Paris é, na verdade, um oceano. Penetre nela: você nunca tocará seu fundo. Examine-a, escreva sobre ela. Por mais escrupulosos que sejam seu exame e seus relatos, por mais numerosos e persistentes que sejam os exploradores desse mar, sempre permanecerão virgens alguns lugares, cavernas, flores, pérolas, monstros não descobertos – sempre haverá algo extraordinário, perdido pelo mergulhador literário.
Honoré de Balzac*
Se tudo fosse como parece na superfície, não haveria necessidade da ciência.
Karl Marx**
Paris em 1850 era uma cidade na qual problemas e possibilidades sociais, econômicos e políticos efervesciam. Alguns a viam como um lugar doente assolado por tormentos políticos, dilacerado por lutas de classe e arruinado pela própria decadência, corrupção, crime e cólera. Outros a viam como uma cidade de oportunidades para a ambição privada ou o progresso social; se as chaves certas para o mistério de suas possibilidades fossem encontradas, toda a civilização ocidental poderia se transformar. Apesar de tudo, sua população aumentou rapidamente, de 786 mil habitantes em 1831 para mais de 1 milhão em 1846 (Tabela 1). Sua indústria crescera de forma notável, tendo inclusive ampliado seu tradicional papel centralizado como o coração nacional das comunicações, das finanças, do comércio, da cultura e, é claro, da administração do Estado. Com um passado tão dinâmico, como ela poderia não ter um futuro dinâmico?
Mas em 1850 a cidade parecia aprisionada em uma dupla camisa de força, em que cada camada parecia reforçar a outra. Estava, antes de tudo, presa no rescaldo da mais profunda e disseminada crise do capital vista até então. A cidade já havia enfrentado muitas crises econômicas antes, em geral desencadeadas por calamidades naturais ou guerras. Mas essa era diferente, pois não podia ser facilmente atribuída apenas a Deus ou à natureza. A bem da verdade, houve perdas nas colheitas em 1846-1847 que trouxeram a miséria ao campo e um fluxo de pessoas aflitas para a cidade, buscando emprego ou assistência. Mas em 1848 o capitalismo havia amadurecido em um grau suficiente para até o mais cego apologista burguês enxergar que as condições financeiras, a especulação incauta (em particular com respeito às ferrovias) e a superprodução tinham algo a ver com a tragédia humana que se abateu sobre a Grã-Bretanha em 1847 e logo engolfou tudo em que consistia o mundo capitalista. A maior parte da Europa sofreu a mesma crise simultaneamente, tornando difícil reduzir sua interpretação apenas a narrativas nacionais sobre um tipo ou outro de fracasso do governo. Tratava-se de uma crise completa da superacumulação capitalista em que excedentes maciços de capital e força de trabalho estavam lado a lado, mas parecia não haver saída para juntá-los novamente em uma união lucrativa. Em 1848, a reforma do capitalismo ou sua derrubada revolucionária encaravam todas as pessoas.
Figura 27: A nova Paris (1862), de Daumier, capta muitas facetas das mudanças provocadas pela haussmannização. A figura diz: “Que alegria para os apressados que os meios de comunicação tenham sido ampliados”. O burguês consulta o relógio, a esposa e o filho hesitam, o trânsito é intenso.
O fato de Paris ter aberto o caminho e assumido a saída revolucionária não foi totalmente fortuito. E representou mais do que apenas a conhecida tradição revolucionária, que levava seus cidadãos a fazer interpretações políticas ao menor sinal de dificuldade econômica, tomar as ruas, montar barricadas e proclamar seus direitos como os Direitos do Homem[1]. Pois a outra camisa de força que sufocava a cidade era uma verdadeira rede de práticas sociais e infraestruturas do século XVIII que dominava a manufatura, as finanças, o comércio, o governo e as relações de trabalho, sem falar no modelo ainda em grande parte medieval das infraestruturas físicas, ao qual essas atividades e práticas estavam confinadas. Apesar de todo falatório sobre a renovação urbana e das tentativas ocasionais de colocá-la em prática durante a Monarquia de Julho, Paris havia sido devastada. Chevalier escreve:
Nesses anos Paris olhava em volta e era incapaz de se reconhecer. Outra cidade maior havia inundado a estrutura inalterada de ruas, mansões, casas e corredores, empilhando homem sobre homem e comércio sobre comércio, preenchendo cada canto e esquina, transformando as antigas moradias da nobreza e da classe social mais elevada em oficinas e pensões, erigindo fábricas e amontoando estoques em jardins e pátios de onde as carruagens haviam se afastado silenciosamente, lotando de súbito as ruas encolhidas e os agora superpovoados cemitérios góticos, ressuscitando e sobrecarregando os esquecidos canos de esgoto, derramando detritos e fedores no campo.[2]
Figura 28: As ruas da velha Paris, aqui representadas por duas fotos de Marville datadas do início da década de 1850, eram estreitas e inóspitas ao movimento, insalubres (observe o esgoto sempre escoando nas ruas) e cobertas de construções que com frequência estavam caindo aos pedaços. Observe como, à direita, as propagandas de transporte de ônibus e trens prometem outro mundo de relações espaciais em vez daquele no qual a velha Paris está incrustada.
Embora não houvesse nada de singular na miséria humana, na degradação, na doença, no crime e na prostituição – características bastante comuns no capitalismo industrial da época –, essa antiga infraestrutura urbana era incompatível com a organização capitalista cada vez mais sofisticada e eficiente da produção e do consumo que emergia nas novas cidades manufatureiras não somente na Grã-Bretanha – principal concorrente comercial da França –, mas também na Bélgica, Alemanha, Áustria e até em algumas outras regiões da França. Pois, embora Paris tenha melhorado sua posição na divisão internacional do trabalho após a Revolução de 1830, ela o fez mais por meio de adaptações graduais e pontuais de seus antigos métodos do que por transformações nos sistemas de produção. Uma crescente divisão técnica e social do trabalho, apoiada pelas qualidades especiais da sua produtividade e do volume do seu mercado interno, havia sido a base do seu dinamismo na atividade manufatureira. Até mesmo o comércio – há muito tempo bem mais importante para a sua saúde econômica do que a produção – estava preso em ruas congestionadas, prejudicado por impostos e barreiras de todos os tipos, e era cronicamente ineficiente em sua maneira de negociar e distribuir as mercadorias. Como Paris não conseguiu enfrentar com eficácia as novas e mais rígidas exigências da acumulação do capital, sua agonia durante a crise de 1847-1848 foi dupla e mais prolongada; o caminho para a recuperação estava repleto de todos os tipos de obstáculos e fora agravado por uma evolução política e cultural que só gerava dúvida, confusão e medo.
Os diferentes segmentos da sociedade encaravam a crise de maneira um tanto diversa. Os artesãos, por exemplo, munidos de tradições corporativistas, viam a desqualificação, a perda de independência, dignidade e respeito, assim como a fragmentação das tarefas – e a insegurança crônica do emprego –, que eram cada vez mais impostas pelo controle capitalista da produção e da distribuição, como o cerne do problema. A Revolução de Fevereiro permitiu-lhes colocar na agenda política a questão do trabalho e do direito ao trabalho e afirmar o seu direito de serem tratados com dignidade e respeito, como iguais no corpo político. A república social, como já vimos, era tão importante para eles quanto a república política. Nisso eles tinham uma estranha série de aliados burgueses, desde pequenos mestres e lojistas, que também se sentiam ameaçados pelos novos sistemas de produção e distribuição, até radicais déclassé (jornalistas, artistas e escritores, assim como os persistentes revolucionários jacobinos, como Blanqui), poetas e escritores românticos (como Lamartine, Hugo e George Sand), que acreditavam na nobreza do trabalho dentro dos limites relativamente seguros de uma tradição artesã romantizada. Embora os românticos tenham rapidamente se desiludido quando encontraram trabalhadores de verdade nas barricadas, os movimentos sociais da década de 1840 se entrecruzaram com a consciência dos artesãos e geraram, como vimos no Capítulo 2, uma série de expectativas sobre como poderia funcionar uma república social protetora.
Esse sentimento socialista evidentemente alarmava a burguesia. O temor dos “vermelhos” aumentava a sua confusão a respeito da maneira de representar, explicar e reagir a uma crise político-econômica que exigia uma ação corretiva. Alguns viam as estruturas e práticas governamentais e financeiras como a raiz do problema e procuravam modernizar o Estado francês, liberar os fluxos do capital e proporcionar um maior impulso à economia. Elementos progressistas em Paris também há muito buscavam fortes intervenções do Estado para racionalizar e renovar totalmente as infraestruturas físicas deterioradas. Mas seus esforços foram frustrados por outras facções da burguesia, capturadas ou pelo conservadorismo fiscal que garantia a completa paralisia em uma época de depressão econômica severa, ou pelos direitos tradicionais à posse da propriedade (em grande parte absentista e rural) que pareciam oferecer uma esperança de salvação pessoal em meio à ruína do país. Muitos proprietários de terras fugiram da cidade em 1848, levando consigo seu poder de compra. Isso ajudou a afundar mais ainda a indústria, o comércio e os mercados imobiliários na lama da depressão.
A confusa série de acontecimentos que conduziu “aquele cretino” (a expressão é do impecável burguês Adolphe Thiers, e não de Marx) Luís Bonaparte ao poder, primeiro como presidente da República (eleito pelo sufrágio universal), em dezembro de 1848, e, quatro anos depois, como imperador, não precisa nos deter desnecessariamente. Sobre isso há fartos e brilhantes relatos em toda parte, começando, é claro, por As lutas de classes na França de 1848 a 1850 e O 18 de brumário de Luís Bonaparte, de Marx[3]. Basta comentar que questões relacionadas a trabalho e a uma resposta socialista à crise foram varridas da agenda política imediata na feroz repressão das Jornadas de Junho de 1848, quando os trabalhadores parisienses tomaram as ruas em protesto contra o fechamento das Oficinas Nacionais (a resposta da Segunda República à reivindicação do direito ao trabalho). Mas as eleições subsequentes indicaram que o sentimento socialista-democrata estava vivo e saudável. Pior ainda, ele apareceu não apenas em Paris e Lyon (onde era esperado), mas também em algumas áreas rurais, lembrando à França que as origens de sua tradição revolucionária, assim como de sua tradição reacionária, estavam profundamente enraizadas no campo. Diante dessa ameaça, a burguesia de toda parte recebeu bem a eleição do até então exilado, porém populista, Luís Bonaparte como presidente da República, em dezembro de 1848, e depois se rendeu muito facilmente ao golpe de Estado de dezembro de 1851 e à declaração do Império, em dezembro de 1852.
Figura 29: Retrato de Luís Napoleão, por Riffaut, Mayer e Saint-Victor.
A outra ameaça à ordem social proveio da destruição e desvalorização dos bens, resultado da crise econômica geral. Nenhuma das facções da burguesia, presas em lutas internas, tinha autoridade ou legitimidade para impor seu desejo. Na medida em que Luís Bonaparte parecia ser uma solução conciliatória que cada facção julgava poder controlar, ele ficou em uma posição na qual podia manipular a vontade popular, o partidarismo e as lealdades tradicionais à lenda napoleônica (particularmente no Exército) e, desse modo, consolidar um poder muito pessoal. Isso lhe deu espaço para abordar todo o complexo de problemas relativos à reforma e à modernização, ao controle do movimento trabalhista e suas pretensões, à revitalização da economia e à saída do profundo mal-estar econômico, político e cultural em que a França se arrastava entre 1848 e 1851.
Os dezoito anos do Segundo Império em parte alguma foram tão “cretinos” ou “farsescos” quanto Thiers e Marx (nas extremidades opostas do espectro político) haviam previsto. Foram um experimento incrivelmente sério com uma forma de socialismo nacional – um Estado autoritário com poderes de polícia e uma base populista. Ele entrou em colapso, como muitos outros experimentos de sua estirpe, em meio ao dissenso e à guerra, mas sua vigência foi marcada pela imposição de intensa disciplina no trabalho e pela liberação para que o capital circulasse sem as restrições precedentes. Mas não era claro na época (tampouco o é agora) exatamente que novas práticas sociais, sistemas e estruturas institucionais ou investimentos sociais funcionariam. O Segundo Império foi, então, uma fase de empenho para ajustar-se a um capitalismo florescente e exigente, no qual diversos interesses econômicos e políticos buscavam de forma deliberada determinadas vantagens e soluções, apenas para, muito frequentemente, se verem presos nas consequências involuntárias de suas próprias ações.
Foi nesse contexto que o imperador e seus conselheiros procuraram liberar Paris – sua vida, cultura e economia – das restrições que a vinculavam de modo tão estreito a um passado antigo. Embora algumas necessidades imediatas fossem claras – como a melhoria no acesso ao mercado central de Les Halles, a remoção das favelas em torno do centro da cidade e o aprimoramento na circulação do trânsito entre as estações ferroviárias e em direção ao centro cívico –, havia uma série de questões problemáticas. Elas incluíam obstáculos relativos a meios e fins, ao papel apropriado do Estado em relação aos interesses privados e à circulação de capital, ao grau de intervenção do Estado nos mercados de trabalho, na atividade industrial e comercial, à provisão de moradia e bem-estar social e a outros temas do gênero. Havia, acima de tudo, o problema político de como fazer a economia parisiense voltar a andar com os próprios pés sem provocar a resistência maciça de uma alta burguesia ainda poderosa nem alimentar as inseguranças de uma classe média sempre sob a ameaça de marginalização, apesar de parecer solidamente estabelecida, e muito menos induzir os trabalhadores à revolta direta. Desse ponto de vista, devemos ver o imperador, em última análise, como prisioneiro das forças de classe que ele de início parecia ludibriar com tanto desembaraço e desdém. O fato de ele ter conseguido chegar tão longe e fazer tanto apenas atesta o tremendo transtorno gerado pelo calor de 1848, transtorno esse que afetou não apenas a economia e a política, mas também as maneiras tradicionais de representar o mundo e agir de acordo com tais representações. Nesse aspecto, a vida parisiense, entre 1848 e 1851, estava totalmente conturbada, o que afetou a pintura (esse foi, afinal, o período de ruptura de Courbet em um mundo da arte que não conseguia compreendê-lo), as letras, a ciência e a administração, assim como a indústria, o comércio e as relações de trabalho. Só depois que todo o tumulto acalmou, a sólida resistência ao autoritarismo do Império pôde começar.
Em comparação com a sua conjuntura em 1850, a situação de Paris em 1870 havia mudado fundamentalmente. E as mudanças foram extensas e tiveram raízes profundas, embora não o suficiente para impedir outro grande evento na história da cidade, o levante que deu origem à Comuna de Paris, em 1871. No entanto, embora houvesse continuidades entre as revoluções de 1848 e 1871, muita coisa as separava. Os dezoito anos do Império haviam marcado de forma tão intensa a consciência dos parisienses quanto as obras de Haussmann haviam rasgado e reconstruído a estrutura física da cidade.
No que diz respeito ao destino de Paris, o fato de ela ter sido entregue a Haussmann em junho de 1853, sete meses após a declaração do Império, foi sem dúvida significativo[4]. Haussmann, como vimos anteriormente (p. 20-5), construiu certo relato mítico acerca da importância do Império e estimulou a percepção de uma total ruptura com o passado, na qual ele próprio inocentemente implementaria a vontade do imperador. A ruptura pode não ter sido total, mas foi decerto um ponto de virada. Haussmann era bem mais maquiavélico do que revelou em suas Mémoires. Era ambicioso, fascinado pelo poder, tinha seus próprios engajamentos ardorosos (e também uma visão muito particular de serviço público) e estava preparado para ir muito longe na busca de seus objetivos. Ele obteve um extraordinário poder pessoal por meio da autoridade de Luís Bonaparte e estava pronto para usá-lo ao máximo. Era incrivelmente dinâmico e bem organizado, tinha olhar clínico para detalhes e estava sempre disposto a desprezar opiniões e subverter a autoridade (mesmo a do imperador), operar à beira dos limites da legalidade, manipular as finanças por meio do que hoje chamamos de “contabilidade criativa”, ignorar opiniões alheias e não fazer absolutamente nenhuma concessão à democracia. Ele há muito exibia esses traços, e é quase certo que eles o tornaram muito atraente a Luís Bonaparte, em comparação com Berger, o prefeito financeiramente conservador e democraticamente contido que Haussmann substituiu. Ele julgava que teria para sempre o apoio do imperador, e estava certo até pelo menos o início da década de 1860. Excluiu de pronto o conselho municipal (que tanto havia pressionado o cauteloso Berger) e ignorou a comissão de planejamento (declarou tê-lo feito com a conivência do imperador, fato que ele simplesmente inventou). Em resumo, era um bonapartista autoritário, sobreviveu e prosperou durante todo o tempo em que o bonapartismo permaneceu intacto. Mas, quando este enfraqueceu e pouco a pouco deu lugar ao liberalismo, na década de 1860, a posição de Haussmann também ruiu, culminando em sua demissão sacrificial em janeiro de 1870, quando um democrata liberal, Émile Ollivier, tornou-se primeiro-ministro.
O que é tão intrigante em relação a Haussmann é que, embora entendesse perfeitamente a gravidade do problema macroeconômico com o qual se deparava no contexto da crise específica de Paris como uma economia urbana, sua reação incluía uma atenção intensa e com frequência torturante aos detalhes. Ele monitorava de perto os projetos de mobiliário urbano (como a iluminação a gás, os quiosques e até mesmo o projeto dos mictórios de rua conhecidos como vespasiennes). Era obcecado por detalhes de alinhamento. Angulou diagonalmente a ponte de Sully sobre o Sena para que ela alinhasse o Panteão à coluna da Bastilha e, em um extraordinário feito de engenharia, moveu a coluna da Vitória para centralizá-la na recém-criada Place du Châtelet. Mais bizarra ainda foi sua insistência para que o arquiteto Bailly deslocasse o domo de seu Tribunal do Comércio para que ficasse na linha de visão daqueles que transitavam pelo recém-construído Boulevard de Sébastopol. Uma assimetria local foi criada para produzir um efeito simétrico em uma escala urbana maior.
Quando Haussmann foi demitido, o processo da transformação urbana posto por ele em andamento já tinha assumido tal dimensão que era quase impossível detê-lo. A haussmannização – representada, por exemplo, pela finalização da Avenue de l’Opéra – permaneceu por muitos anos após sua saída do cargo. A continuidade dependia em parte da forte e leal equipe de administradores e tecnocratas talentosos que ele reunira à sua volta – Jean-Charles Alphand para fazer os parques, Eugène Belgrand para projetar as obras hidráulicas e os esgotos, Victor Baltard para refazer Les Halles, arquitetos como Jacques Hittorff para criar obras monumentais e Gabriel Davioud para criar fontes. Todos tinham forte personalidade e aptidões e, após conflitos iniciais (e às vezes prolongados) com Haussmann, passaram a reconhecer que podiam soltar as rédeas de seus talentos com seu apoio, da mesma forma que ele fazia em relação ao apoio do imperador. Os frutos da colaboração desses homens podem ser vistos até hoje. O parque no centro da Square du Temple é de Alphand, a Mairie du Troisième Arrondissement que está em frente a ela é de Hittorff e o mercado coberto que a ladeia é de Baltard. O valor dessas obras foi tão consagrado, a reputação dos arquitetos e administradores tão bem estabelecida, a lógica do desdobramento do plano urbano tão bem entrincheirada e a concepção geral tão bem aceita que Paris, pelos trinta anos subsequentes ou mais, em grande parte se desenvolveu ao longo das linhas definidas por Haussmann.
Figura 30: À esquerda, retrato de Haussmann feito por Petit e, à direita, uma caricatura sua, representando-o como o “Átila da Linha Reta”, munido de um compasso e de um esquadro, dominando a planta de Paris.
A essa altura, já havia sido delineada uma nova escala de ação e pensamento que seria difícil de reverter. Não há nada que represente isso melhor do que a transformação de Les Halles, pois não se tratava apenas da escala dos prédios individuais e do estilo arquitetônico, mas de um “novo conceito de urbanismo comercial”, que culminava na produção e no planejamento de todo um bairro da cidade para uma única função. O resultado foi proporcionar à cidade um tecido totalmente novo. Mas depois, declara Van Zanten, Haussmann parece ter perdido o rumo:
No início da década de 1860, quando os projetos iniciais de 1853 haviam sido concluídos ou já estavam bem encaminhados, algo aconteceu – a escala mudou, o foco se perdeu, a coordenação desandou – à medida que novos projetos eram realizados como inflexões, elaborações e extensões do projeto original [...] cujo sucesso impressionante na primeira década de trabalho fez parecer possível, mas que nesse momento saiu do controle e conduziu à crise financeira de 1867-1869 e, portanto, à saída de Haussmann.[5]
Haussmann pode ter aspirado a um domínio total e o conquistado brevemente, mas foi incapaz de sustentá-lo.
Como deve ser contada a história dessa intensa transformação da Paris do Segundo Império? Uma narrativa simples e direta da mudança histórico-geográfica bastaria. Há, na verdade, vários relatos extraordinários que fazem exatamente isso[6]. Mas como construir essa narrativa sem um entendimento adequado das articulações internas e relações da economia, da política, da sociedade e da cultura urbanas? Como preservar uma visão de Paris como um todo sem deixar de reconhecer, como fez tão claramente o próprio Haussmann, a importância dos detalhes? Dissecar a totalidade em partes isoladas significa correr o risco de perder o rastro de suas complexas inter-relações. Mas também não conseguimos apreender o todo sem compreender os detalhes, sem entender como partes isoladas, fragmentos, funcionam. Tomarei um caminho intermediário e tentarei entender a transformação histórico-geográfica de Paris durante o Segundo Império em termos de uma série de temas entrecruzados e entrelaçados, dos quais nenhum pode ser entendido de forma adequada separadamente. O problema é apresentar as inter-relações sem cair em repetições tediosas. Devo colocar aqui sobre o leitor o fardo de tentar manter os temas em perspectiva como parte de uma totalidade de inter-relações que constituem a força motriz da transformação social em um dado local e tempo.
Figura 31: Segundo esta representação, Paris, adornada como uma mulher belamente vestida e de postura imperiosa, rejeita Haussmann com ingratidão em 1870, apesar de todos os magníficos presentes que ele lhe deu.
Os temas se reúnem sob alguns títulos. Começo pelas relações espaciais, em parte porque considero importante colocar a questão da materialidade dessas relações e suas consequências sociais no primeiro plano da análise, nem que seja pelo simples fato de ela ser tão frequentemente relegada a uma posição secundária. Não pretendo com isso privilegiá-la na análise geral, mas, se algum privilégio estiver ligado à posição em um argumento (o que invariavelmente acontece), por que não concedê-lo à produção das relações espaciais, ainda que só para variar? Os três temas que se seguem – capital financeiro, interesse imobiliário e Estado – estão vinculados como parte da teoria da distribuição do produto social em juros, aluguel e impostos. Fazer considerações sobre distribuição antes de sobre produção pode parecer um pouco estranho, mas, como comentou Marx, há “uma distribuição inicial que determina a produção” que tem grande importância para o entendimento de como o capitalismo funciona. Nesse caso, o posicionamento resulta em larga medida do fato de que as novas relações espaciais (tanto externas quanto internas) foram criadas a partir de uma coalizão entre Estado, capital financeiro e interesse imobiliário, e que cada um teve de passar por um doloroso ajuste ao outro para que as ações necessárias pudessem ocorrer no processo de transformação urbana. O Estado é, evidentemente, mais que apenas uma faceta da distribuição (embora ele não consiga ir muito longe sem impostos), por isso outros aspectos da ação, legitimidade e autoridade estatais serão analisados aqui e também em seções posteriores, quando for apropriado.
A produção e os processos do trabalho serão examinados em seguida. Mudanças nas técnicas, organizações e locais estavam vinculadas a alterações nas relações espaciais (a ascensão de uma nova divisão internacional do trabalho e a reorganização interna de Paris) e também ao crédito, aos aluguéis e às políticas do Estado (ilustrando, assim, como a distribuição e a produção se integram dentro de um contexto urbano). Mas os produtores também necessitam da mão de obra como principal força produtiva. Isso nos leva a nos debruçar sobre o mercado de trabalho parisiense, com suas múltiplas facetas de crescimento populacional, imigração, determinação da taxa salarial, mobilização de um exército industrial de reserva composto por desempregados, níveis de qualificação e atitudes com relação ao trabalho e à organização da mão de obra.
Figura 32: Haussmann era extraordinariamente atento aos detalhes. Aqui, à esquerda, ele combina a nova iluminação a gás com uma vespasienne (mictório masculino de rua). A foto à direita capta a mistura entre o detalhe da rua (a iluminação a gás) e a paixão tanto pela linha reta quanto pela uniformidade no estilo de construção (nesse caso, no Boulevard de Sébastopol). As centenas de fotos de ruas tiradas por Marville nesse período são uma fonte maravilhosa de informações detalhadas.
Figura 33: A paixão de Haussmann pelo alinhamento retilíneo o fez insistir para que Bailly mudasse seu projeto do novo Tribunal do Comércio. A cúpula foi deslocada para a lateral do prédio para criar um efeito simétrico com a torre da Conciergerie quando vista do Boulevard de Sébastopol. A simetria do edifício é sacrificada em prol da simetria da cidade como um todo. A foto é de Marville.
A participação das mulheres na força de trabalho era importante e controversa. Na medida em que ocupavam uma posição de ponte entre o mercado de trabalho e a reprodução da força de trabalho no lar, sua posição na sociedade parisiense como um todo merece consideração explícita. Isso proporciona um contexto sociológico para analisar a reprodução da força de trabalho em seus aspectos de longo prazo. Esse processo ocorreu em grande parte fora de Paris porque, durante as décadas de 1850 e 1860, as províncias alimentaram o mercado de trabalho parisiense com imigrantes. Tal fato nos leva a considerar como as relações de classe foram reproduzidas em Paris e submetidas ao controle social mediante estruturas de consumo e de espetáculo. A partir dessa perspectiva, fica mais fácil refletir sobre as realidades que se reforçam mutuamente e as concepções de comunidade e classe em uma sociedade na qual ambas estavam sofrendo uma transformação radical.
Embora as cidades tenham sido frequentemente consideradas construtos artificiais projetados segundo vontades, necessidades, desejos, capacidades e poderes humanos, é impossível ignorar que sua implementação se dê em um ambiente ecológico e “natural” em que temas de metabolismo e de relações “adequadas” com a natureza estão claramente postos. As epidemias de cólera de 1832 e 1849, por exemplo, deram enorme destaque ao problema de saúde pública e higiene, assuntos seriamente tratados na Paris do Segundo Império. Questões relativas a ciência e sentimento, a retórica e representação, são então abordadas em uma tentativa de descobrir o que o povo sabia, como sabia e de que maneira colocava suas ideias para funcionar social, econômica e politicamente. Estou aqui buscando reconstruir ideologias e estados de consciência, pelo menos até onde estes eram articulados e são recuperáveis para consideração presente. Isso nos coloca em uma posição melhor para entender o que eu chamo, na seção final, de “geopolítica de uma geografia histórica urbana”. Vislumbro, então, uma espiral de temas que, começando pelas relações espaciais, se move através da distribuição (crédito, aluguel, impostos), da produção e dos mercados de trabalho, da reprodução (da força de trabalho, das relações de classe e da comunidade) e da formação da consciência para colocar o espaço em movimento como verdadeira geografia histórica de uma cidade viva.
[1] Priscilla Parkhurst Ferguson, em Paris as Revolution, cit., faz da tradição revolucionária o principal foco do seu relato.
[2] Louis Chevalier, Labouring Classes and Dangerous Classes in Paris during the First Half of the Nineteenth Century (Nova York, H. Fertig, 1973), p. 45.
[3] Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, cit., e Class Struggles in France (Nova York, International Publishers, 1964) [ed. bras.: O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit.; As lutas de classes na França de 1848 a 1850, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2012]; Maurice Agulhon, The Republican Experiment, 1848-1852 (Cambridge/Paris, Cambridge University Press/Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1983); Jean Dautry, 1848 et la IIe République (Paris, Éditions Sociales, 1977).
[4] Há vários relatos biográficos da vida de Haussmann além de suas Mémoires um tanto duvidosas. Os mais completos (e, por isso, mais tediosos) são o de Jean Des Cars, Haussmann: la gloire du Second Empire (Paris, Librairie Académique Perrin, 1978), e o de Michael Carmona, Haussmann, cit. O de Gérard-Noël Lameyre, Haussmann, “préfet de Paris” (Paris, Flammarion, 1958), é o de leitura mais agradável. Para um relato recente e vigoroso em inglês, ver Willet Weeks, The Man Who Made Paris Paris, cit.
[5] David Van Zanten, Building Paris: Architectural Institutions and the Transformation of the French Capital, 1830-1870 (Cambridge, Cambridge University Press, 1994), p. 199-23.
[6] Há vários relatos excelentes da transformação da Paris do Segundo Império, como os de Louis Girard, em La politique des travaux publics sous le Second Empire (Paris, Armand Colin, 1952) e Nouvelle histoire de Paris: La deuxième république et le Second Empire (Paris, Hachette, 1981); o de Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit.; em inglês, os relatos de David Pinkney, “Migrations to Paris during the Second Empire”, Journal of Modern History, Chicago, University of Chicago Press, n. 25, 1953, p. 1-12, e Napoleon III and the Rebuilding of Paris (Princeton, Princeton University Press, 1958). Em Paris: histoire d’une ville, cit., Bernard Marchand, de modo muito perceptivo, põe as obras de Haussmann em um panorama de mais longo prazo.
* O pai Goriot, cit. (N. E.)
** O capital, Livro III, cit. (N. E.)