Convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.
Karl Marx*
Como as pessoas enxergavam umas às outras, representavam a si mesmas e às outras para si mesmas e para as outras? Como imaginavam os contornos da sociedade parisiense, compreendiam sua posição social e espacial, assim como as transformações radicais que estavam ocorrendo? E como tais representações eram transpostas, usadas e moldadas na retórica do discurso político? Essas são questões importantes e fáceis de colocar, mas difíceis de responder.
A experiência de 1848 é um ponto de referência para entendermos muito do que ocorreu em seguida. “Ordem” e “desordem” eram palavras-chave, mas algumas experiências inesquecíveis estão por trás delas. As de Tocqueville são ilustrativas. Em 15 de maio, quando a Assembleia Nacional foi invadida por clubes políticos,
apareceu na tribuna um homem que eu nunca havia visto, salvo naquele dia, mas cuja lembrança sempre me encheria de repugnância e horror. Seu rosto era pálido e encarquilhado, seus lábios brancos; ele parecia doente, mau, asqueroso, com uma palidez suja e a aparência de um defunto em putrefação; não vestia roupa de linho, pelo que se podia ver, mas um velho sobretudo preto que cobria os braços longos e emaciados; era possível que vivesse em um esgoto e tivesse acabado de emergir dele. Disseram-me que aquele era Blanqui.
Em 24 de junho, Tocqueville encontra uma idosa na rua com um carrinho de legumes que o impede de passar. Ele lhe ordena “rispidamente que lhe dê passagem”.
Figura 94: Paris, quase sempre representada como mulher, aparece subjugada e tomada por uma multidão de trabalhadores de construção.
Em vez de fazê-lo, ela larga o carrinho e corre na minha direção com tal furor repentino que eu tive dificuldade para me defender. Estremeci diante da expressão assustadora e abominável do seu rosto, que refletia paixões demagógicas e a fúria da guerra civil [...]. É como se essas grandes emoções públicas criassem uma atmosfera ardente em que os sentimentos privados fervilham e entram em ebulição.[1]
A burguesia temia não somente o colapso da ordem pública, mas também o horror das emoções liberadas, das paixões desenfreadas, das prostitutas e mulheres libidinosas, a explosão do mal da Paris subterrânea dos esgotos, a assombração das classes perigosas. Havia um profundo temor da desordem. Não admira que o “Partido da Ordem” tenha tomado um caminho tão draconiano para a repressão, criando primeiro uma República sem republicanos e depois cedendo espaço para o Império como a única esperança. No entanto, houve tudo menos ordem durante o Império, que se manteve de pé mediante vigilância e repressão policial incisivas. Então, quem ou o que deveria ser responsabilizado pela desordem? Os trabalhadores culpavam (quando lhes era consentido opinar) a anarquia do capitalismo de livre mercado, que gerou periódicos surtos de especulação, colapsos de mercado e desemprego; ambições desenfreadas e paixão pelo dinheiro; a corrosão da estabilidade no emprego, das habilidades e da dignidade do trabalhador; e ferozes guerras de classe em nome do bem comum. Mas também culpavam os imigrantes e estrangeiros, a concorrência injusta, a burocracia impiedosa e a indiferença do Estado, que não lhes outorgava dignidade nem direitos. A burguesia culpava a irresponsabilidade e a fraqueza do governo, os subversivos, os boêmios, as mulheres degeneradas, os livres-pensadores, os socialistas, os estrangeiros cosmopolitas e os utopistas que, ao mínimo sinal de provocação, eram capazes de incitar a “multidão desprezível” a motins e à revolução. Os dois lados podiam convergir em defesa da ordem, mas a “ordem” que tinham em mente era muito diversa e ia desde a defesa dos trabalhadores de ofício de suas qualificações mediante associações até a defesa dos donos de terras e banqueiros de seus diferentes tipos de direito à propriedade. Um visitante inglês ficou surpreso ao perceber que a “sociedade”, extremamente ameaçada segundo seus anfitriões, não se referia a um todo, mas aos seletos círculos que estes frequentavam[2]. As mesmas palavras evidentemente portavam significados muito diferentes; o desafio é interpretá-los de forma correta.
A repressão política e a censura dificultam essa tarefa. Toda sorte de significados ocultos e alegóricos, de referências veladas e insinuações sutis, entrava no discurso político e parece ter sido amplamente entendida. O catolicismo deixara um legado de apreciação pelo simbolismo e pela alegoria que poderia ser usado para fins políticos (inclusive pela própria Igreja, que a partir de 1860 se opôs ao Império). As tradições corporativistas da força de trabalho e do movimento maçônico (com todos os seus rituais de iniciação) proporcionavam vários tipos de códigos e linguagens. E a reescrita da história, particularmente do período revolucionário, era usada para moldar o imaginário popular. Os censores estavam conscientes desses problemas – rejeitaram uma simples canção que mencionava um barrete, suposta referência ao barrete republicano da liberdade[3]. Contudo, que meios restavam às autoridades quando os críticos do Império transformavam funerais, festas e outros eventos públicos em ocasiões para protestos de massa espontâneos? O problema não era apenas o fato de que o funeral da esposa de um líder republicano podia atrair 25 mil trabalhadores em menos de 24 horas, mas que qualquer enterro, com seu tradicional discurso diante do túmulo, podia se tornar um encontro político de massa.
Os meios de representação e comunicação se multiplicavam rapidamente. O aumento vertiginoso na circulação dos jornais foi acompanhado pela diversificação política e pela ascensão de editores hábeis, que sabiam driblar os censores. Outras publicações preferiam bater de frente e passar seu recado, cobrindo de glória seu inevitável fechamento. Ao fim da década de 1860, surgiam jornais e revistas todos os meses. Quando um jornal influente, como o Le Rappel, era controlado por um crítico tão ferino quanto o exilado Victor Hugo, o governo certamente enfrentava problemas. A imprensa popular também se disseminou à medida que o gosto das massas por educação, romance e viagens era atrelado a um aparato comercial capaz de explorá-lo. Grande parte do material era inócua o bastante para ser publicada como bobagem inofensiva, mas alguns impressos, como os panfletos sobre a história da França, tinham fortes conotações políticas. Em 1860, essa literatura popular já era mais numerosa e difusa que a imprensa diária, e, o que era ainda pior, todas essas publicações recorriam muito a ilustrações. Desenhos e charges – o trabalho de Daumier é apenas um exemplo entre muitos – eram veículos extraordinários para a sátira e a polêmica políticas. A corajosa atitude de Courbet, entre 1848 e 1851, ao fazer uma arte do povo e para o povo não seria facilmente esquecida[4].
Figura 95: Os salões para a nova arte atraíam um número enorme de pessoas. Eram tão populares que, para não se misturar à plebe, a burguesia demandava a cobrança de ingressos. Nos tempos em que a entrada era gratuita (como ilustra este desenho de Daumier), a multidão era impressionante.
Os salões continuavam a ser eventos políticos que atraíam tanto as classes populares quanto a burguesia (para não ter de frequentar o mesmo ambiente da gentalha de trabalhadores malcheirosos e suados, ela reivindicava que durante um dia da semana o preço das entradas fosse mais caro). E, embora o governo pudesse proibir a encenação das peças de Victor Hugo, não conseguia impedir Os miseráveis de estar em quase todas as mãos pouco após seu lançamento, em 1862, na Bélgica. Aí residia outro problema. O avanço dos sistemas de transportes e comunicações e a inundação de visitantes estrangeiros (havia dez vezes mais visitantes vindos da Inglaterra em 1863 do que em 1855) tornaram o fluxo de notícias e comentários do exterior muito maior e facilitaram o contrabando de inúmeros tratados políticos feitos pelos exilados. Decerto, não foi a generosidade que motivou o imperador a anistiar os exilados, em 1859, mas a conclusão de que era mais fácil mantê-los sob vigilância na França do que no exterior. Cientes disso, Proudhon (durante algum tempo), Louis Blanc e Hugo (até o fim do Império) preferiram continuar fora do país.
Talvez seja injusto eleger alguns temas dominantes no torvelinho confuso de imagens, representações e retórica política. Entretanto, há alguns que se destacam e clamam por explicações. Em cada um deles estará manifesta a preocupação primordial com a tensão entre ordem e desordem, modernidade e tradição.
Os tentáculos em expansão da malha ferroviária e as cada vez mais regulares e velozes conexões marítimas e telegráficas abalaram até as raízes a percepção de espaço e lugar. Informações, mercadorias, dinheiro e pessoas transitavam pelo mundo com muito mais facilidade em 1870 do que em 1850. O aumento da competição e da dependência na divisão internacional do trabalho libertou Paris das restrições locais, mas a deixou vulnerável a eventos longínquos (a Guerra Civil dos Estados Unidos, por exemplo, interrompeu a entrada de algodão bruto e a saída de produtos parisienses para um importante mercado). Os acontecimentos estrangeiros (a consolidação do poder colonial no Norte da África, as campanhas italianas, a Guerra da Crimeia, a tentativa abortada de impor Maximiliano como imperador do México, a construção do canal de Suez) tiveram reverberações locais. A cambiante variedade de produtos no mercado (de artigos alimentares básicos a luxos exóticos) dava testemunho diário das modificações nas relações espaciais. Uma imprensa florescente (que se abastecia de notícias via telégrafo) colocava sobre a mesa das pessoas informações diversas, desde investimentos estrangeiros, oscilações de preço e oportunidades de investimento até confrontos geopolíticos e histórias bizarras a respeito dos hábitos estrangeiros. Com a fotografia, o espaço e o tempo pareciam se fundir em uma única e simples imagem. Toda nova conquista de espaço – a abertura de conexões férreas ou do canal de Suez – tornava-se uma enorme celebração, como as Exposições Universais, que destacaram as novas tecnologias e conexões geográficas.
Não era necessário deixar Paris para sentir o choque das mudanças nas relações espaciais. Assim, as geografias da mente precisaram se adaptar ao mundo da variação geográfica e da “alteridade”, que passara a constituir o espaço global da atividade político-econômica, e aprender a apreciá-lo. Isso significava, entre outras coisas, aprender a lidar com as relações sociais e espaciais ocultas no intercâmbio de mercadorias (considere, por exemplo, a descrição de Flaubert da série de objetos cosmopolitas no quarto de Rosanette em A educação sentimental, citada na p. 124-5). A enorme quantidade de descrições sobre regiões famosas e relatos de viagem que inundavam a imprensa popular indicava a grande curiosidade do público[5]. Mas viagens e literatura de viagem podem tão facilmente confirmar preconceitos e alimentar medos quanto abrir a mente. Então, como “o Outro” era geralmente concebido em meio a transformações tão rápidas? A questão é importante porque, como veremos, a construção desse “outro” em termos amplamente racistas e excludentes causará efeitos devastadores nas políticas internas e no Império colonial que a França começava a construir no exterior.
O imaginário geográfico francês há muito estava carregado de doses pesadas de determinismo geográfico e racismo. Montesquieu e Rousseau haviam concordado que a liberdade não era fruto de todos os climas, por isso não estava ao alcance de todas as pessoas. “O despotismo combina com os climas quentes; o barbarismo, com os frios; e o bom governo, com as regiões temperadas.”[6] Por volta de 1870, isso havia sido adaptado por escritores como Arthur de Gobineau, cujo influente Essay on the Inequality of Human Races [Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas] fora lançado em 1855, proclamando a superioridade das raças nórdicas em um simples esquema de interpretação no qual categorias como “civilizado”, “bárbaro” e “selvagem” eram superpostas no mapa-múndi[7]. O selvagem podia às vezes ser retratado como nobre, mas o ideal de Rousseau há muito fora substituído no imaginário popular pelas histórias de Fenimore Cooper (com frequência mencionadas por Balzac) e por descrições de práticas selvagens nas quais populações viviam em um tal estado de natureza que se tornavam sub-humanas e, por isso, indignas de consideração em qualquer regime de direitos ou cidadania. A organização política dos bárbaros, por outro lado, era articulada o suficiente para ser uma força a ser reconhecida. No entanto, seus valores e práticas (especialmente se não fossem cristãos) tornavam-nos antagônicos à civilização.
Esse esquema interpretativo poderia facilmente ser jogado sobre o mundo todo, assim como sobre a própria Paris. A burguesia rotineiramente descrevia os trabalhadores que viviam nas “fronteiras” de Belleville como selvagens. Críticos de Haussmann ocasionalmente o responsabilizavam por esse fato, apontando seu estímulo à segregação social. “Uma cidade cujos bairros eram divididos entre os abençoados, dotados de boa sorte, riqueza e elegância, e a população condenada a trabalhar para sobreviver não era mais uma cidade cristã, e sim uma cidade de bárbaros.”[8] Se os trabalhadores eram mesmo “selvagens”, uma “multidão desprezível” de criminosos e “classes perigosas”, como a burguesia costumava descrevê-los, 1848 mostrou de maneira muito clara o tipo de perigo que eles representavam e de selvageria que tinham em mente. Victor Hugo, no entanto, proclamava com orgulho que os trabalhadores eram “os selvagens da civilização”. Mas a tendência geral dessa associação, tanto em 1848 quanto em 1871, era de que as forças da “civilização” e da “ordem” tinham o direito moral de fuzilar os revolucionários como os cães e selvagens que presumivelmente eram. A representação desse “outro” da classe trabalhadora parisiense em termos assim racializados explica como a guerra de classe podia ser conduzida de forma tão feroz e violenta. A alegação de que os francos (nórdicos) eram racialmente superiores aos gauleses (celtas) (trabalhadores e camponeses) era comumente utilizada tanto por aristocratas como por monarquistas para justificar seu direito de governar[9]. E não foi por acaso que Cavaignac, general que aprendeu seu ofício nas guerras coloniais contra os “bárbaros” na Argélia, liderou a repressão brutalmente violenta de 1848.
Michelet, um dos mais influentes historiadores da época, via a civilização como produto da “luta da razão, do espírito, do Ocidente, do homem para se separarem e imperarem sobre suas origens na natureza, na matéria, no Oriente, na mulher”. Imagens erotizadas racistas e machistas desse tipo, reforçadas por pintores como Delacroix e muitos escritores românticos, produziram o que Edward Said chama de “orientalismo”[10]. O Oriente era visto como o útero do qual a civilização havia surgido, mas também como o local da feminilidade irracional e erótica, o berço das práticas bárbaras. Esse imaginário permaneceu intocado apesar de o contato humano ser cada vez mais viável. Quando Flaubert subiu o Nilo em 1849, ele o fez, a exemplo de muitos predecessores, com apenas uma coisa em mente: “encontrar outro lar” na voluptuosa sensualidade da mulher oriental. Seus escritos subsequentes confirmaram essa imagem. Hitzman interpreta tudo isso como “projeções inconscientes de ansiedades ocultas relativas à mère terrible sobre aspectos do mundo antigo”[11], ou uma expressão de medos profundos (similares aos que Hugo e Tocqueville registraram nos dias difíceis de 1848 e que ressurgiram em 1871, com a Comuna) de uma “sexualidade feminina destrutiva e castradora”. É difícil ler Salambô, de Flaubert (com suas cenas explícitas de terrível violência catártica), e as cartas que ele escreveu para a mãe sem dar algum crédito a tais interpretações.
No entanto, essas explicações são simples demais para pararmos por aqui. Pois, como disse Said, por mais perturbador que o sexo licencioso imaginado pudesse ter sido para a fantasia burguesa da família e do culto à domesticidade, o Oriente representava ameaças que o extrapolavam. A europeia e muito capitalista “racionalidade do tempo, do espaço e da identidade pessoal” confrontava a “inimaginável antiguidade, beleza inumana, distância ilimitada”. Por isso, Michelet e os saint-simonianos justificavam a penetração (e a sexualidade do termo era flagrante) do Oriente por ferrovias, canais e comércio, e a dominação de um Oriente irracional em nome da racionalidade iluminista superior. A submissão do Oriente ao Ocidente era tão necessária ao progresso da civilização quanto a submissão da mulher à autoridade e ao controle masculinos. Em L’argent, Zola fez um ficcional Saccard (livremente inspirado nos Péreires da vida real) decidir transformar o Oriente segundo padrões e ideais comerciais e capitalistas do Ocidente (ver p. 168)[12]. Flaubert, no entanto, não seguiu nessa direção. Crítico dos valores e da cultura burgueses, ele usou o mito do Oriente, como faziam muitos ávidos leitores das histórias de haréns, príncipes e das Mil e uma noites na imprensa popular, para explorar o “outro” em sua própria personalidade e no lado mais sombrio da cultura burguesa. Ao refletir sobre sua viagem ao Egito, ele escreveu:
O que mais nos falta não é o estilo nem a destreza dos dedos e do arco conhecida como talento. Temos uma grande orquestra, uma rica palheta, uma variedade de recursos. Provavelmente conhecemos hoje mais truques e artimanhas do que nunca. Não, o que nos falta é o princípio intrínseco, a alma da coisa, a própria ideia do sujeito. Nós anotamos, fazemos viagens; vazio! Vazio! Tornamo-nos acadêmicos, arqueólogos, historiadores, doutores, sapateiros, pessoas de gosto refinado. O que há de bom em tudo isso? Onde está o coração, o entusiasmo, a seiva? De onde partir? Para onde ir? Somos bons em chupar, com a língua fazemos muitos jogos, acariciamos por horas: mas – e a coisa real? Ejacular, fazer filhos![13]
Então, qual seria “a verdadeira ideia do sujeito”? “Viajar torna a pessoa modesta”, disse Flaubert. É interessante notar que ele não se apropriou da ideia do Oriente, mas compreendeu seu mito como uma neurose peculiarmente ocidental. No romance Salambô, ambientado no Oriente, ele profetizou de forma dramática a lancinante fúria da histeria masculina que irrompeu na violência da Comuna de 1871.
Contudo, tais modos de interpretação não eram universais. Élisée Reclus, por exemplo, buscou um tipo muito diferente de entendimento geográfico do mundo daquele de Michelet ou Flaubert. Reclus acreditava na possível harmonia não apenas do “homem” com a natureza, “mas também entre todas as diferentes culturas que povoam a terra”. Por trás disso estava uma visão utópica. “A humanidade, até agora dividida em diferentes correntes, não será mais que um único rio, e reunidos em um único fluxo desceremos juntos para o grande mar no qual toda a vida vai se perder e renovar.” Livre do psicodrama imposto pelo “progressista” Michelet, esse admirador de Proudhon, companheiro de conspiração de Bakunin, participante da Comuna e futuro colaborador de Kropotkin produziu uma visão geográfica que tinha todo o sabor do mutualismo otimista dos trabalhadores de ofício parisienses. Ele apoiou o projeto da Associação Internacional dos Trabalhadores para unir os trabalhadores do mundo em prol de uma luta comum. O pensamento geográfico de Reclus, apresentado em volumosos escritos da década de 1860 (e que só agora têm sido recuperados da obscuridade em que padeceram durante tanto tempo), oferece uma maneira diferente de conceber e apresentar “o outro” em pleno esplendor de dignidade pessoal e harmonia potencial[14]. Esta era bem mais coerente com a visão da oficina parisiense do que o imperialismo racista típico dos ricos salões do Faubourg St. Germain.
Figura 96: As relações entre o campo e a cidade mudavam rapidamente à medida que novos modos de comunicação apareciam e grandes blocos suburbanos começavam a ser anexados por Haussmann a Paris. Nesta charge de Daumier, dois camponeses celebram o fato de repentinamente terem se tornado parisienses.
Entretanto, o caso do orientalismo ilustra um ponto geral. Os mesmos processos que aumentaram o conhecimento do mundo tornaram sua deturpação ainda mais provável. No contexto de transformações na economia espacial nacional, imagens da relação cidade-campo e Paris-províncias se confundiam com interesses e preconceitos de classe. Embora certa negação da vida rural e provinciana nos círculos burgueses estivesse há muito em voga (como mostrou Balzac), o campo era a base segura para muitas daquelas rendas não obtidas à custa do próprio trabalho que entravam em Paris. Comparado à incoerência rebelde da capital, o campo também parecia (às vezes equivocadamente) um refúgio pacífico de submissão e reação. Era para onde os burgueses ameaçados (e até artistas e escritores, como Delacroix, Flaubert e George Sand) fugiam quando as coisas saíam do controle, e onde o Exército e a Guarda Nacional foram mobilizados para esmagar as revoltas parisienses em 1848 e 1871. As províncias eram a rocha segura, apesar de invisível, na qual a vida parisiense e a política francesa estavam fundadas. As imagens bucólicas da ruralidade nos romances de George Sand transmitiam tranquilidade, e até o socialismo defendido pelos poetas trabalhadores (muitos das províncias) que ela encorajava parecia ingênuo o bastante para não ser considerado ameaçador.
Por isso, a ampla resistência rural ao golpe de Estado de 1851 causou choque, pois indicava a existência de relações de classe, descontentamento e sentimento revolucionário no campo. E esse foi o sentimento que Courbet levou ao salão de 1851, particularmente no quadro Enterro em Ornans. Ao explicitar as relações de classe na França rural e provincial com um realismo feroz, ele passou a ser chamado de “o Proudhon da pintura”[15]. Era desse campo, rico em ambiguidades da sua própria experiência de classe, que novos trabalhadores chegavam aos montes a Paris, trazendo consigo, de Limusino, Creuse e Var, de Seine-et-Oise e Doubs, suas próprias marcas de sentimento revolucionário. Muitos líderes do movimento dos trabalhadores de 1868-1871 tinham, como Varlin, origens provinciais e rurais. No entanto, ao fim do Segundo Império já se observava uma estranha reversão: até as classes populares podiam fazer passeios para o campo, fronteira na qual a transformação do acesso à natureza em mercadoria estava se tornando tão importante quanto a busca por terra virgem para um novo desenvolvimento industrial e habitacional[16]. Foi nesse ambiente que os impressionistas realizaram grande parte de seu trabalho.
A transformação interna de Paris e os primórdios da suburbanização foram igualmente percebidos e entendidos através de lentes políticas. Comentadores subsequentes chegaram a replicar as ambiguidades resultantes, mas nem sempre as entendiam. Por um lado, “Os olhos dos pobres”, de Baudelaire, é para Berman uma imagem de como os bulevares de Haussmann, “de maneira involuntária, romper[am] a crosta do mundo até então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana”, tornando assim um fato “a miséria que foi um dia mistério”. Por outro lado, muitos viam o aumento da segregação espacial decorrente da haussmannização como o cerne do problema. As duas proposições podem ser verdadeiras. A construção de um estilo de urbanismo extrovertido, público e coletivizado durante o Segundo Império alterou o equilíbrio entre os espaços públicos e privados da cidade. Investimentos públicos eram organizados em torno do ganho privado, e espaços públicos eram apropriados para uso privado; exteriores tornavam-se interiores para a burguesia, enquanto os panoramas, os dioramas e a fotografia levavam o exterior para o interior[17]. Os bulevares iluminados a gás, as fascinantes vitrines das lojas e os cafés abertos para a rua (inovação do Segundo Império) tornaram-se, como já vimos, corredores de homenagem ao poder do dinheiro e das mercadorias, espaços de diversão para a burguesia. Quando a amante de Baudelaire em “Os olhos dos pobres” sugere que o proprietário expulse o homem esfarrapado e seus filhos, é o senso de propriedade sobre o espaço público que realmente importa, mais do que o encontro bastante familiar com a pobreza (ver p. 180-1).
A ironia, é claro, era que os novos meios de comunicação (bulevares, ruas, ônibus) e a iluminação deixaram a cidade aberta ao escrutínio de uma maneira antes impossível. Por isso, a experiência do espaço urbano passou a se dar de modo radicalmente diverso. Frédéric Moreau, o herói de A educação sentimental, de Flaubert, move-se de um espaço a outro em Paris e seus subúrbios, reunindo experiências bastante distintas por onde passa. A sensação de espaço é bem diferente daquela existente em Balzac. Podem estar presentes as mesmas desagregações, mas a liberdade de Frédéric ao se movimentar, mesmo quando entra e sai dos espaços da Revolução de 1848, é diferente. Ele desliza tão facilmente de um espaço a outro e de um relacionamento a outro quanto o dinheiro e as mercadorias mudam de mão. E o faz com o mesmo cinismo e lassidão. Mas há um limite oculto nas perambulações de Frédéric, de certo modo muito similar a como a circulação do dinheiro se concentra em algumas zonas e não em outras. Frédéric não tem razão para estar em Belleville ou mesmo nas partes do leste de Paris, onde a indústria artesanal domina. É somente na Paris burguesa e em seus arredores que ele se move. Para Flaubert, as segregações eram tão naturalizadas que pareciam quase despercebidas, e só voltaram ao âmago da literatura com as investigações etnográficas de Zola.
Os encontros com “o outro” das classes trabalhadoras ou perigosas (como ocorre com a amante em “Os olhos dos pobres”) não eram bem-vindos pelos burgueses, que tinham outro medo: o povo podia esconder elementos subversivos ou de repente se tornar incontrolável. Esses temores tinham fundamento. Prostitutas circulavam facilmente entre a população pelos bulevares, desafiando todas as tentativas da polícia de controlá-las e expulsá-las. Quando Blanqui decidiu passar seu exército secreto em revista, a notícia se espalhou e 2 mil tropas, totalmente desconhecidas umas das outras e dele, desfilaram por ele no meio de uma multidão no Champ-de-Mars, que nem sequer as percebeu[18]. Para que a burguesia conseguisse manter sua posição e seu poder de classe, os espaços e a multidão deviam ser controlados. O dilema em 1868-1871, como em 1848, era que a burguesia republicana tinha de conquistar seu espaço para fazer sua própria revolução. Enfraquecida, ela podia não resistir à pressão cada vez maior da classe trabalhadora e dos movimentos revolucionários. Foi por esse motivo que a reocupação do centro de Paris pelas classes populares – a descida de Belleville – adquiriu tanta importância simbólica. Porque ocorreu em um contexto em que os pobres e a classe trabalhadora estavam sendo afugentados, tanto no imaginário quanto na realidade, dos espaços estratégicos e até dos bulevares, agora considerados interiores burgueses. Quanto mais aberto o espaço fosse fisicamente, mais ele tinha de ser separado e fechado mediante práticas sociais de guetização forçada e exclusões com alto teor racial. Ao escrever em retrospecto, Zola apresenta como fechados aqueles mesmos espaços parisienses que Flaubert havia visto como abertos. Foi assim que o imaginário geográfico da burguesia buscou impor exclusões e ordenamentos socioespaciais aos espaços abertos pelas obras de Haussmann.
As relações entre Estado tradicionalmente centralizado, sociedade civil e liberdades individuais foram durante muito tempo o ponto central do debate político francês. A monarquia e a religião haviam convergido em defesa do respeito à autoridade em um Estado e uma sociedade civil hierarquicamente ordenados. Os jacobinos almejavam um poder forte, centralizado, mas buscavam encontrar apoio à sua legitimidade na vontade soberana de um povo libertado da hierarquia na sociedade civil. Atacavam as corporações de trabalhadores que restringiam a liberdade do trabalho com a mesma veemência que atacavam a religião. O Segundo Império tentou tirar vantagem dos dois lados, usando o sufrágio universal para legitimar o imperador, do qual fluía toda a autoridade. Mas havia fortes correntes de crítica a essas formas de centralização. Um visitante inglês considerou o sistema político “uma forma grosseira de comunismo” e ponderou a respeito de como seus compatriotas podiam elogiar tanto a aplicação prática de uma doutrina que, na teoria, “os açoita com tanto horror”[19]. Por isso, os inimigos do Império cada vez mais concentravam os ataques em sua excessiva centralização. No entanto, muito dependia do foco da queixa dessa centralização do poder: econômico, político ou territorial.
Durante o Segundo Império, o Estado aumentou seu controle direto e influência indireta sobre a economia por meio da formação de fortes instituições voltadas à centralização do capital. A ligação entre os Péreires e Haussmann era típica de uma forma organizacional próxima do monopólio estatal ou do capitalismo financeiro. Como eles controlavam os bancos, o transporte, as comunicações, a imprensa, os serviços urbanos e a especulação imobiliária, havia poucas áreas da vida econômica fora da órbita do capital financeiro e do Estado. Isso estimulou o debate sobre a natureza do capitalismo e as relativas virtudes da concorrência e do monopólio. O debate contrapunha o que poderia vagamente ser chamado de ideologia e prática saint-simonianas às doutrinas dos economistas de livre mercado. Embora os saint-simonianos nunca tenham desenvolvido uma teoria econômica coerente, não deixaram de cultivar uma postura ao mesmo tempo pragmática e amplamente voltada para questões sociais, que levou muitos deles a adaptarem suas ideias de diversas maneiras, ainda que sempre em torno do tema geral da produção. O imperador pode até ter entrado no Império como “Saint-Simon a cavalo” (para usar a famosa frase de Sainte-Beuve), mas o deixou como um defensor liberal do livre-comércio. Chevalier, membro-fundador da seita, e que posteriormente se tornou professor de economia, negociou o acordo de livre-comércio com a Grã-Bretanha em 1860 e mais tarde abraçou o liberalismo. E as práticas dos Péreires evoluíram de forma pragmática, quase sempre com vistas a seus próprios interesses. Mas a doutrina saint-simoniana conferiu legitimidade à política econômica imperial e à centralização do capital.
Economistas de livre mercado, como Bastiat e Say, por outro lado, defendiam mais competitividade e liberdade ao mercado (supostas virtudes já impostas à classe trabalhadora em 1852). À medida que os direitos à propriedade privada eram reafirmados contra o poder do Estado em Paris, no fim da década de 1850, e o medo do poder dos Péreires aumentava, a ideologia do livre mercado era mobilizada como parte de um ataque à política imperial. Quando vinham de industrialistas ou banqueiros como Rothschild, os argumentos pareciam hipócritas e interesseiros. Mas na década de 1860 houve um consenso crescente, tanto na burguesia quanto no movimento dos trabalhadores, de que a centralização excessiva do poder econômico tinha de ser controlada. Embora esses grupos oferecessem soluções muito diferentes, uma poderosa aliança de classe (unindo proudhonistas, como Duchêne, e Say, o protegido de Rothschild) formou-se em torno da oposição ao aumento da centralização do capital. A queda dos Péreires e de Haussmann, a transição para o Império liberal e a crescente credibilidade dos “economistas” (liberais) evidenciaram o poder em ascensão dessa aliança.
A questão da descentralização política despertou paixões similares. O Segundo Império produziu uma hierarquia de poder rigidamente controlada, que ia do imperador a prefeitos e subprefeitos, conselheiros locais e dirigentes nomeados, de sociedades de ajuda mútua e comissões de trabalhadores e empregadores etc. A democracia local era insignificante, mas a autonomia fora de Paris estava em parte protegida pela inacessibilidade. Os novos sistemas de transportes e comunicações, pelos quais as elites haviam feito forte campanha, ironicamente facilitaram o controle do governo central e, desse modo, reduziram a autonomia local. O avanço da integração espacial era acompanhado pelo crescente clamor por autogoverno local. Legitimistas, orleanistas, republicanos e socialistas aderiram à causa das liberdades locais durante a década de 1860, e todos eles, até os bonapartistas, proclamavam a importância da comuna como uma instituição política central. Mas os bonapartistas a apoiavam como um veículo local para a administração central; os monarquistas a apoiavam, contanto que ela outorgasse poder aos ilustres locais e ao clero; os republicanos a apoiavam como uma instituição central da democracia local (governada pelos burgueses ou, entre os democratas, pelo povo); os comunistas a apoiavam porque era dentro da comuna que as solidariedades políticas se formavam; e mutualistas como Proudhon a apoiavam como a base de um governo federalista. Os historiadores a debatiam incessantemente, em geral por meio da discussão dos relativos méritos do jacobino Robespierre e dos girondinos com pensamento mais democrático, e quase sempre ficavam do lado destes últimos. No fim da década de 1860, “a descentralização já havia assumido a aparência de uma cruzada nacional” e tornou-se certamente o ponto principal do ataque a Haussmann[20].
Entretanto, é difícil diferenciar entre os argumentos puramente oportunistas daqueles que estavam no poder (o caso dos monarquistas é particularmente suspeito) e as crenças profundamente arraigadas de alguém como Proudhon, cujo ideal era o fenecimento do Estado mediante uma federação de associações independentes e autônomas e que considerava a reorganização política irrelevante sem a reorganização fundamental da produção contra a centralização do capital. Mas, fosse qual fosse a base, a luta pela descentralização política era bastante real e colocou a questão do autogoverno em primeiro plano na agenda política de Paris. O fato de quase ninguém ser contra a ideia da comuna (com “c” minúsculo) teria um papel fundamental na maneira como tantas forças distintas se mobilizaram para apoiar a Comuna de Paris de 1871.
No entanto, isso gerava outro problema. Afinal, Paris não era, como insistia Haussmann, “a própria centralização”? Temerosos da imensa centralização do poder econômico, político, administrativo e cultural em Paris, muitos provinciais que apoiavam a descentralização hesitavam diante da ideia do autogoverno de uma cidade tão influente, que também havia sido propensa a tendências políticas radicais, se não “vermelhas”. E havia muitos na burguesia parisiense, como Thiers, que compartilhavam desses medos. Esse foi o tipo de coalizão que se comportou de maneira tão inflamada em relação à Comuna de Paris. Todavia, muitos parisienses apoiavam a descentralização, mas também se orgulhavam de Paris ser “a cabeça, o cérebro e o coração da Europa” – visão “que talvez possa explicar”, como observou ironicamente um visitante inglês, “por que a Europa é às vezes palco de farsas tão estranhas”[21]. Assim, Proudhon queria que Paris “se desfizesse da coroa de capital”, mas não obstante “assumisse a liderança como uma comuna livre e independente na cruzada por uma nação confederada”. Blanqui concordava que a revolução tinha de começar em Paris, mas, como jacobino que era, pensava em uma Paris revolucionária conquistando, dominando e levando esclarecimento aos provinciais atrasados. Por isso, o fato de blanquistas e mutualistas terem lutado lado a lado para criar e defender a Comuna não foi de forma alguma tão estranho quanto pode ter parecido.
Evidentemente, a Comuna era em certo sentido um levante pela liberdade municipal. Entretanto, a ideia de que isso ocorria apenas no sentido social-democrata, como defende Louis Greenberg, ou de que era puramente uma questão comunitária sem nenhuma ligação com classes, como insiste Gould, está além dos limites da credibilidade. Certamente, diferentes facções viam a Comuna de maneiras muito variadas. Para os mutualistas e os comunistas, era o escudo atrás do qual eles poderiam iniciar o trabalho mais sólido de reorganizar a produção, a distribuição e o consumo, aliados a outros movimentos em outros centros. Para os blanquistas, era o primeiro passo para a libertação política da França, se não do mundo. Para os maires republicanos dos arrondissements, era o primeiro passo para a integração das Partes em um sistema republicano de governo e, se necessário, uma arma de defesa contra uma reação monarquista. Para todos eles, definir o que a Comuna buscava combater era mais fácil do que determinar o que ela defendia. O paradoxo, é claro, está no fato de que a forte tendência à descentralização nas províncias poderia ser facilmente mobilizada para esmagar um movimento de descentralização em uma cidade em que tanto poder era centralizado.
Quatro horas. A outra Paris acorda, a Paris do trabalho. As duas cidades mal se conhecem, a que levanta ao meio-dia e a que vai para a cama às oito. Raramente se olham nos olhos, e só o fazem – na maioria das vezes – nos dias tristes e sombrios da revolução. Elas vivem distantes uma da outra; falam línguas diferentes. Hostilizam-se; são dois povos.[22]
Não importa quão intrincadas sejam de fato a estrutura de classe e a divisão do espaço social, a imagem simplista de Paris como uma cidade dividida em duas classes e dois espaços aparece de forma constante nas representações da época, e ela tinha uma longa história. Antes de 1848, a “outra Paris” era vista em termos de “classes perigosas”, cuja total carência às vezes despertava piedade; no entanto, ela mais frequentemente provocava horror, repugnância e ódio. Termos como “selvagem” e “bárbaro” e epítetos como “animal” proporcionavam uma coloração racial ao imaginário burguês, justificando a frequente violência assassina da burguesia ao abordar os trabalhadores e os pobres[23]. “A igualdade se afirmou de modo triunfante”, escreveu Flaubert em 1848, “uma igualdade de bestas selvagens, um nível comum de atrocidades sangrentas; pois o fanatismo dos ricos contrabalançava o frenesi dos pobres, a aristocracia compartilhava a fúria da ralé e a touca de dormir de algodão era tão selvagem quanto o barrete vermelho.”[24] Embora 1848 talvez tenha provado a existência de diferenças entre as classes trabalhadoras e as perigosas, também prometeu, e depois negou, um poder político real aos trabalhadores. O poder foi tomado – de maneira relativamente duradoura, como se pôde ver – pelo lado burguês das barricadas. Dali em diante, muitos na burguesia se sentiram livres para depreciar sem distinção todos aqueles que estiveram do outro lado. O imaginário anteriormente aplicado às classes perigosas agora se referia não apenas aos trabalhadores, mas até a seus defensores, como Blanqui. Além disso, todos sabiam onde as barricadas haviam sido erguidas, qual parte da cidade pertencia ao “outro”. Uma barricada produz uma singela linha divisória. A experiência de 1848 continuou viva mediante representações simplificadas e polarizadas do espaço social e físico.
As representações burguesas do que existia “do outro lado” adquiriam diferentes colorações de acordo com a natureza dos contatos. A maior parte da alta burguesia era economicamente inativa (em Paris) ou estava a serviço do governo, e os economicamente ativos geralmente se concentravam nas altas finanças. Os industrialistas que de fato lidavam com trabalhadores (como Poulot) eram poucos e raros, e de todo modo considerados inferiores. Mas Paris era uma cidade de classe trabalhadora, cada vez mais organizada para que os ostensivos consumidores pudessem, como disse Lazare, “saborear demoradamente o gosto do mel sem ser perturbados pelo zumbido das abelhas”[25]. E o imaginário do que existia “do outro lado” não era criado a partir do contato humano, salvo alguns encontros de rua casuais e em geral infelizes (do tipo descrito em “Os olhos dos pobres”, de Baudelaire). Os relatos dos reformistas burgueses (independentemente de suas tendências políticas) sobre as condições na Paris da classe trabalhadora estimulavam, mais que apaziguavam, esse imaginário na medida em que exploravam a destituição e a degradação. Ao viver em condições animais, as pessoas podiam ser algo além de animais? Esse tipo de raciocínio racial não estava muito longe da superfície em círculos de prestígio e foi absorvido com facilidade pelas representações literárias. Essa foi a consequência mais disseminada da Comuna. Em todas as cidades, escreveu o poeta Théophile Gautier, havia cavernas fechadas para
Figura 97: A distribuição das barricadas de Paris durante o levante de junho de 1848 ilustra como era forte a divisão política entre os lados leste e oeste da cidade (segundo Louis Girard, Nouvelle histoire de Paris, cit.).
animais selvagens, bestas fedorentas e venenosas, todas as perversidades refratárias que a civilização era incapaz de domar, aqueles que amam sangue, que se encantam com o roubo, aqueles para os quais os ataques contra o decoro são gestos de amor, para os quais o ato de incendiar é tão divertido quanto o de soltar fogos de artifício, todos os monstros do coração e os aleijados de espírito; uma população de outro mundo, desacostumada com a luz do dia, ansiando aprisionada nas profundidades das sombras subterrâneas. Um dia, quando o adestrador de animais inadvertidamente deixar as chaves no portão desse zoológico, essas criaturas ferozes vão invadir, com gritos selvagens, uma cidade aterrorizada. As jaulas se abrem, as hienas de 1793 e os gorilas da Comuna irrompem.[26]
A agressividade venenosa desses sentimentos era bastante comum. É difícil ler jornais influentes como a Revue des Deux Mondes durante a década de 1860 e não se abalar. E a violência tinha uma qualidade curiosa, como se houvesse um anseio interno para exorcizar um demônio, cauterizar uma ferida dolorosa na sociedade, buscar algum desenlace final, uma catarse. “Há apenas três seres dignos de respeito: o padre, o guerreiro e o poeta”, escreveu Baudelaire, “conhecer, matar e criar”. Flaubert confessou que o motim era a única coisa que entendia na política: “Eu desprezo a tirania moderna porque ela me parece estúpida, fraca e sem determinação”. E acrescentou: “Tenho profunda devoção à antiga tirania, que considero a manifestação mais admirável da humanidade”[27]. Zola foi acusado de sadismo devido às cenas de violência assassina contra o povo conquistado em Salambô. Mas foram exatamente essas cenas que se tornaram realidade contra a Comuna; um derramamento de sangue brutal justificado por Goncourt como uma forma de dessangrar os belicosos vermelhos por meio de seu extermínio. Ao se lembrar, apavorada, do Terror, a burguesia construiu imagens e representações que fundamentavam a criação de seu próprio terror preventivo contra a outra Paris.
Os revolucionários, em particular aqueles extraídos das fileiras dos estudantes e de la bohème, viam o oposto dessa imagem. Consideravam os trabalhadores nobres, hábeis, autoconfiantes, inteligentes, generosos e capazes de liderar. Sua “outra Paris”, no oeste, era povoada por especuladores, lobos da Bolsa de Valores, rentistas, parasitas e vampiros, que sugavam o sangue dos trabalhadores e destruíam sua dignidade e autoestima. Esmagada sob o peso dos ricos ociosos, a Paris da classe trabalhadora tinha todo o direito de fazer uma revolução. Os blanquistas levaram essa ideia ainda mais longe. Viam Paris como núcleo revolucionário, disseminador da libertação não apenas pelo resto da França, mas pelo resto do mundo, como em 1789. Além disso, a revolução se originaria na “outra” Paris, mais particularmente em Belleville e na região de Père-Lachaise[28]. Foi a essa área que aqueles com simpatias blanquistas, como o influente Gustave Flourens (professor de anatomia humana, morto nos primeiros dias da Comuna), dirigiram-se para cultivar sua base revolucionária. E havia muitos traços da mesma lógica de catarse revolucionária violenta na retórica blanquista (baseada, como antes, de modo explícito nos ideais de pureza revolucionária hebertista de 1793).
Nem todos foram atraídos por um imaginário tão polarizado. No entanto, mesmo aqueles que buscavam atenuar seus extremos geralmente acabavam reforçando o argumento geral. Escritores da época, como Audiganne, Corbon e Poulot, pelo menos tinham um contato íntimo com os trabalhadores parisienses e nos proporcionam um esboço de personalidade mais elaborado. Escreve Audiganne:
Os trabalhadores de Paris são extremamente sociáveis e abertos, têm grandes ideias e fortes preocupações filantrópicas, que ficam manifestas por meio da ajuda mútua e da tolerância recíproca. Por outro lado, eles têm um gosto irresistível pelo desperdício e pelo gasto, uma ardente sede de prazer e um amor apaixonado pela mudança. [...] Participam dos motins com o mesmo entusiasmo que demonstram em festas, encantados em quebrar a monotonia da vida diária sem se preocupar com as consequências. A devoção à igualdade e à nacionalidade é a sua marca.[29]
A irresponsabilidade dos trabalhadores parisienses era, é claro, um anátema para a burguesia radical mais puritana (Poulot, por exemplo). Mas muitos comentaristas que os conheciam, como o socialista Jules Vallès, que se mudou para a Paris da classe trabalhadora por se solidarizar com os oprimidos, ficavam impressionados com a cordialidade e a generosidade que lá encontravam. Esse era mais um motivo, portanto, para lamentar tanto a polarização das opiniões quanto o peso da opressão que caía sobre a Paris da classe trabalhadora. Mas, ao defender o alívio desta, os reformistas não deixavam de reforçar aquela. Corbon lamentou a perpetuação e o aprofundamento das divisões de classe e argumentou que, embora os pobres não se ressentissem com a riqueza como tal, sua própria condição periclitante, unida à crescente afluência dos ricos, certamente representava uma ameaça à segurança da classe mais abastada. Além disso, essa ameaça tinha uma expressão geopolítica. “A transformação de Paris, após a remoção da população trabalhadora do centro para as periferias, dividiu a capital em duas cidades – uma rica e outra pobre. [...] As classes desfavorecidas formam um imenso cordão em torno dos ricos.” Lazare recorreu à mesma imagem ameaçadora: “O nível da inundação da pobreza subiu em Belleville”, escreveu ele, “enquanto o rio da luxúria fluía em pleno vigor nos novos bairros de Paris”[30]. A alta burguesia suspeitava, com razão, que os “vermelhos” estavam submersos nessa inundação de pobreza em Belleville. Na medida em que não podia colocar os pés lá, e nem se atreveria a tanto, esses relatos só exacerbavam seus medos. Lá vivia “a escória do povo”, diziam jornais como Le Figaro e Le Moniteur. E lá se encontravam, escrevia o jornalista Sarcey, “as profundezas mais extremas da pobreza e do ódio, onde agitações causadas por inveja, indolência e raiva borbulham sem cessar”[31].
Por mais temido que fosse pela burguesia, Blanqui jamais conseguiu criar uma base de massa na classe trabalhadora. Na verdade, houve períodos em que ele parecia não exercer influência alguma, exceto como símbolo remoto, inflexível e encarcerado. Foi só na década de 1860 que o movimento blanquista surgiu com mais força, principalmente entre militantes, intelectuais ateístas e estudantes, atraídos pela nobreza do seu sofrimento e pureza da sua causa[32]. Durante as ativas lutas de classes de 1868-1871, os blanquistas, em parte devido à sua dedicada preocupação com a educação e sua disposição para nadar nos “rios da pobreza” que fluíam na “outra Paris”, chegaram a adquirir um número significativo de seguidores. A falta de influência de massa era, até certo ponto, uma questão de escolha. A experiência de 1848 e a fundação do Império mediante o sufrágio universal os fizeram desconfiar da democracia de massa sob condições de ignorância e dominação burguesa dos instrumentos de comunicação de massa. Suas raízes nas formas puras da tradição revolucionária francesa (como representada por Babeuf, Hébert e Buonarroti) os estimularam a seguir uma política jacobina insurrecional. Sob condições de rígida vigilância policial, isso significava a formação de células fechadas, impenetráveis à infiltração, mas também à participação da massa. O objetivo era a ditadura do proletariado mediante a violência insurrecional.
Sua influência também foi limitada pelas circunstâncias da estrutura de classe, que dificilmente eram compatíveis com a mensagem que eles buscavam transmitir. Embora a insurreição contra o aparato do Estado controlado pela alta burguesia fizesse muito sentido, ela não conseguia abordar a questão da organização do trabalho em uma cidade onde a pequena oficina e o sistema de produção por encomendas eram predominantes, e onde a linha que separava o capital e o trabalho na produção era ainda um pouco turva, mesmo no fim do Império. Na verdade, como vimos no Capítulo 2, as oficinas parisienses haviam sido campos de reprodução férteis para todos os tipos de ideologias socialistas, comunalistas e comunistas desde o início da década de 1830, e continuavam a sê-lo.
O slogan comunista “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”* soava sedutor à massa dos empobrecidos e teve uma adesão poderosa entre os trabalhadores de ofício, que enfrentavam a instabilidade do emprego e os estragos da mudança tecnológica. Mas, como observou Corbon, existiam dois tipos de comunistas. Havia aqueles que procuravam impor seu sistema a toda a sociedade mediante o aumento do poder do Estado em relação à propriedade privada. Esses haviam buscado em 1848 a formação de oficinas nacionais como um prelúdio para a propriedade do Estado, a garantia do direito ao trabalho e a igualdade na distribuição. A partir desse ponto de vista, socialistas como Louis Blanc, Raspail e Barbès podiam unir-se a Blanqui (quando as rivalidades interpessoais permitiam) para conter o poder do Estado nos movimentos abortivos de 16 de abril e 15 de maio de 1848. Outros, como os cabetistas (icarianos) e fourieristas, procuravam vivenciar suas doutrinas no dia a dia, esperando convencer as pessoas das virtudes da organização coletiva e do comunismo por meio de seus exemplos. Após a frustração de 1848, esses últimos grupos optaram pela emigração ou foram obrigados a se exilar, principalmente nos Estados Unidos, que eram sua única esperança.
Proudhon, no entanto, tirou conclusões um tanto diferentes da experiência de 1848. Ele achava que os movimentos insurrecionais não ofereciam nada além da substituição de um regime repressivo e dominador por outro. O problema do trabalho não podia ser resolvido mediante canais políticos, pois o Estado era o inimigo, independentemente de quem o controlasse. Isso colocou Proudhon em conflito não somente com blanquistas e comunistas, mas também com todos aqueles que viam a república política como um prelúdio necessário para a mudança social. A luta para libertar o trabalhador deveria começar na oficina, mediante a implementação de planos práticos, e não de esquemas utópicos. A cooperação e o mutualismo significavam uma nova concepção de democracia dos trabalhadores no processo de trabalho e deveriam ser apoiados por um sistema bancário e de crédito mútuos, seguro mútuo, sociedades de ajuda mútua, esquemas cooperativos de moradia e coisas semelhantes. A virtude de um programa desse tipo era que ele evitava a intervenção do Estado e podia lançar uma base para o fenecimento deste. Tão importante quanto isso era o fato de que ele poderia superar os confrontos de classe nas oficinas e atrair os pequenos mestres (ameaçados pela competição, pela mudança nas condições do crédito e da comercialização etc.) para a causa.
Proudhon defendia a propriedade privada na habitação, no varejo etc., contanto que estivesse aberta a todos; objetava às greves e aos sindicatos; e desconfiava da ideia de associação, pois por volta de 1860 ela já estava se tornando parte da ideologia da luta de classe. Suas ideias eram influentes. Assim, encontramos Clément, representante dos sapateiros na Comissão dos Trabalhadores de 1867, desafiando e condenando aqueles que recorriam a greves, luta de classes e outras formas de confronto para o avanço da causa dos trabalhadores[33]. Ele argumentava que o poder da propriedade privada podia ser minado e a luta de classes evitada “por trabalhadores trabalhando em solidariedade e união, aprendendo a conhecer uns aos outros, vivendo em família”, construindo seu próprio capital e, desse modo, eliminando o poder da propriedade externa sobre sua vida.
No entanto, em meio aos debates em torno da organização do trabalho na Paris do Segundo Império, um conceito exercia poder e fascínio peculiares: a associação. Ele adquiriu uma posição central em parte devido às suas profundas raízes na tradição, mas também em virtude da sua ambiguidade. Foi fundamental para o pensamento saint-simoniano na década de 1830 e também para o fourierismo e o socialismo dos trabalhadores, que deram seus primeiros passos no mesmo período (ver Capítulo 2). A princípio, era uma ideia que procurava superar o conflito de classe, a anarquia social, a ambição egoísta e as desigualdades geradas pelo capitalismo da propriedade privada. Nas mãos dos saint-simonianos, significava a associação de todos os capitais, grandes e pequenos, mobilizados para fins tão produtivos e socialmente desejáveis que toda a sociedade civil, inclusive os próprios trabalhadores, estaria inserida na harmonia do progresso social. A formação dos Péreires, na década de 1830, foi baseada nessa ideologia, e eles a puseram em ação na década de 1850 com o intuito de construir um tipo democrático de capitalismo monopolista de Estado. Por isso, a ideia de associação tinha certa legitimidade e era ativamente apoiada pelo governo. Até Marx, que zombava dessa ideia, dizendo que a associação dos capitais não poderia senão estimular orgias de especulação, admitiu que ela era até capaz de constituir uma “forma de transição para um novo modo de produção”, dotando assim os Péreires “da agradável mistura de caráter de vigarista e profeta”[34].
Nas mãos do movimento dos trabalhadores, a ideia teve uma evolução importante. Em suas primeiras manifestações, na década de 1830, ela significava associações de produtores, sociedades de ajuda mútua e outras formas que Proudhon posteriormente aprovaria. Mas a repressão, seguida das devastações da mudança tecnológica e da exploração capitalista, transformou a “associação” em uma palavra-chave para a resistência corporativista e de classe. O primeiro sentido parece ter predominado em Paris pelo menos até 1848-1851. O decreto do governo provisório de 1848, que garantia o direito ao trabalho, também garantia o direito de os trabalhadores se associarem “para desfrutar dos benefícios legítimos do seu trabalho”. A frase é ambígua. Será que ela significa o direito de formar sindicatos ou de fundar cooperativas de produtores? Na prática, ela atraiu todos os trabalhadores de ofício que, entendendo a riqueza como algo fundado no trabalho, consideravam a livre associação dos trabalhadores na produção como o meio para captar os benefícios do seu próprio trabalho e, ao mesmo tempo, assegurar a reorganização pacífica da sociedade sob o controle dos produtores diretos[35].
A repressão feroz de todas as formas de organização de trabalhadores em 1851 (salvo as sociedades de ajuda mútua e aquelas sob rígido controle imperial) enterrou essas esperanças na clandestinidade, de onde Proudhon lutou para ressuscitá-las em sua forma voluntarista, em vez de direcionada pelo Estado. Mas, segundo a avaliação de Corbon, a ideia foi gradualmente perdendo terreno a partir de 1848, não como visão nobre de algum futuro socialista, mas como questão prática. Dadas a reorganização do processo de trabalho e a crescente cisão entre capital e trabalho na indústria parisiense, meios coletivos tinham de ser criados para fazer frente à desqualificação do trabalho e à queda das rendas reais. Corbon observou a renovação dos sentimentos corporativistas durante a década de 1860 e a mobilização das formas corporativistas (abolidas na Revolução Francesa) pela defesa dos interesses da classe trabalhadora e em oposição à liberdade dos mercados de trabalho[36]. Na época, “associação” significava o direito à formação de sindicatos para negociar coletivamente índices salariais e condições de trabalho. Os dois significados caminharam lado a lado no fim da década de 1860. A liberdade de associação era uma das exigências de todos os trabalhadores nas reuniões da Comissão dos Trabalhadores em 1867. Contudo, ou eles pensavam coisas diferentes em relação ao termo, ou optavam de maneira consciente por jogar com a ambiguidade da palavra para tirar proveito político dela.
Em 1869, Tony Moilin publicou um tratado utopista, Paris en l’an 2000 [Paris no ano 2000][37]. Médico dedicado e culto (fora assistente de Claude Bernard, médico eminente), Moilin havia adquirido uma importante reputação pela ajuda que prestara aos pobres do 1º arrondissement durante a epidemia de cólera. Na década de 1860, envolveu-se apaixonadamente com o ideal de um futuro socialista baseado na ordem e na justiça social, e às vezes teve problemas com as autoridades por causa de suas ideias. Ele concebeu um governo socialista que, no ano 2000, teria transformado a cidade para promover o bem-estar de todos. O Estado deteria todas as propriedades, eliminando assim a especulação imobiliária e o latifúndio. A reforma da cidade ficaria a cargo de arquitetos, que haveriam removido as favelas dilapidadas e as estruturas anti-higiênicas. Mas o processo teria sido gradual, o que evitaria a brutalidade e as injustiças de classe das demolições de Haussmann. Ao fim e ao cabo, o tecido urbano seria dominado por estruturas reminiscentes dos falanstérios de Fourier, blocos habitacionais quadrados com um espaço central de jardins e pátios para atividades sociais e comuns. A conectividade dentro da cidade seria garantida por passagens no segundo andar, servidas por elevadores e ligadas por meio de pontes e passarelas. Isso proporcionaria espaços interligados de compras e passeio e um sistema de comunicações para toda a população urbana (ideal para o flâneur). As oficinas ficariam no piso térreo, e a iluminação e o arejamento do projeto permitiriam que o trabalho ocorresse sob as melhores condições ambientais.
Toda a Île de la Cité e a Île Saint-Louis seriam ocupadas por uma imensa estrutura, o Palais Internationale (variação de Perreymond – ver p. 117-22), para o qual fluiriam ferrovias suspensas e que funcionaria como um local de recepção de eventos, como uma exposição mundial permanente para celebrar a fraternidade universal e a união da humanidade. Ali estariam também os escritórios do governo e um templo do socialismo (substituindo a Notre-Dame), que seria o centro de ritual e adoração da nova ordem. Inúmeras atividades cívicas seriam ali realizadas, mediante as quais um senso de identidade com a cidade se forjaria em todos. Um balcão no alto dessa estrutura permitiria às pessoas olhar toda a cidade e apreciar sua unidade. Imensas colunas em torno do palácio suportariam um enorme domo, que teria saído do papel graças à nova arquitetura feita com vidro e ferro.
No ano 2000, a desigualdade de renda já seria muito menor (não mais que 1 para 5) e, graças à propriedade pública, a igualdade também haveria se consolidado na organização do trabalho. Hábitos sociais de generosidade, apoio mútuo e igualdade de engajamento teriam sido alcançados por meio de reformas na educação e na aprendizagem. A posse de propriedade seria rara, os aluguéis modestos, e os blocos habitacionais se caracterizariam pela maior diversidade possível de pessoas. O serviço doméstico teria sido abolido. Muitas mulheres trabalhariam de acordo com suas aptidões, mas ainda não teriam direitos políticos (uma concessão a Proudhon?) e a família continuaria sendo a base da ordem social (embora com o reconhecimento do divórcio e a proibição da prostituição). O mundo intelectual seria marcado por discussões e debates efervescentes na Academia de Paris (para a qual mulheres e jovens poderiam ser eleitos por sufrágio universal). O forte apreço por exposições, bailes, concertos, peças teatrais, jornais e pela competição e conquista de marcas distintivas (a Medalha da República seria a mais valorizada) continuaria sendo um aspecto importante da vida cultural. Enormes cafés (onde não se exageraria na bebida) seriam centros de socialização e conversas. Os parisienses tampouco teriam esquecido como se divertir, e as artes do ocioso e do flâneur seriam muito apreciadas. Como Benjamin observou um tanto desdenhosamente, Moilin não só se inspirou muito em Fourier, mas vislumbrou a cidade ideal principalmente a partir da democratização do consumo e da fête impériale, e não em termos de uma forma organizada de produção.
A arte do pensamento utópico, esmagada por completo em 1848, ressuscitava vinte anos depois. Moilin desempenhou um papel muito pequeno na Comuna de 1871 – representou a mairie do seu arrondissement durante os três primeiros dias de março. Mas foi preso pelas forças de Versalhes em 27 de maio, julgado pela corte marcial sumária nos Jardins de Luxemburgo e imediatamente condenado à morte, não por causa de suas ações, segundo o veredicto, mas porque “ele era um dos líderes do partido socialista, perigoso devido a seus talentos, seu caráter e sua influência sobre as massas; em resumo, um desses homens dos quais um governo prudente e sábio precisa se livrar quando encontra uma ocasião legítima para fazê-lo”[38]. Foi-lhe concedida uma trégua de doze horas para se casar com sua companheira grávida, e depois ele foi fuzilado nos Jardins, na manhã de 28 de maio de 1871.
Pouco antes da Comuna, Edmond de Goncourt registrou em seu diário: “Eles falam da agitação nervosa das mulheres [...] do medo de terem de reprimir revoltas femininas”. Depois da Comuna, esse medo se tornou um mito de “mulheres sinistras”, “amazonas e viragos”, inspirando e inflamando os homens por “seu atrevimento obsceno e desavergonhado, [...] roupas desabotoadas, seios quase nus”, incitando e liderando o incêndio de Paris. Ao contemplar o corpo das mulheres que haviam sido arrastadas de casas e barricadas e sumariamente fuziladas, Houssaye escreveu: “Nenhuma dessas mulheres tinha uma face humana; apenas a imagem do crime e do vício. Eram corpos sem almas, mereciam mil mortes, mesmo antes de terem colocado as mãos na gasolina. Há uma única palavra para descrevê-las: odiosas”[39].
Esse imaginário de bestialidade e barbarismo femininos em meio à revolta e à revolução, do papel das “mulheres incendiárias” na Comuna, persistiu de forma vigorosa, ainda que os tribunais militares dificilmente encontrassem qualquer evidência disso – e não por falta de tentativa[40]. Zola, baseando-se muito nas descrições da Comuna de Maxime Du Camp, inseriu em Germinal* uma cena horrenda de linchamento e castração do lojista do lugarejo por mulheres enraivecidas. Imagens desse tipo não são raras e podem ser encontradas no decorrer de todo o Segundo Império. Então, o que tudo isso queria dizer?
A conexão entre as mulheres, a liberdade e a República (e, portanto, com a revolução) há muito vinha se formando (como vimos no Capítulo 2). As imagens eram tão poderosas que a maneira como as mulheres eram descritas tornou-se, como visto, um foco tenso de rivalidade iconográfica. Nas Jornadas de Junho de 1848, o London Examiner relatou um incidente que parece reencenar o quadro de Delacroix, A Liberdade guiando o povo (embora com um resultado menos feliz):
Uma das mulheres, uma jovem bem vestida, pegou a bandeira e, saltando sobre a barricada, investiu contra os guardas nacionais, usando palavras de provocação [...] um tiro a atingiu e ela foi morta. A outra mulher então avançou, pegou a bandeira e começou a atirar pedras nos guardas nacionais [...] [que] a mataram.
Victor Hugo relatou o mesmo incidente, mas chamou as duas mulheres de “prostitutas, belas, desgrenhadas, aterrorizantes”. Proferindo obscenidades, elas puxavam os vestidos até a cintura, gritando, “Covardes! Atirem, caso se atrevam, na barriga de uma mulher”. “Foi assim que começou esta guerra”, acrescenta Hugo com pesar[41]. Tocqueville, como já vimos, também deu vazão a todos os medos burgueses da mulher rebelde e incontrolável como agente da revolução, e a descrição de Flaubert da prostituta posando como a Liberdade nas Tulherias em 1848 deu continuidade à tradição. Do outro lado do canal da Mancha, Charles Dickens propagava a mesma ideia (embora ela fosse, é claro, descrita como peculiarmente francesa) ao retratar Madame Defarge e “La Vengeance” em Um conto de duas cidades*.
Eventos do tipo que Hugo descreve puseram a alegoria em movimento. E o simbolismo certamente não passou despercebido: afinal, não havia a República fuzilado a Liberdade nas barricadas? A iconografia daí em diante se dividiu em linhas bem demarcadas pela distinção entre a república social e a política. A “cautelosa República da ordem e da reconciliação” necessitava de uma representação um tanto diferente da imagem “impetuosa e rebelde” da República do povo: “Começou a parecer que, logo, o campo daqueles que vestiam roupas de trabalhadores teria uma República com um barrete vermelho e o corpete desabotoado, enquanto o campo dos cavalheiros de trajes escuros teria uma República com postura de dama, coberta de folhas e vestida da cabeça aos pés”[42]. Após 1848, os republicanos respeitáveis começaram a se dedicar à domesticação da imagem (Bartholdi discutiu pela primeira vez no fim de 1860 seus planos para a Estátua da Liberdade, que agora está no porto de Nova York). Os trabalhadores se aferraram a uma imagem mais revolucionária, formando “conspirações marianistas”, principalmente nas áreas rurais, embora uma tivesse sido desbaratada em Paris, em 1855. Seu programa incluía a emancipação das mulheres, a nacionalização da terra e “tudo o que isso implica” e garantias de vida, emprego e educação adequados para todos. Evidentemente, esses posicionamentos eram muito resistentes. Quando observadoras foram à Comissão dos Trabalhadores de 1867, um trabalhador gritou: “Senhora, ao vê-la entrar, achei que via a Liberdade. Sempre que as mulheres se sentam com os homens nestes encontros, tem início o reino da liberdade e da justiça. Vive la Femme! Vive la Liberté!”[43].
Figura 98: Neste retrato de 1848 em que mulheres ameaçam tomar a Assembleia Nacional para obter o direito ao divórcio, Daumier capta os medos burgueses acerca do feminismo e das consequências do envolvimento feminino na política.
A ideia de que as mulheres pertencem exclusivamente ao lar era uma crença profundamente arraigada entre a burguesia. Até republicanos radicais, como Michelet, e socialistas a abraçavam. As anotações de Proudhon para Pornocratie [Pornocracia] contêm “todas as noções de reacionarismo cruel já usadas contra a emancipação da mulher pelo mais extremado antifeminista”[44]. Reforçadas pela reverência à domesticidade (que em larga medida refletia o processo de domesticação da imagem da Liberdade), suas bases materiais se fundamentavam em uma concepção do casamento como um empreendimento comercial, na distinção crescente entre local de trabalho e residência e na importância fundamental que uma economia doméstica bem administrada representava para o sucesso da burguesia. Também tinham muito a ver com um sistema de propriedade e herança que tornava os hábitos e a moral da aristocracia impraticáveis, exceto sob condições de enorme riqueza. Os republicanos burgueses estavam encurralados entre o espectro do colapso diante do comportamento dissoluto da classe trabalhadora e à noblesse oblige da aristocracia. Para eles, o controle sobre as mulheres era considerado essencial para a preservação da posição da classe. Além disso, a maioria delas parecia ter aceitado essa equação. Até mesmo George Sand se pôs a enaltecer as virtudes da família na década de 1860 e depois da Comuna se sentiu livre para dirigir as mais sarcásticas farpas contra os communards, embora nunca tivesse saído da sua propriedade rural. As mulheres dissonantes, como Jenny d’Héricourt, não eram alvo de muita atenção, e havia poucos sinais que apontassem para a existência de uma política feminista independente – a questão do voto das mulheres (muito debatida na Inglaterra) não veio à tona. Só quando o Império estava próximo do fim um conjunto de mulheres (Louise Michel, Paule Minck, André Léo e Elisabeth Dmitrieff) começou a falar sobre os direitos das mulheres e a organizar grupos como o Union des Femmes, que desempenhou um papel muito importante na Comuna[45].
É tentador especular sobre o significado social-psicológico disso tudo. A imagem da Liberdade como uma mulher aterrorizante e incontrolável do tipo que Tocqueville havia encontrado – pior ainda, uma prostituta pública – em uma sociedade falocrática na qual a preservação da propriedade privada e a posição de classe da burguesia dependiam do controle sobre as mulheres deve ter abalado profundamente a psique masculina burguesa. As representações de Manet das mulheres (em Olympia e Almoço na relva) parecem ter provocado a ira dos burgueses precisamente porque elas se assemelhavam a prostitutas comuns, cujo olhar era insuficientemente submisso[46]. Hertz sugere que os medos da castração (do tipo que Zola tornou tão explícito em Germinal) combinaram-se aos antagonismos de classe e produziram “a histeria masculina sob pressão política”[47]. É difícil explicar de qualquer outra maneira a extraordinária violência da retórica masculina contra as mulheres que participavam da ação revolucionária. É difícil lidar até com as representações republicanas convencionais.
A mulher, de Michelet, publicada pela primeira vez em 1859, foi um tratado muito influente escrito por um famoso historiador republicano. Quando a Comissão dos Trabalhadores de 1867 voltou sua atenção para as mulheres, um certo Dr. Dupas externou uma versão grosseira das ideias gerais de Michelet. A mulher, declarou ele, não é igual ao homem em força física, intelecto, preocupações morais ou devoção às questões públicas, mas seu amor e devoção como esposa e mãe suplantam mil vezes qualquer coisa de que os homens sejam capazes. Os homens são representantes da civilização, e as mulheres são criaturas da natureza (“A mulher é natural, ou seja, é abominável”, bradou Baudelaire, enquanto o Almoço na relva, de Manet, parece simultaneamente representar e parodiar o oposto daquilo a que Michelet deu tanta importância).
A oposição entre homem e mulher poderia ser resolvida de forma criativa ou destrutiva. Na ausência da contenção masculina, o lado impuro da natureza da mulher (representado pela menstruação) podia dominar e irromper em violenta histeria (que é supostamente o que Hugo, Tocqueville e os anticommunards pensam ter visto durante a revolução). A mulher no trabalho e sem a contenção masculina, continuou Dupas, coloca uma mancha moral na sociedade; essa situação infeliz expunha a sociedade à degradação e à histeria produzidas na oficina. A única resolução positiva estava na união entre homem e mulher sob o domínio masculino (o homem é “1” e a mulher é “0”, explicou ele, e a única maneira de multiplicar seu poder social é colocar o “1” na frente do “0”; assim se obtém 10). No entanto, era essencial que as mulheres fossem tratadas com respeito e simpatia. E aqui estava o ponto central da mensagem de Michelet. A mulher tinha de ser colocada no papel de madona sofredora, cujo fardo natural podia ser aliviado e cuja infinita capacidade de amor e devoção só poderia ser liberada sob o controle masculino respeitoso e paternalista[48]. É significativo, acho eu, que nenhum trabalhador tenha se manifestado a favor dessa visão, e a maioria a tenha condenado totalmente.
Jules Simon também apareceu diante da Comissão dos Trabalhadores, mas assumiu uma posição completamente diferente. Ele deplorava o fato de as mulheres trabalharem, pois isso tendia a destruir a família, conduzia à negligência dos filhos e privava o homem de um ambiente doméstico estável, dedicado e amoroso, onde pudesse reabastecer o corpo e a alma. Algo tinha de ser feito para preservar a família. Mas Simon sabia que, para a maioria da classe trabalhadora, o trabalho das mulheres era uma necessidade, e a indústria também carecia de sua força de trabalho. Ele era contrário à proibição do trabalho feminino, pois as mulheres precisavam de emprego e negar isso a elas significaria uma interferência na preciosa liberdade (a do mercado). O problema era a falta de empregos respeitáveis e bem remunerados para as mulheres, que as impediriam de cair na depravação e na prostituição. A resposta estaria na educação estatal gratuita, que aumentaria o valor da sua força de trabalho (um argumento de capital humano) e melhoraria suas habilidades como educadoras na família. As reformas educacionais do fim da década de 1860 de fato abriram essa possibilidade e, ao que parece, foram apreciadas por trabalhadores e até militantes feministas. Simon tinha popularidade suficiente para atrair uma grande quantidade de votos da classe trabalhadora para sua eleição em 1869, e suas ideias eram estimadas por militantes feministas. Mas, como vários trabalhadores indicaram nas reuniões da comissão, o avanço da educação das mulheres aumentaria a gama de empregos pelos quais elas poderiam competir e puxaria os salários para baixo. Assim, Simon tinha o apoio do interesse industrial, que, do seu próprio ponto de vista, via mérito em suas propostas[49].
Então, o que os trabalhadores pensavam? A fala de Fribourg, membro da Internacional, provavelmente representava o pensamento da maioria, ecoando Proudhon. Este afirmava que as mulheres pertenciam ao lar, sob a autoridade dos homens. Embora houvesse mais do que apenas um toque de misoginia em seus escritos, o posicionamento do trabalhador não estava fundado em argumentos como os de Michelet ou Dupas. Ele se baseava, em primeiro lugar, na tradição de que o homem tinha o direito legal e moral de dispor da força de trabalho da família. Também se baseava no desejo de proteger a família e a autoridade do homem como o grande provedor. Os homens deveriam, portanto, receber salários maiores que os das mulheres. Na Paris do Segundo Império, esse posicionamento também foi alimentado pela intensa hostilidade, mobilizada nos conventos ou nas próprias oficinas, à concorrência da força de trabalho feminina. A greve dos tipógrafos de 1862 foi, nesse aspecto, um caso famoso; os trabalhadores homens temiam que mulheres fossem contratadas por um terço de seu salário para acabar com a greve. A solução de curto prazo era elevar os salários masculinos para que eles pudessem dar conta das necessidades familiares e legislar a fim de impedir a presença das mulheres nas oficinas. Os tipógrafos pediram ao imperador que fizesse exatamente isso e não titubearam em usar os argumentos propostos por Michelet. Eles apontavam a histeria gerada pela exposição à oficina e argumentavam, provavelmente com razão, que as substâncias tóxicas às quais as mulheres eram expostas e a natureza do trabalho causavam um alto índice de natimortalidade e de abortos espontâneos. Essas posições eram tão fortemente defendidas que a delegação francesa no congresso da Internacional em Genebra, em 1866, forçou a aprovação de uma resolução banindo as mulheres das oficinas e confinando-as ao lar.
Feministas socialistas, como Paule Minck, militaram contra essas atitudes no ramo parisiense da Internacional. “Não queremos ser tratadas nem como madonas, nem como escravas”, argumentou ela durante uma reunião pública em 1868, “mas como seres humanos comuns, diferentes mas iguais, que têm direito à paridade salarial com os homens e à associação em defesa da nossa emancipação econômica”. Ela se tornou aliada de homens como Varlin, que contestou o argumento de Fribourg diante da Comissão dos Trabalhadores: “O direito das mulheres ao trabalho é o único meio para sua verdadeira libertação”, e os contrários a isso “simplesmente queriam mantê-las sob a dominação masculina”. Varlin, pelo menos, foi fiel à sua palavra e, durante a criação da constituição do sindicato dos encadernadores, garantiu às mulheres o direito à igualdade salarial[50]. Os sapateiros, no entanto, achavam que já era progressista o bastante permitir a participação das mulheres no sindicato, contanto que não fizessem perguntas, exceto por escrito ou por meio de um membro do sexo masculino.
Nas reuniões da Comissão dos Trabalhadores, representações e retórica se cruzavam a toda hora, mas nunca se tocavam. A real tragédia disso já estava cravada na vida diária das mulheres. O terrível rescaldo da Comuna ilustra a violência e o horror desencadeados quando o antagonismo de classe e o de gênero reforçam um ao outro. Muitas das mulheres que foram arrastadas aos tribunais militares haviam simplesmente atuado como ajudantes em ambulâncias ou cantinas e ficaram perplexas com a retórica e as acusações de crimes hediondos dirigidas a elas. Haviam dedicado a vida à nobreza de uma causa e acabaram sendo julgadas pelo discurso histérico de outra.
Quando representações privadas penetram a retórica pública, tornam-se meios e motivações para ações tanto individuais quanto coletivas. Evidentemente, é sempre mais fácil reformular o que as pessoas disseram do que adivinhar como pensavam. E a variação individual nessa esfera é com frequência tão grande que qualquer afirmação geral deve parecer traiçoeira. Mas, dentre os inúmeros turbilhões de ideias, temas amplos se destacam e sugerem motivações. Entretanto, o campo de verificação final deve ser a ação, pois há muitos pensamentos que nunca adquirem o status de força material, permanecendo para sempre no reino dos sonhos. Esse não foi o caso dos temas que examinamos aqui. A experiência da Comuna os fez entrar na vida social, geralmente de modo turbulento. E há evidências suficientes da ordenação da vida diária na Paris do Segundo Império que tornam pelo menos razoável inferir que a forma da retórica e da representação, assim como da ciência e do sentimento, representavam mais que momentos irrelevantes e limitados a poucos. O que deve, contudo, ser acrescentado é outra categoria, a dos silêncios – os silêncios da multidão cujas ideias não podemos rastrear e os silêncios estratégicos daquela que podemos.
[1] Citado em T. J. Clark, The Absolute Bourgeois, cit., p. 16, e em Neil Hertz, The End of the Line: Essays on Psychoanalysis and the Sublime (Nova York, Columbia University Press, 1985).
[2] Bayle St. John, Purple Tints of Paris, cit., p. 91.
[3] Adrian Rifkin, “Cultural Movements and the Paris Commune”, cit.
[4] Iouda Tchernoff, Le parti républicain au coup d’État sous le Second Empire d’asprés des documents et des souvenirs inédits, cit., p. 506-26; Edward Copping, Aspects of Paris, cit., p. 80; T. J. Clark, The Absolute Bourgeois, cit.; Frederick Green, A Comparative View of French and British Civilization, cit.
[5] Edward Copping, Aspects of Paris, cit.
[6] Citado em Clarence Glacken, Traces on the Rhodian Shore (Oakland, University of California Press, 1967), p. 592; Arthur de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines (Paris, Librairie de Firmin Didot, 1853-1855); Michael Biddiss, Father of Racist Ideology: The Social and Political Thought of Count Gobineau (Nova York, Weybright and Talley, 1970).
[7] O mito do bom selvagem é derrubado em Ter Ellingson, The Myth of the Noble Savage (Oakland, University of California Press, 2001).
[8] Laurentie, citado em Sudhir Hazareesingh, From Subject to Citizen, cit., p. 127.
[9] Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes, cit.; Bernard Marchand, Paris: histoire d’une ville, cit.
[10] Lionel Gossmann, “The Go-between: Jules Michelet, 1798-1874”, Modern Language Notes, Baltimore, Johns Hopkins University Press, n. 89, maio 1974, p. 503-41; Edward Said, Orientalism (Nova York, Vintage, 1979) [ed. bras.: Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, São Paulo, Companhia das Letras, 2007].
[11] Arthur Hitzman, “Rome Is to Carthage as Male Is to Female: Michelet, Berlioz, Flaubert and the Myths of the Second Empire”, Western Society for French History, n. 8, 1981, p. 378-80; Edward Said, Orientalism, cit., p. 167.
[12] Jules Michelet, La femme, cit.; Émile Zola, Money, cit.
[13] Gustave Flaubert, Flaubert in Egypt – A Sensibility on Tour: A Narrative Drawn from Gustave Flaubert’s Travel Notes & Letters (Chicago, Academy Chicago, 1979), p. 198-9.
[14] Citado em Henriette Chardak, Elisée Reclus: une vie (Paris, Stock, 1997); Gary Dunbar, Elisée Reclus, Historian of Nature (Hamden, Archon, 1978), p. 52.
[15] T. J. Clark, Image of the People, cit.
[16] Nicholas Green, The Spectacle of Nature, cit.
[17] Marshall Berman, All that is Solid Melts into Air, cit., p. 153 [ed. bras.: Tudo que é sólido desmancha no ar, cit., p. 147-8]; Walter Benjamin, Charles Baudelaire, cit.; Anthony Vidler, “The Scenes of the Street: Transformations in Ideal and Reality, 1750-1871”, cit.
[18] Maurice Dommanget, Blanqui et l’opposition révolutionnaire à la fin du Second Empire, cit.
[19] Bayle St. John, Purple Tints of Paris, cit., p. 11.
[20] Sudhir Hazareesingh, From Subject to Citizen, cit.; Louis Greenberg, Sisters of Liberty, cit., p. 24.
[21] Georges-Eugène Haussmann, Mémoires du Baron Haussmann, cit., v. 2, p. 202; Bayle St. John, Purple Tints of Paris, cit., p. 14; Louis Greenberg, Sisters of Liberty, cit.; Roger Gould, Insurgent Identities, cit.
[22] Paris-Guide, cit., p. 30.
[23] Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes, cit., p. 360-1.
[24] Gustave Flaubert, Sentimental Education, cit., p. 334.
[25] Louis Lazare, Les quartiers pauvres de Paris, cit., p. 60.
[26] Citado em Paul Lidsky, Les écrivains contre la Commune (Paris, Maspero, 1970), p. 46.
[27] Charles Baudelaire, Intimate Journals, cit., p. 67; Gustave Flaubert, Flaubert in Egypt, cit., p. 49; Edmond de Goncourt, Paris Under Siege, 1870-1871: From the Goncourt Journal (org. George Becker, Ithaca, Cornell University Press, 1969).
[28] Patrick Hutton, The Cult of the Revolutionary Tradition, cit., p. 66.
[29] Armand Audiganne, Les populations ouvrières et les industries de la France dans le mouvement social du XIXème siècle, cit., e Les ouvrièrs d’à-présent et la nouvelle économie du travail (Paris, E. Lacroix, 1865). Ver também Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit.; Denis Poulot, Le sublime, cit.
[30] Jules Vallès, Le tableau de Paris (Paris, Éditeurs Français Réunis, 1971); Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit.; Georges Duveau, La vie ouvrière en France sous le Second Empire, cit., p. 209; Louis Lazare, Les quartiers pauvres de Paris, cit., Les quartiers pauvres de Paris: le XXème arrondissement, cit., e La France et Paris (Paris, Bureau de la Bibliothèque Municipale, 1872).
[31] Clément Lepidis e Emmanuel Jacomin, Belleville, cit., p. 285.
[32] Patrick Hutton, The Cult of the Revolutionary Tradition, cit.; Maurice Dommanget, Blanqui, cit., e Blanqui et l’opposition révolutionnaire à la fin du Second Empire, cit.
[33] Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit., p. 110; Edward Hyams, Pierre-Joseph Proudhon, cit.; Procès-verbaux de la Commission Ouvrière de 1867 (Paris, s.n., 1867), p. 28-33.
[34] Karl Marx, Capital, cit., v. 3, p. 441.
[35] William H. Sewell, Work and Revolution in France, cit., p. 243-76.
[36] Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit., p. 122-41.
[37] Tony Moilin, Paris en l’an 2000 (Paris, Librairie de la Renaissance, 1869), p. 441.
[38] Prosper-Olivier Lissagaray, Histoire de la Commune de 1871 (Paris, Maspero, 1976), p. 393 [ed. bras.: A história da Comuna de 1871, São Paulo, Ensaio, 1995].
[39] Citado em Paul Lidsky, Les écrivains contre la Commune, cit., p. 45, 115; Edith Thomas, The Women Incendiaries, cit., p. 182.
[40] O estudo mais completo é o de Edith Thomas, The Women Incendiaries, cit.
[41]* São Paulo, Companhia das Letras, 2007. (N. E.)
Neil Hertz, “Medusa’s Head: Male Hysteria under Political Pressure”, Representations, Oakland, University of California Press, n. 4, 1983, p. 37-54.
[42]* São Paulo, Estação Liberdade, 2010. (N. E.)
Maurice Agulhon, Marianne into Battle, cit., p. 99.
[43] Albert Thomas, Le Second Empire, cit., p. 164; Procès-verbaux de la Commission Ouvrière de 1867, cit., p. 100; Joan Moon, “The Saint-Simonian Association of Working Class Women, 1830- -1850”, Western Society for French History, n. 5, 1975, p. 274-80; Claire Moses, French Feminism in the Nineteenth Century, cit.
[44] Edward Hyams, Pierre-Joseph Proudhon, cit., p. 274.
[45] Jenny d’Héricourt, La femme affranchi: réponse à MM. Michelet, Proudhon, É. de Girardin, A. Comte et aux autres novateurs modernes (Paris, F. van Meenen, 1860); Frederick Green, A Comparative View of French and British Civilization, cit., p. 95; Edith Thomas, The Women Incendiaries, cit, p. 70-87.
[46] Theodore Reff (org.), Manet and Modern Paris (Washington, National Gallery of Art, 1982); T. J. Clark, The Painting of Modern Life, cit.
[47] Maurice Agulhon, Marianne into Battle, cit., p. 185; Neil Hertz, “Medusa’s Head: Male Hysteria under Political Pressure”, cit.
[48] Jules Michelet, La femme, cit.; Charles Baudelaire, Intimate Journals, cit., p. 531; Procès-verbaux de la Commission Ouvrière de 1867, cit.
[49] Jules Simon, L’ouvrière, cit.; ver também Procès-verbaux de la Commission Ouvrière de 1867, cit., p. 213-7; Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History, cit.
[50] Alain Dalotel, Paule Minck, cit., p. 122; Procès-verbaux de la Commission Ouvrière de 1867, cit., p. 233.
* “Prefácio”, em Contribuição à crítica da economia política (trad. Florestan Fernandes, 2. ed., São Paulo, Expressão Popular, 2008), incluído em Emir Sader e Ivana Jinkings (orgs.), As armas da crítica (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 106. (N. E.)
* Karl Marx, “Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão”, em Crítica do Programa de Gotha (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2012), p. 32. (N. E.)