: Antídoto, 1979; Tradução de Diego Siqueira e Daniel Oliveira. São Paulo: Sundermann, 2009; Les Questions du mode de vie (1923).]

apêndice 3
um testamento

1. o testamento de Leon

Minha pressão sanguínea elevada (e que continua a elevar-se) engana àqueles que me são próximos sobre minhas reais condições físicas. Estou ativo e capaz de trabalhar, mas o fim está evidentemente próximo. Estas linhas serão tornadas públicas após minha morte.

Não preciso mais uma vez refutar aqui a calúnia vil de Stálin e seus agentes: não há uma só mancha sobre minha honra revolucionária. Não entrei, nem direta nem indiretamente, em nenhum acordo, ou mesmo em nenhuma negociação de bastidores, com os inimigos da classe operária. Milhares de adversários de Stálin tombaram, vítimas de falsas acusações. As novas gerações revolucionárias reabilitarão sua honra política e tratarão seus carrascos do Kremlin como eles merecem.

Agradeço ardentemente aos amigos que se mantiveram leais através das horas mais difíceis de minha vida. Não cito nenhum em particular, porque não os posso citar todos.

Apesar disso, considero-me no direito de fazer exceção para o caso de minha companheira, Natália Ivanovna Sedova. Além da felicidade de ser um combatente da causa do socialismo, quis a sorte me reservar a felicidade de ser seu esposo. Durante quarenta anos de vida comum, ela permaneceu uma fonte inesgotável de amor, magnanimidade e ternura. Sofreu grandes dores, principalmente no último período de nossas vidas. Encontro algum conforto no fato de que ela conheceu também dias de felicidade.

Nos quarenta e três anos de minha vida consciente, permaneci um revolucionário; durante quarenta e dois destes combati sob a bandeira do marxismo. Se tivesse que recomeçar, procuraria evidentemente evitar este ou aquele erro, mas o curso principal de minha vida permaneceria imutável. Morro revolucionário proletário, marxista, partidário do materialismo dialético e, por consequência, ateu irredutível. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é menos ardente; em verdade, ela é hoje mais firme do que foi nos dias de minha juventude.

Natascha acabou de chegar pelo pátio até a janela e abriu-a completamente para que o ar possa entrar mais livremente em meu quarto. Posso ver a larga faixa de verde sob o muro, sobre ele o claro céu azul, e por todos os lados, a luz solar. A vida é bela. Que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente.

Leon Trótski

Coyoacán, 27 de fevereiro de 1940

2. post-scriptum

Diante da natureza de minha doença (pressão sanguínea elevada e em constante elevação) parece-me que o fim chegará de repente e, provavelmente — é ainda uma hipótese pessoal —, por uma hemorragia cerebral. É o melhor dos fins que eu poderia desejar. É possível, entretanto, que eu me engane (não tenho a menor vontade de ler livros especializados, e os médicos naturalmente não me dirão a verdade). Se a esclerose tiver que assumir um caráter prolongado e eu for ameaçado de uma longa invalidez (neste momento, pelo contrário, sinto até uma intensa energia espiritual devida ao subir da pressão, mas isso não durará muito), reservo-me o direito de determinar por mim mesmo o momento de minha morte. O “suicídio” (se é esse o termo apropriado) não será, de maneira alguma, a expressão de uma explosão de desespero. Natascha e eu já nos dissemos mais de uma vez que, se chegados a uma tal condição física, preferiremos encurtar a própria vida, ou mais exatamente, o longo processo de agonia. Mas, sejam quais forem as condições de minha morte, morrerei com uma fé inquebrantável no futuro comunista. Esta fé no homem e em seu futuro dá-me, mesmo agora, uma tal força de resistência como religião alguma poderia me fornecer.

Leon Trótski

3 de março de 1940

apêndice 4
um poema

 

 

 

 

o velho leon e natália em coyoacán*

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia

o céu vai estar limpo e o sol brilhando

você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia

apenas você nua e eu como nasci

eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia

silêncio nós dois murmúrios azuis

eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia

nada como um dia indo atrás do outro vindo

você e eu sonhando e dormindo

PAULO LEMINSKI

 

 

 

 


* In.: Toda poesia, Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.