A conjectura da bolha de sabão
Todos os físicos do mundo conhecem a conformação assumida por duas bolhas unidas. Toda criança que já brincou com bolhas de sabão também. Todos os matemáticos do mundo conhecem a conformação que as duas bolhas deveriam assumir ao se unirem.
Alguns poucos matemáticos extremamente inteligentes conseguiram agora provar que todos os outros estão certos.
O dodecaedro, uma forma matemática conhecida, tem 20 vértices, 30 arestas e 12 faces — cada uma com 5 lados (Figura 12.1). Mas qual sólido possui 22,84 vértices, 34,25 arestas e 13,42 faces — cada uma com 5,103 lados? Talvez algum tipo de fractal elaborado? Afinal, os fractais — essas formas complexas que Benoit Mandelbrot transformou numa teoria abrangente sobre as irregularidades da natureza — podem ter dimensões não inteiras, portanto, por que não vértices não inteiros? Não, este sólido é uma forma comum e conhecida, que você provavelmente encontrará na sua própria casa. Procure-o ao beber um copo de refrigerante ou cerveja, ao tomar um banho ou ao lavar a louça.
É claro que estou trapaceando. Podemos encontrar o meu sólido bizarro numa casa típica da mesma maneira que podemos encontrar 2,3 crianças numa família típica. Ele não existe como um único objeto, e sim como uma média. E não é um sólido, é uma bolha — a bolha “média” numa massa de espuma. As espumas contêm milhares de bolhas, amontoadas como minúsculos poliedros irregulares — e o número médio de vértices desses poliedros de espuma é 22,9, o número médio de arestas é 34,14 e o de faces é 13,39. Se a bolha média realmente existisse, seria como um dodecaedro, só que um pouquinho maior.
Figura 12.1
O dodecaedro.
As bolhas fascinam a humanidade desde a invenção do sabão; as espumas existem desde o início dos tempos. Mas a matemática das bolhas e espumas só ganhou impulso na década de 1830, quando o físico belga Joseph Plateau começou a mergulhar grades de metal numa solução de sabão, obtendo resultados impressionantes. Apesar de 170 anos de pesquisas, ainda não temos as explicações — ou mesmo descrições — matemáticas completas de muitos dos fenômenos observados por Plateau. Um caso notório, até pouco tempo atrás, era a conjectura da bolha dupla, que descreve a forma gerada quando duas bolhas se juntam. Todos “sabem” que a forma deve ser semelhante à da Figura 12.2.a — mas que tal a Figura 12.2b, por exemplo? Por que não pode ocorrer?
No entanto, já compreendemos muitos outros fenômenos observados por Plateau, e os experimentos com filmes de sabão ajudaram muitas vezes os matemáticos a desenvolver provas rigorosas de outros importantes teoremas geométricos. Quando Plateau começou a trabalhar com bolhas, estava perdendo a visão. Em 1829, ele realizou um experimento óptico no qual olhou diretamente para o sol durante 25 segundos: isso lesou sua visão, e em 1843 ele já estava completamente cego. Mas a perda da visão não o impediu de dar grandes contribuições à área mais intensamente visual da matemática — a geometria tridimensional. De fato, ele continuou a trabalhar nessa área por muito tempo depois de perder os últimos resquícios de visão.
Figura 12.2
(a) A conjectura da bolha dupla determina que, quando duas bolhas se aglutinam, elas formam duas esferas que se encontram a 120º ao longo de uma margem esférica.
(b) Outras possibilidades a serem descartadas incluem esse amendoim numa boia.
Bolhas e filmes de sabão são exemplos de um conceito matemático extremamente importante conhecido como “superfície mínima”. Trata-se de uma superfície cuja área é a menor possível, sujeita ao preenchimento de certas condições adicionais.
As superfícies mínimas surgem na matemática das bolhas por um efeito físico chamado tensão superficial. A superfície de um líquido se comporta como se fosse elástica, parecida a uma fina película de borracha. Se você tentar esticá-la, uma força se opõe ao estiramento. A força é causada pela estrutura das moléculas na superfície, que é diferente da que encontramos no interior do líquido graças à ausência de algumas de suas ligações químicas. O resultado da tensão superficial é o armazenamento de energia na superfície.
A matemática das ligações químicas ausentes é notavelmente complicada; mas podemos usar uma aproximação simples e bastante precisa se estivermos interessados apenas na forma geral da superfície, e não nos detalhes moleculares. Ocorre que a energia gerada pela tensão superficial num filme de sabão é proporcional à sua área.
Uma bolha de sabão é uma superfície mínima — ou seja, uma superfície com área mínima — porque, “na verdade”, é uma superfície de energia mínima. Como, para a tensão superficial, a energia é igual à área (bom, são proporcionais, o que é a mesma coisa, acrescentando-se algum fator constante), minimizar a área é o mesmo que minimizar a energia. E o fato é que a natureza gosta de minimizar a energia — portanto as bolhas minimizam a área.
Por exemplo, podemos provar matematicamente que a superfície de menor área que circunda um volume dado é uma esfera — esse é o motivo pelo qual as bolhas de sabão são esféricas. Uma bolha de sabão circunda um volume fixo de ar, e um filme de sabão é tão fino — cerca de um milionésimo de metro — que se parece bastante com uma superfície matemática infinitamente fina. (As bolhas em movimento são uma questão à parte, pois existem forças dinâmicas que podem fazê-las oscilar, gerando todo tipo de forma fantástica.) A ideia das superfícies mínimas tem muitas aplicações — na biologia, química, cristalografia e até mesmo na arquitetura.
Se não houver restrição, a área da superfície mínima será igual a zero — que é, afinal, a menor de todas as áreas possíveis. As restrições mais comuns são as que determinam que a superfície deve circundar um volume dado, que sua margem deve se apoiar em uma superfície dada, que sua margem deve ser curva, ou alguma combinação dessas condições. Por exemplo, uma bolha apoiada sobre a superfície plana de uma mesa geralmente tem a forma de um hemisfério, que é a menor área de superfície que circunda um certo volume e que tem uma margem apoiada num plano (a superfície da mesa).
Plateau tinha especial interesse por superfícies cuja margem fosse alguma curva escolhida. Em seus experimentos, a curva era representada por um pedaço de arame, dobrado numa certa forma, ou diversos arames unidos, formando uma armação. Qual é, por exemplo, a forma de uma superfície mínima cuja margem seja constituída por dois círculos idênticos “paralelos”? Podemos pensar que talvez se trate de um cilindro. No entanto, essa ideia pode ser aprimorada. Leonhard Euler provou que a verdadeira superfície mínima com tais margens é uma catenoide (Figura 12.3), formada quando giramos uma curva em U, chamada catenária, ao redor de um eixo que corre pelos centros de dois círculos. A catenária é a forma gerada por uma corrente pesada e uniforme sob a ação da gravidade: é bastante parecida a uma parábola, mas com uma forma ligeiramente mais larga. Podemos demonstrar o teorema de Euler construindo dois anéis circulares de arame, com cabos por onde possamos segurá-los — como uma rede de caçar borboletas. Basta unirmos os dois anéis, mergulhá-los numa solução de sabão ou detergente e depois separá-los, revelando a catenoide em sua beleza cintilante.
Uma das descrições mais famosas da matemática dos filmes de sabão encontra-se no clássico O que é matemática?, de Richard Courant e Herbert Robbins. Os autores descrevem alguns dos experimentos originais de Plateau, nos quais ele mergulha as estruturas de arame em formatos de poliedros regulares no sabão. O caso mais simples, que os autores não discutem, surge quando a estrutura é um tetraedro, uma forma com quatro faces triangulares e seis arestas iguais. Nesse caso, a superfície mínima é formada por seis triângulos, que se encontram no centro do tetraedro (Figura 12.4.a). Uma estrutura cúbica de arame leva a um arranjo mais complicado de 13 superfícies praticamente planas (Figura 12.4.b). Os matemáticos compreendem completamente o caso do tetraedro, mas ainda não desenvolveram uma análise completa para o cubo.
Figura 12.3
Catenoide: a menor superfície de margem constituída por dois círculos idênticos.
Figura 12.4
(a) Filme de sabão numa estrutura tetraédrica forma suas superfícies planas
(b) Filme de sabão numa estrutura cúbica forma 13 superfícies quase planas.
A estrutura tetraédrica ilustra duas importantes características gerais dos filmes de sabão, observados empiricamente por Plateau. Ao longo das linhas que correm dos vértices da estrutura ao seu ponto central, os filmes de sabão se encontram de três em três, em ângulos de 120°; no ponto central, quatro arestas se encontram em ângulos de 109° 28’. Esses dois ângulos são fundamentais em qualquer problema que envolva filmes de sabão em contato. Os ângulos de 120° entre as faces e de 109° 28’ entre as arestas surgem não só no tetraedro regular, como também em qualquer outro arranjo de filmes de sabão — desde que não exista ar aprisionado no interior, ou, caso exista, que as pressões nos dois lados do filme sejam iguais, anulando assim uma à outra.
Os filmes numa espuma são ligeiramente encurvados, mas podem ser aproximados por faces planas: com essa aproximação, observaremos os dois ângulos citados no interior da espuma, mas não nos filmes próximos às suas superfícies externas. Esse fato é a base de um cálculo curioso, que leva aos números estranhos com os quais comecei este capítulo. Se fingirmos que a espuma é feita de muitos poliedros idênticos cujas faces são polígonos regulares com ângulos de 109° 28’ (o que é impossível, mas e daí?), podemos estimar o número médio de vértices, arestas e faces em qualquer espuma (veja o boxe).
A observação de Plateau sobre o ângulo de 120° se estabeleceu rapidamente como um fato matemático. A prova geralmente é creditada ao grande geômetra Jacob Steiner, em 1837, mas Evangelista Torricelli e Francesco Cavalieri já haviam resolvido o problema muitos anos antes, encontrando uma prova em 1640. Todos esses matemáticos, na verdade, estudaram um problema análogo, relacionado a triângulos. Dado um triângulo e um ponto em seu interior, desenhe três linhas que unam esse ponto aos vértices do triângulo e some seus comprimentos. Em qual ponto obtemos a menor distância total? Resposta: no ponto onde as três linhas se encontram em ângulos de 120°. (Isto é, desde que nenhum ângulo do triângulo tenha mais de 120°: caso contrário, o ponto se situará no vértice correspondente.) Podemos reduzir o problema dos filmes de sabão ao dos triângulos utilizando um plano que se cruze com os filmes.
Uma espuma peculiar
Suponha que as bolhas de uma espuma sejam poliedros regulares, cujas faces sejam polígonos regulares com n lados, e que os ângulos entre esses lados sejam todos X = 109° 28’. Como tal objeto não existe, vamos chamá-lo de “espumoedro” e fingir que existe. Digamos que o espumoedro tenha V vértices, F faces e A arestas.
Sabe-se bem que num polígono regular com n lados e ângulo X (medido em graus), devemos ter n = 360/(180 - X). (Por exemplo, se o ângulo for de 90°, então n = 360/ 90 = 4, um quadrado, como era de se esperar.) Isso ocorre porque existem n ângulos externos de 180 - X, cuja soma deve ser igual a 360°. Com X = 109° 28’, essa equação determina que o espumoedro tem n = 5,104 lados.
A partir daqui, o cálculo fica um pouco mais complicado. Em cada vértice do espumoedro há um encontro de três faces — porque X é maior que 90°, mas menor que 120°. Portanto, o ângulo total em cada vértice é igual a 3X. Entretanto, podemos encontrar o mesmo valor somando todas as faces, que contribuem, cada uma, com nX para o ângulo total. Portanto, 3VX = nFX; dessa forma, 3V = nF = 5.103F, de onde
(1) V = 1,701F
Considere agora as A arestas. Cada face tem n arestas, totalizando nF arestas. Mas cada aresta é comum a duas faces, portanto
(2) A = nF/2 = 2,552F
Por fim, lembre-se da famosa fórmula de Euler
(3) F + V - A = 2,
que é válida para qualquer poliedro. Usando (1) e (2) para substituir V e A em (3) por múltiplos de F, obtemos F + 1,701F - 2,552F = 2; simplificando, obtemos 0,149F = 2, portanto F = 2/0,149 = 13,42. Então, V = 22,83 e A = 34,25.
Em 1976, Frederick Almgren e Jean Taylor provaram a segunda regra de Plateau sobre os ângulos de 109° 28’. A prova engenhosa que encontraram tinha diversas etapas. Eles começaram considerando qualquer vértice no qual se encontrassem seis faces, ao longo de quatro arestas comuns. Em primeiro lugar, demonstraram que podemos ignorar a ligeira curvatura vista na maioria dos filmes de sabão, de modo que os filmes sejam considerados planos. A seguir, examinaram o sistema de arcos circulares formados por esses planos ao cruzarem uma pequena esfera centrada nesse vértice. Como os filmes de sabão são superfícies mínimas, tais arcos são “curvas mínimas” — seu comprimento total é o menor possível. Utilizando a analogia esférica do teorema de Torricelli-Cavalieri, esses arcos sempre devem se encontrar de três em três, em ângulos de 120°. Almgren e Taylor provaram que exatamente dez configurações distintas dos arcos — são bastante complicadas, portanto não as desenharei — satisfazem esse critério. Para cada caso, os autores se perguntaram se a área total dos filmes dentro da esfera poderia ser reduzida ao deformarmos ligeiramente as superfícies, talvez introduzindo novos pedaços de filme. Todos esses casos puderam ser descartados, pois não correspondiam a verdadeiras superfícies mínimas. Exatamente três casos sobreviveram ao tratamento: os arranjos de filme formados são um único filme, ou três filmes que se encontravam em ângulos de 120°, ou seis filmes que se encontravam em ângulos de 109° 28’ — exatamente como Plateau observou. As técnicas detalhadas necessárias para a prova extrapolaram a geometria, passando à análise — o cálculo e seus descendentes mais esotéricos. Almgren e Taylor utilizaram conceitos abstratos chamados “medidas” para permitir que sua prova contemplasse formatos de bolhas muito mais complexos que as superfícies lisas.
A regra dos 120° leva a uma bela propriedade de duas bolhas agrupadas. Há muito tempo presumimos empiricamente que, quando duas bolhas se unem, formam-se três superfícies esféricas, dispostas como na Figura 12.5. Se assim for, os raios das superfícies esféricas deverão satisfazer uma bela relação. Sejam r e s os raios das duas bolhas e t o raio da superfície ao longo da qual se encontram: então, sua relação será 1/r = 1/s + 1/t. Esse fato está provado no adorável livro The Science of Soap Films and Soap Bubbles, de Cyril Isenberg, usando não mais que geometria elementar e a propriedade dos 120°.
Figura 12.5
Geometria presumida de uma bolha dupla, mostrada num corte transversal. Ao rodar os arcos em torno da linha reta obtêm-se as superfícies. Os raios r, s, t satisfazem a relação 1/r = 1/s + 1/t].
Tudo o que resta é provarmos que as superfícies são partes de esferas — essa etapa aparentemente óbvia foi a que causou os maiores problemas. Em 1995, Joel Hass (Universidade da Califórnia, Davis) e Roger Schlafly (Real Software, Santa Cruz) encontraram uma prova — porém, somente com o pressuposto adicional de que as bolhas tivessem o mesmo volume. Sua prova precisou do auxílio de um computador, que resolveu 200.260 integrais associadas a possibilidades concorrentes — uma tarefa que a máquina executou em apenas 20 minutos!
Os matemáticos precisaram coçar a cabeça por mais cinco anos até encontrarem a solução completa. Em 2000, Michael Hutchings (na época na Universidade de Stanford, agora em Berkeley), Frank Morgan (Williams College), Manuel Ritoré e Antonio Ros (Granada) provaram a conjectura da bolha dupla para bolhas de volumes diferentes.
As bolhas ainda representam grandes desafios para os matemáticos. Hoje sabemos muito mais do que sabia Plateau ao mergulhar seus arames em água e sabão, mas devemos nos lembrar que foram esses experimentos que criaram uma bela área da matemática: a geometria das superfícies mínimas.