Além dos trabalhadores fabris, dos trabalhadores manufatureiros e dos artesãos, que ele concentra espacialmente em grandes massas e comanda diretamente, o capital movimenta, por fios invisíveis, um outro exército: o dos trabalhadores domiciliares, espalhados pelas grandes cidades e pelo campo.
Karl Marx*
A força e o poder coletivos dos trabalhadores provaram-se indispensáveis para a derrubada da Monarquia de Julho, e sua condição deteriorada acabou gerando inúmeras propostas e movimentos para a reforma social e industrial durante a década de 1840. Por isso, em 1848 a questão do trabalho estava no cerne das preocupações dos trabalhadores parisienses. Entretanto, o papel exato exercido pelos trabalhadores qualificados de tradição artesã – classe superior que compreendia cerca de 40% da força de trabalho, segundo os escritos de Claude Anthime Corbon em meados do Império – não é fácil de ser determinado[1]. De acordo com a narrativa mais comum, esses trabalhadores confiavam em suas habilidades, mas se sentiam desmoralizados pela insegurança crônica; estavam convencidos da nobreza do trabalho como um ideal, mas ficavam constantemente angustiados ao vivenciá-lo. E, por acreditar que o trabalho era a fonte de toda riqueza, buscavam um novo tipo de ordem industrial que abrandasse a insegurança do trabalho, aliviasse sua relativa penúria e protelasse as tendências à desqualificação e à crescente exploração. Rancière, no entanto, lança dúvidas sobre o poder e o caráter dessa tradição artesã[2]. As evidências que ele apresenta, em grande parte baseadas nos escritos de poetas e autores trabalhadores que contribuíam para o jornal L’Atelier, certamente apontam para os perigos de se romantizar e homogeneizar os trabalhadores de ofício como portadores de uma consciência revolucionária claramente proletária. Os trabalhadores cujos escritos e correspondência Rancière examina em detalhes buscavam alívio do trabalho e tinham poucas ilusões sobre a nobreza de suas extenuantes atividades. Eles buscavam o respeito dos empregadores, não a revolução. Queriam ser tratados como iguais, como seres humanos, e não como instrumentos contratados. Queriam soluções imediatas e ajuda pessoal para seus problemas individuais. Mostravam pouco interesse pela ideia blanquista de uma ditadura do proletariado, e a maioria encarava o movimento saint-simoniano como uma fonte de apoio financeiro e emprego, não como uma fonte abundante de ideias para a reforma social.
Figura 54: O trabalhador, de Daumier, capta tanto a autoconfiança quanto a posição subserviente dos trabalhadores parisienses, que, para o empregador Poulot, por exemplo, eram de opinião demasiado elevada sobre si mesmos.
Mas, enquanto o relato de Rancière faz uma correção ao romantismo revolucionário, às vezes forçado pelos historiadores do trabalho de inspiração marxista, não fica totalmente claro se o seu relato capta os sentimentos desses trabalhadores, que de fato lutaram nas barricadas, participaram das deliberações da Comissão de Luxemburgo e apoiaram de maneira ativa os esforços de Cabet, Considérant, Proudhon e dos comunistas e socialistas da época. Certamente, a maioria dos trabalhadores parece ter buscado alguma forma de associação, autogestão ou mutualismo, em vez do controle centralizado do Estado. Mas a recalcitrância da burguesia em geral, e dos empregadores em particular, com frequência os obrigava (como fizeram Cabet, Considérant, Leroux e outros) a tomar posições nas quais eles não tinham outra escolha a não ser assumir uma postura mais revolucionária. Embora houvesse, evidentemente, certa confusão e indeterminação com respeito tanto à agenda quanto aos meios (em particular o recurso à violência), não há dúvida de que a maior parte dos trabalhadores de ofício visava à criação de uma república social em 1848 que apoiasse seus esforços para reorganizar o trabalho e reformar as relações sociais de produção, montando o palco para seu próprio avanço social nas décadas seguintes.
A evolução da indústria parisiense durante o Segundo Império assumiu um rumo muito especial. Paris, em meados do século, era de longe o centro de produção mais importante e diversificado da nação. E, apesar da imagem de grande centro de consumo ostensivo, ela na verdade ainda era uma cidade de classe trabalhadora, extremamente dependente do crescimento da produção. Em 1866, por exemplo, 58% de seus 18 milhões de pessoas dependiam da indústria, enquanto apenas 13% dependiam do comércio[3]. No entanto, havia algumas características muito especiais de sua estrutura e organização industriais (Tabelas 4, 5 e 6). Em 1847, mais da metade das empresas de manufatura tinha menos de dois empregados, apenas 11% delas empregavam mais do que 10, e não mais de 425 se encaixavam no título de “grandes empresas” (com mais de 500 trabalhadores). Em muitos casos era difícil distinguir entre proprietários e trabalhadores, e Scott mostra como a investigação de 1847-1848 deliberadamente confundiu as categorias por razões políticas[4]. De todo modo, como os trabalhadores de ofício haviam desenvolvido formas de comando hierárquicas, havia pouco espaço nas pequenas empresas para fortes antagonismos de classe (condição que prevaleceu durante todo o Segundo Império e levou uma ala inteira do movimento dos trabalhadores, em particular aqueles influenciados por Proudhon, a desaprovar greves, investir na associação e restringir sua oposição aos financistas, monopolistas, proprietários de terras e ao Estado autoritário, em vez de à propriedade privada e à posse de capital). Era também muito difícil distinguir o comércio da manufatura, pois o ateliê nos fundos estava com frequência unido à loja da rua.
Essas condições variavam em certa medida de uma indústria para outra, assim como entre diferentes localizações. Com exceção do setor de alimentos e provisões (no qual a distinção entre indústria e comércio era particularmente difícil), eram dominantes os comércios têxteis e de vestuário, juntamente com os de móveis e metalurgia, que eram permeados por toda sorte de “articles de Paris”, pelos quais a cidade havia se tornado, e continuaria sendo, merecidamente famosa. Muitos dos setores clássicos para o desenvolvimento industrial capitalista estavam ausentes, portanto, na capital; e, em 1847, boa parte do setor têxtil, que já fora importante, havia se dispersado pelas províncias, deixando em Paris a indústria de confecção. Claramente, a maioria da indústria parisiense estava orientada para servir ao seu próprio mercado. Apenas nos setores de metalurgia e engenharia se podia identificar algum traço de forma “moderna” de estrutura industrial capitalista.
Esse vasto empreendimento econômico não poderia ser facilmente transformado, mas passou por uma evolução importante em termos de variedade, tecnologia, organização e localização industriais. Saiu da depressão de 1848-1850 com um surpreendente vigor que primeiro atingiu a indústria leve e, após 1853, espalhou-se para os setores da construção e para a engenharia e a metalurgia pesadas, assim como para o ramo do vestuário. Durante a década de 1860 o ritmo de crescimento diminuiu, em particular nas indústrias de grande porte, e tornou-se mais seletivo com relação ao setor e à localização.
As Enquêtes de 1847-1848, 1860 e 1872, embora falhas, permitem a reconstrução do caminho geral da evolução industrial[5]. A Enquête de 1860 lista 101 mil empresas que, juntas, empregavam 416 mil trabalhadores – um aumento de 11% em relação a 1847; e a maior parte do ganho líquido se deve à anexação dos subúrbios, pois dados comparáveis da velha Paris indicam uma perda de 19 mil trabalhadores. O número de empresas aumentou 30%, o que indica uma surpreendente expansão dos pequenos negócios, mas a quantidade das que empregavam menos de dois trabalhadores aumentou para 62% (de 50% em 1847-1848), e o número daquelas que empregavam mais de dez trabalhadores caiu de 11% para 7%. Visível em muitos setores, essa crescente fragmentação era em especial marcante na velha Paris. No setor de vestuário, por exemplo, o número de empresas aumentou 10%, enquanto o de trabalhadores empregados caiu 20%. Os dados para o setor químico foram ainda mais impressionantes – havia 45% de empresas a mais e 5% de trabalhadores a menos. O ramo da fabricação de máquinas, o de maior escala em 1847-1848, que tinha uma média de 63 funcionários por empresa, fragmentou-se para uma média de 24 trabalhadores em 1860.
A interpretação exata a ser inferida disso é controversa. Tudo aponta para o crescimento vigoroso de um grande número de empresas muito pequenas e para o aumento na fragmentação da estrutura industrial, processo que continuou mesmo depois do fim do Império. Além disso, o aumento e a fragmentação das pequenas empresas podem ser vistos tanto em locais próximos ao centro quanto nos periféricos. O forte crescimento absoluto das grandes empresas entre 1847-1848 e 1860 (o número permaneceu praticamente inalterado de 1860 a 1872) foi acompanhado por sua suburbanização. Contudo, mesmo nesse caso, o movimento não foi uniforme. As gráficas de grande porte mantiveram sua localização central na Rive Gauche, enquanto a metalurgia se deslocou apenas para as periferias mais internas ao norte e a leste. A tendência das operações químicas de grande porte, no entanto, foi se transferir para muito mais longe.
Figura 56: A localização das empresas de grande porte de produtos químicos, metalúrgicos e gráficos, de acordo com as Enquêtes de 1848, 1859 e 1872 (segundo Jacques Retel, Éléments pour une histoire du peuple de Paris au 19e siècle, cit.).
Figura 55: Número de grandes empreendimentos em diferentes setores de Paris, de acordo com os levantamentos de 1836, 1848, 1859 e 1872 (segundo Maurice Daumas e Jacques Payen, orgs., Évolution de la géographie industrielle de Paris et sa proche banlieue au XIXe siècle, cit.).
O caso do setor químico é interessante, pois capta grande parte do complexo movimento em ação na indústria parisiense durante esse período. Por um lado, empreendimentos de grande porte e em geral poluentes ou foram forçados a se deslocar, ou voluntariamente buscaram localizações mais periféricas em pontos favoráveis da rede de transportes, onde a terra era relativamente barata. Por outro lado, a inovação de produtos significava a proliferação de pequenas empresas que fabricavam itens especializados como porcelana, fármacos, bijuterias e flores artificiais, enquanto outras indústrias, principalmente na categoria de “articles de Paris”, geravam demandas especializadas para pequenas quantidades de tintas, corantes e produtos afins, que poderiam ser mais bem atendidas pela produção em pequena escala. Em muitos setores havia um movimento duplo similar que assistia ao crescimento de algumas grandes empresas em localizações suburbanas e ao aumento da fragmentação e especialização da atividade econômica, em particular próxima do centro.
Figura 57: Grandes fábricas, como essa indústria química, começaram a surgir em localizações suburbanas como La Villette na década de 1860.
Esse desenvolvimento altamente especializado teve muito a ver com a manutenção das habilidades superiores de um pequeno grupo de trabalhadores “superiores”. A fragmentação e o recurso ao trabalho domiciliar pago por peça podem também ser vistos como concessões à forte predileção dos trabalhadores de ofício pela preservação de sua autonomia, sua independência e seu controle nominal sobre seu processo de trabalho. Entretanto, houve uma importante transformação das relações sociais que as estatísticas brutas ocultam. O que de fato aconteceu, argumenta Gaillard de maneira muito convincente, é que houve uma divisão técnica cada vez mais sofisticada do trabalho especializado, na qual os produtos de indivíduos, pequenas empresas, trabalhadores domiciliares e aqueles remunerados por peça foram integrados a um sistema de produção extremamente eficiente. Muitas pequenas empresas não eram nada além de unidades de subcontratação para organizações maiores. Nesse sentido, elas funcionavam praticamente como sistemas de trabalho contratado submetidos aos produtores ou comerciantes capitalistas que as controlavam a distância[6]. Os capitalistas economizavam em despesas gerais, como energia e instalações, quando o trabalho era realizado por peça em casa. Além disso, ao manter essas unidades em perpétua concorrência por trabalho, os empregadores podiam forçar a redução dos custos da mão de obra e maximizar seus próprios lucros. Os trabalhadores, embora independentes em tese, viam-se compelidos à subserviência e a padrões de autoexploração que podiam ser tão cruéis e degradantes quanto aqueles encontrados no sistema fabril.
Nesse contexto, um sistema muito odiado e opressivo composto por capatazes, supervisores, subcontratantes (proibidos na legislação social de 1848 e reintegrados após 1852) e outros intermediários pôde ser firmemente implantado. Então, embora os artesãos continuassem a ser importantes, sua posição sofreu uma notável degradação. A extrema divisão da mão de obra colaborou para que algumas esferas atingissem qualidade e perfeição técnica inigualáveis, mas isso não levou a salários mais elevados nem a maior liberdade para o trabalhador. Ao contrário, significou a gradativa subordinação dos artesãos e proprietários até então independentes à dominação formal de uma organização comercial e industrial rigidamente controlada. Em consequência disso, até Poulot (que passou grande parte do seu tempo criticando os hábitos indolentes e a recalcitrância de seus trabalhadores diante da autoridade) acabou admitindo:
Paris é a cidade onde as pessoas trabalham mais do que em qualquer outra cidade do mundo [...]. Quando os trabalhadores vêm das províncias para Paris, eles nem sempre permanecem aqui, porque é preciso muita esfolação para ganhar a vida [...]. Em Paris há alguns negócios que funcionam com trabalho por encomenda, nos quais após vinte anos o trabalhador está incapacitado e desgastado, se ainda estiver vivo.[7]
Entretanto, por trás dessa evolução geral existe uma variedade de forças que merece um exame mais profundo. A redução das barreiras espaciais abriu o extenso e valioso mercado parisiense à competição provincial e estrangeira (processo ainda mais encorajado após a mudança para o mercado livre, em 1860). Mas isso também significou que a indústria parisiense passou a ter acesso a matérias-primas e suprimentos alimentares geograficamente mais dispersos para abastecer os trabalhadores e satisfazer sua demanda por produtos intermediários a custos mais baixos. Dada a sólida base que a indústria possuía no mercado parisiense, isso significava que Paris poderia com a mesma facilidade tanto competir nas províncias e no exterior quanto sofrer competição externa.
Figura 58: A fabricação de tapetes em Les Gobelins era uma típica indústria artesanal de alta qualidade que sobreviveu durante o Segundo Império e se beneficiou da melhoria no acesso aos mercados estrangeiros (por Gustave Doré).
A rigor, a cidade expandiu sua participação no crescente comércio de exportações francês de cerca de 11% em 1848 para 16% no início da década de 1860[8]. Como era de se esperar, os produtos de luxo em que Paris se especializou estavam bem representados nessa vasta onda de exportações. Contudo, mais da metade das locomotivas e dos equipamentos ferroviários produzidos em Paris somou-se ao capital francês no exterior, e até parte da indústria alimentícia (como a de açúcar refinado) conseguiu encontrar espaço nos mercados provinciais. O interesse industrial parisiense, ao contrário de algumas de suas contrapartes provinciais, não era de modo algum contrário ao livre-comércio, pois a manufatura da cidade era evidentemente capaz de dominar os mercados provinciais e internacionais em algumas linhas de produção.
Mas sua posição vantajosa em relação a essa nova divisão internacional do trabalho trazia também algumas desvantagens. A indústria parisiense estava cada vez mais exposta à imprevisibilidade dos mercados estrangeiros. É claro que a expansão geral do comércio mundial no período foi muito vantajosa, mas os industrialistas logo tiveram de se adaptar aos caprichos do gosto estrangeiro, à imposição repentina de taxas alfandegárias, à ascensão da manufatura estrangeira (que tinha o mau hábito de copiar os projetos franceses e produzi-los a custos mais baixos, embora com qualidade inferior) e às interrupções causadas por guerras (a Guerra Civil Norte-Americana, particularmente, teve efeitos terríveis, pois os Estados Unidos eram um importante mercado de exportação). A indústria parisiense também precisava se adaptar às peculiares exigências do fluxo do comércio estrangeiro. O crescimento do comércio norte-americano, por exemplo, aumentou os problemas de desemprego sazonal. A chegada de algodão bruto dos Estados Unidos no outono colocava dinheiro nas mãos dos compradores norte-americanos, que o gastavam o mais rápido possível para garantir seus produtos de volta aos Estados Unidos antes da primavera. Assim, três meses de intensa atividade podiam ser seguidos por nove meses de “estação morta”. A Enquête de 1860 mostrou que mais de um terço das empresas parisienses tinha uma estação morta, porém mais de dois terços das que produziam “articles de Paris” e mais da metade do setor de móveis, vestuário e joias passavam por uma estação morta que durava entre quatro e seis meses[9]. Abordarei em breve os problemas que isso criou para a organização da produção e dos mercados de trabalho.
Os concorrentes estrangeiros e provinciais não só desafiavam a indústria parisiense nos mercados interno e externo, mas também cobiçavam o enorme e crescente mercado de bens de consumo e intermediários que Paris oferecia. A competição externa tornou-se cada vez mais feroz na década de 1860. De início, o desafio vinha dos bens produzidos em massa, com os quais os produtores provinciais e estrangeiros, com mão de obra mais barata e acesso mais fácil às matérias-primas, abriram uma vantagem de custo marcante, cuja queda nas taxas de frete tornava ainda mais evidente. Assim, a produção de sapatos se dispersou pelas províncias, foi para Pas-de-Calais, l’Oise e locais similares. Mas os produtos de luxo podiam muito facilmente acompanhar a produção em massa aonde quer que ela fosse. O processo exato por meio do qual isso ocorria pode ser mais bem ilustrado mediante o exame das novas relações que emergiam em Paris entre a indústria e o comércio.
O poder relativo dos interesses industriais, financeiros e comerciais mudou de forma acentuada durante o Segundo Império. Embora algumas grandes empresas tenham permanecido imunes, boa parte da indústria de pequeno porte estava cada vez mais sujeita à disciplina externa imposta pelos financistas e comerciantes. Estes últimos se tornaram, na verdade, os agentes que garantiram a transformação do trabalho concreto em função de exigências abstratas.
A ascensão de um novo sistema de crédito favoreceu de uma série de maneiras diferentes a criação de empresas de produção e serviço em larga escala. O financiamento direto da produção fabril que usava formas modernas de tecnologia e organização industrial tornou-se factível. Nesse aspecto, os Péreires foram pioneiros, mas logo acabaram sendo seguidos por toda uma gama de instituições financeiras. Contudo, os efeitos indiretos foram igualmente profundos. A mudança de escala das construções e obras públicas (dentro e fora do país) e a formação de um mercado maciço para muitos produtos (assinalado pela ascensão da loja de departamentos, ela própria filha do sistema de crédito) favoreceram a indústria de grande porte. A absorção das pequenas poupanças pelas novas estruturas de crédito tendeu também a secar as fontes pequenas, locais e familiares de crédito para os negócios menores, e nada surgiu para substituí-las. O efeito líquido disso foi a redistribuição da disponibilidade do crédito, colocando-o cada vez mais fora do alcance direto dos pequenos produtores e dos artesãos.
Por isso, o novo sistema de crédito não foi bem recebido pela maioria dos industrialistas, que encarava os financistas – e com toda razão, no caso dos Péreires – como instrumentos de controle e fusão. A relação de classe entre os capitalistas produtivos e os monetários era tipicamente de desconfiança. Na verdade, é provável que a queda dos Péreires se deva tanto ao poder dos interesses comerciais e industriais no interior do Banco da França quanto à tão alardeada rivalidade pessoal de Rothschild. A longa polêmica contra o excessivo poder monopolista dos financistas perto do fim do Segundo Império ganhou a enfática aprovação dos artesãos e dos pequenos negociantes e em parte explica a crescente oposição dos burgueses às políticas econômicas do Império[10].
No entanto, os pequenos produtores e os artesãos, que quase sempre enfrentavam longas estações mortas e todo tipo de prazos de acerto de contas, necessitavam desesperadamente de crédito de curto prazo. O Banco da França proporcionava facilidades de desconto sobre o papel comercial, mas só servia a alguns poucos clientes[11]. Apenas quando esse período estava perto do fim é que surgiram outras instituições financeiras para começar a preencher essa lacuna. O que havia em seu lugar era um sistema de financiamento informal e paralelo baseado em vínculos de parentesco ou em créditos de pequeno porte oferecidos entre compradores e vendedores – sistema disseminado até mesmo nos níveis mais inferiores da classe trabalhadora, que não poderiam ter sobrevivido se não tivessem feito compras a tempo. E foi a partir desse sistema que uma classe comerciante recentemente consolidada passou a exercer um grau cada vez maior de controle sobre a organização e o crescimento da indústria parisiense.
É claro que o comércio sempre teve um lugar especial na economia parisiense. Mas, na metade do século, as diferenças entre fabricação e comercialização eram tão confusas que a expressão de um interesse comercial específico se aplicava a vários tipos de negociantes especializados (em vinho, por exemplo). O comércio era, em grande parte, o servidor da indústria. No entanto, o Segundo Império foi marcado a tal ponto pela crescente separação entre produção e comercialização e pela inversão gradual das relações de poder que a maioria da indústria parisiense estava cada vez mais obrigada a se comportar segundo o que o comércio ditava[12]. A transição foi, em grande medida, mais gradual do que traumática. Os proprietários simplesmente preferiam manter a loja e abrir mão da oficina. No entanto, não deixaram de manter uma relação direta com os produtores, tornando-se o centro de uma rede de subcontratação, produção por encomenda ou por peça e trabalho domiciliar. Assim, uma classe comerciante cada vez mais autônoma tornou-se o agente para a subordinação formal do trabalho artesanal e de ofício sob o domínio do capital comercial. “Às vezes”, escreve Alain Cottereau, “várias centenas de pseudotrabalhadores de ofício e algumas dúzias de pequenas oficinas eram nada mais que as antenas terminais de grandes interesses do vestuário, cada um com milhares de empregados, geridos por comerciantes, industrialistas ou lojas de departamentos.” E o pior era que esses novos “módulos de organização capitalista [...] estavam constantemente redistribuindo o trabalho, reorganizando suas operações, para colocar o máximo possível delas nas mãos de uma força de trabalho sem nenhuma habilidade reconhecida; trabalhadores braçais, mulheres, crianças e idosos”[13].
O grau notável de fragmentação das tarefas e especialização na indústria parisiense proporcionou-lhe grande parte do seu poder competitivo e da sua reputação pela boa qualidade tanto no mercado local quanto no internacional. E o Segundo Império viu crescentes aperfeiçoamentos nessa forma de organização. A fabricação de flores artificiais, que já tendia a ser especializada, pois tipos distintos de flores eram fabricados em diferentes oficinas em 1848, estava, no fim do Império, organizada em um sistema de oficinas que produziam partes de determinadas flores. Maxime Du Camp queixou-se da “infinita divisão de trabalho” que necessitava da coordenação de nove habilidades diferentes para produzir uma simples faca[14]. O fato de tal sistema conseguir funcionar devia-se inteiramente às eficientes habilidades de organização dos empresários comerciantes que forneciam matérias-primas, organizavam a divisão técnica do trabalho entre numerosas oficinas dispersas ou mediante o trabalho por peça em domicílio, supervisionavam a qualidade do produto e o ritmo dos fluxos e introduziam o produto finalmente concluído em mercados bem definidos.
Mas os próprios agentes que reorganizaram a indústria parisiense para impedir a competição estrangeira também trouxeram a competição estrangeira e provincial para o coração do mercado parisiense. Sob uma pressão competitiva para maximizar os lucros, os comerciantes de Paris não eram de modo algum avessos a buscar todo tipo de fonte de suprimento nas províncias e até mesmo fora do país, estendendo suas redes de domínio e de trabalho domiciliar bem longe da capital, onde encontrassem custos (particularmente de mão de obra) mais baratos. Assim, eles tanto estimulavam a competição externa quanto se organizavam para repeli-la, e em alguns casos chegavam a organizar de maneira ativa a dispersão geográfica de algumas fases de produção pelas províncias. Os comerciantes estrangeiros e provinciais, que antes eram uma presença itinerante ou sazonal na cidade, tendiam a se estabelecer permanentemente e, por meio de contatos internacionais e provinciais, organizavam um fluxo cada vez mais competitivo de produtos para o mercado parisiense. Ainda existem exemplos, como no comércio de chapéus e luvas, da separação entre a produção, que rumou para as províncias, e o desenho e a comercialização, que permaneceram na capital[15].
Figura 59: Já em 1843 Daumier escarnecia da organização das novas lojas de tecidos. O atendente explica o detalhado caminho que o cliente deve seguir para se orientar pela loja e chegar ao setor que vende toucas de algodão.
Houve outros desenvolvimentos no comércio que tiveram um forte impacto sobre vários aspectos da indústria parisiense. A ascensão das grandes lojas de departamentos significou a formação de mercados maciços de roupas prêt-à-porter. A demanda se deslocou para qualquer coisa que pudesse ser produzida em massa de forma lucrativa, independentemente do seu uso, valor ou qualidades. A comercialização em massa não significava necessariamente produção fabril em massa, mas implicava a organização da produção de pequenas oficinas ao longo de diferentes linhas (a subcontratação era a dominante). As queixas dos trabalhadores a respeito da preocupação cada vez menor com a qualidade do produto e com a desqualificação do trabalho na tradição artesã tiveram muito a ver com o crescimento espetacular desse tipo de comércio, quando as grandes lojas de departamentos como Bon Marché (fundada em 1852 e com um movimento de 7 milhões de francos em 1869), Louvre (1855) e Printemps (1865) se tornaram peças centrais do comércio parisiense[16].
Na década de 1860, um sistema de crédito hierarquicamente estruturado estava se tornando cada vez mais o poderoso centro nervoso para o desenvolvimento industrial, mas ainda não havia se estendido para as pequenas empresas. Os comerciantes, bem servidos quando necessário tanto pelas novas quanto pelas velhas estruturas de crédito, intervieram nesse aspecto e se tornaram a força organizadora de muitas indústrias pequenas. A crescente autonomia dessa classe de comerciantes durante o Segundo Império foi marcada pela formação de diferentes bairros comerciais em torno da Chaussée d’Antin no centro do noroeste e, em menor grau, em torno do Mail et Sentier e no centro do nordeste (a Rue de Paradis, tanto naquela época quanto agora, era o centro próspero para artigos de vidro e porcelana). Foi a partir daí que a produção local, provincial e internacional para o mercado parisiense e para exportação ficou cada vez mais organizada. Esses bairros também ofereciam tipos especiais de oportunidades de emprego administrativo, que deixaram uma marca na divisão do espaço social na cidade (ver Figura 53). Tradições especiais surgiram nesses bairros com respeito a política, educação, religião e afins, o que levou os comerciantes a participar muito pouco da formação ou repressão da Comuna.
O aumento da autonomia da classe comerciante e a ascensão do novo poder financeiro teceram uma complexa trama de controle em torno de grande parte da indústria parisiense, enquanto a preocupação dos comerciantes com o lucro e a amplitude geográfica de produção os conduziu à reestruturação dessa indústria para satisfazer as condições de uma nova divisão internacional do trabalho. Os pequenos produtores, antes trabalhadores de ofício e artesãos orgulhosos e independentes, foram cada vez mais aprisionados dentro de uma rede de dívidas e obrigações, de encomendas específicas e suprimentos controlados; obrigados a ocupar a posição de mão de obra técnica dentro de um sistema de produção geral cuja evolução parecia escapar do seu controle. Foi dentro de tal sistema que os processos de desqualificação e dominação, que já haviam se evidenciado antes de 1848, puderam ganhar ainda mais espaço no sistema de produção. Não há dúvida de que os trabalhadores identificaram a natureza do problema. A Comissão dos Trabalhadores de 1867 debateu extensamente as adversidades e colocou a questão do crédito social e da liberdade do trabalho na linha de frente da sua agenda social. Mas a essa altura já fazia quase vinte anos que a associação do capital havia se imposto sobre a visão nobre da associação dos trabalhadores.
Haussmann, como já vimos, não tinha nenhum escrúpulo quando o assunto era expulsar indústrias nocivas ou indesejáveis (como as de curtume e de alguns produtos químicos) do centro da cidade mediante a remoção direta ou o emprego de leis de insalubridade[17]. Ele também buscou todos os meios indiretos (impostos, anexação dos subúrbios, direcionamento dos serviços da cidade) para empurrar a maioria das indústrias, exceto as de mercadorias de luxo e “articles de Paris”, para fora do centro da cidade. Suas políticas anti-industriais derivaram em parte do desejo de criar uma “capital imperial” à altura de toda a civilização ocidental, mas tão importante quanto isso era a sua preocupação em livrar Paris do poder político da classe trabalhadora, acabando com suas oportunidades de emprego. Nesse aspecto, ele foi apenas parcialmente bem-sucedido[18]. Embora a desindustrialização do próprio centro não fosse ainda um fato consumado em 1870, as melhorias nas comunicações e nas infraestruturas urbanas (gás, água, esgotos etc.) tornavam Paris um local muito atrativo. Haussmann em certa medida desfazia com uma das mãos o que procurava fazer com a outra. Mas seu fracasso em atender às necessidades da indústria e sua visível preferência pelo desenvolvimento residencial (por exemplo, no projeto da terceira rede de rodovias) lhe renderam uma crescente oposição dos interesses industriais, que, de todo modo, foi suficientemente poderosa para frustrar alguns dos planos de relocação do imperador. E, à medida que a concorrência provincial e internacional ganhava força na década de 1860, a campanha de Haussmann contra a indústria se intensificava e as dificuldades desse setor recaíam sobre o prefeito, provocando uma vigorosa oposição ao Império.
O aluguel era um custo importante com o qual a indústria parisiense tinha de arcar. Os aluguéis, que rapidamente aumentavam nos novos bairros financeiros e comerciais (Bourse, Chaussée d’Antin) e nos bairros residenciais refinados próximos às regiões oeste e noroeste, obrigaram a saída das indústrias existentes ou atuaram (na periferia oeste, por exemplo) como uma barreira à implantação de novas. Quando não forçavam sua saída para os subúrbios, os aluguéis em ascensão no centro as obrigavam a se apinhar ou intensificar o uso do espaço em locais especialmente vantajosos. A metalurgia, por exemplo, dispersou-se por uma distância relativamente curta na direção noroeste, onde encontrou bons recursos de comunicação e acesso a uma oferta superior de mão de obra (ver Figura 56). As áreas de aluguel mais caro próximas ao centro também eram muito atrativas (Haussmann as comparava aos vinhedos no monte Vesúvio que, quanto mais próximos estão do topo, mais férteis se tornam). Isso era particularmente verdadeiro no caso daquelas indústrias para as quais o acesso imediato ao mercado dos produtos de luxo (ou às indústrias que supriam esses mercados) era de vital importância. Os atrativos de uma localização central ficavam ainda maiores pelo fato de o comércio estar concentrado nas grandes lojas de departamentos, nos hotéis que serviam ao próspero negócio do turismo e no mercado central de Les Halles, que atraía todo tipo de pessoas.
Figura 60: Em meados da década de 1860, Marville fotografou as fábricas de curtume ao longo do extremamente poluído rio Bièvre. Estas eram os tipos de indústrias poluentes que Haussmann procurava expulsar das áreas centrais da cidade.
As obras públicas e os investimentos urbanos criavam um mercado adicional cuja demanda parecia infinita (inclusive aquela de móveis e decorações de luxo), em grande parte concentrado perto do centro da cidade. Muitos setores tinham fortes incentivos para permanecer próximos às localizações centrais – os de cosméticos, tintas, fármacos, metalurgia (particularmente do tipo ornamental), marcenaria e carpintaria, assim como os fabricantes de roupas da moda e “articles de Paris”. Mas os altos aluguéis tinham de ser pagos. E, nesse caso, a adaptação que viu crescer o trabalho domiciliar por encomenda fez muito sentido, porque assim os próprios trabalhadores arcavam com o alto valor do aluguel (trabalhando em casa em bairros superpovoados) ou com o custo da inacessibilidade ao centro. Os comerciantes economizavam nas despesas com aluguel enquanto garantiam que a produção seria organizada em uma configuração que fluísse harmoniosamente até os pontos de alta demanda. Os ateliês independentes que permaneciam se enredaram, por fim, em um aperto de custos tão grande que, quando isso não os jogou nas mãos de comerciantes, os impeliu a reorganizar sua divisão de trabalho interna e, assim, reduzir os custos de mão de obra. O encarecimento dos aluguéis no centro da cidade cobrou um sério tributo da indústria e dos trabalhadores e, assim, desempenhou um papel fundamental na reestruturação industrial de Paris durante o Segundo Império.
Há um mito, que os historiadores só agora estão começando a desmascarar, de que a indústria de grande porte expulsa a indústria de pequeno porte devido à eficiência superior alcançada por meio das economias de escala[19]. A persistência da indústria de pequeno porte em Paris durante o Segundo Império parece refutar o mito, pois não há dúvida de que as pequenas oficinas sobreviveram justamente devido à sua produtividade e eficiência superiores. Mas é perigoso levar muito longe essa refutação. Os setores em que economias de escala podiam de fato ser constatadas (como os têxteis e, mais tarde, os de algumas peças do vestuário) se dispersaram pelas províncias, e os de engenharia de grande porte ou se estabeleceram nos subúrbios ou foram para outros locais. E a indústria de pequeno porte que restou, e exibia um crescimento muito vigoroso, alcançou economias de escala não mediante a fusão de empresas, mas mediante a organização de vínculos interindustriais e a concentração das inúmeras tarefas especializadas. Não era o tamanho da empresa que importava, mas a aglomeração geográfica de inúmeros produtores sob o poder de organização dos comerciantes e de outros empresários. E, de fato, foi a soma das economias de escala alcançada por esse tipo de indústria na região de Paris que constituiu a base para sua vantagem competitiva na nova divisão internacional do trabalho.
Figura 61: O uso coletivo dos motores a vapor era característico da indústria parisiense no período. Este desenho, datado de 1872, ilustra como o sistema – que funcionava mediante um motor a vapor no porão, distribuindo energia para vários andares acima – permitia que o prédio fosse ocupado por diferentes negócios.
Há outro mito, mais difícil de desfazer, de que a produção da pequena indústria e aquela dos artesãos são menos inovadoras quando se trata de novos produtos ou processos de trabalho. Na época, Claude-Anthime Corbon negou isso enfaticamente, detectando nos trabalhadores e artesãos “superiores” um interesse muito vivo nas novas linhas de produto, novas técnicas e aplicações da ciência, embora não tenha deixado de comentar, mais tarde, que eles tendiam a admirar a aplicação de tudo o que era novo em qualquer lugar, exceto em seu próprio negócio[20]. Mas o sucesso que viria com a inovação dos produtos (em particular no setor de luxo) era significativo demais para os pequenos proprietários deixarem passar as oportunidades. E novas tecnologias rapidamente proliferaram. Até mesmo os motores a vapor, certamente de potência fraca, foram organizados em padrões de uso coletivo entre os ateliês. E a indústria de vestuário adotou a máquina de costura, os trabalhos em couro passaram a ser feitos com facas de corte mecânicas, os marceneiros começaram a usar serras mecânicas e os fabricantes dos “articles de Paris” ficaram totalmente obcecados pela pressa em inovar quando se tratava de tingimentos, colorações, preparações especiais, bijuterias, entre outros. Os monumentos e as construções também testemunharam importantes inovações (como a instalação de elevadores mecânicos).
O quadro que emerge é de vigorosa inovação e rápida adoção de novos processos de trabalho. As objeções dos trabalhadores de ofício não eram às novas técnicas, mas, a julgar pela Comissão dos Trabalhadores de 1867 e pelos escritos de trabalhadores como Eugène Varlin, à maneira que elas lhes eram impostas como parte do processo de padronização do produto, desqualificação e redução salarial[21]. A crescente integração da divisão especializada e técnica do trabalho sob o comando de comerciantes e empresários conferiu qualidades especiais à transformação do processo de trabalho. O evidente vigor tecnológico da indústria de pequeno porte em Paris não era necessariamente o mesmo que os trabalhadores apreciavam. E com razão: Poulot (industrialista reconhecido por sempre buscar a inovação) admitia que os três objetivos fundamentais que tinha em mente ao implementar inovações eram aumentar a precisão, acelerar a produção e “reduzir o livre-arbítrio dos trabalhadores”[22].
Nesse aspecto, as memórias de Xavier-Edouard Lejeune são instrutivas[23]. Criado no campo por seus avós, ele se uniu à sua mãe solteira (aparentemente vítima da sedução do filho de um burguês de certo prestígio) em Paris, em 1855, aos dez anos. Encontrou-a como a empregadora de seis a oito mulheres na produção de casacos femininos de alta qualidade e dona de conexões especiais com alguns pontos de varejo. Aquele ano foi o ponto alto da explosão nos negócios de vestuário, quando se consolidaram o estímulo dado pelos gastos do Estado e a ascensão da moda na corte imperial e em toda Paris. Sua mãe vivia em acomodações relativamente espaçosas e centrais, tinha uma criada e recebia familiares e amigos. Seis anos mais tarde, ela empregava apenas uma pessoa e havia sido obrigada a realizar várias mudanças para acomodações menores com aluguéis muito mais baixos. Parou de receber amigos e dispensou a criada; Xavier-Edouard ficou responsável pelo trabalho doméstico e pelas compras durante algum tempo, antes de ser enviado, por “razões de economia”, a um comércio varejista onde deveria trabalhar e receber acomodação e refeições, além de um pequeno salário. O problema para sua mãe foi o advento da máquina de costura e a competição mais feroz do mercado em condições de demanda mais fraca. Ela foi gradualmente empobrecendo (o relato não a menciona após 1868, mas uma pesquisa realizada posteriormente mostrou que ela ainda tinha um negócio em 1872, mas já se encontrava totalmente empobrecida em 1874, quando foi declarada insana e confinada até morrer, em 1891). Imagino que para muitos trabalhadores donos do seu próprio negócio essa história era, em linhas gerais, bastante comum.
Então, como era trabalhar na indústria parisiense durante o Segundo Império? É difícil fazer um quadro definido de uma experiência de trabalho tão diversificada. São muitas as anedotas a respeito, e algumas se repetem porque provavelmente captam a essência da experiência do trabalho para muitos.
Em 1865, um imigrante recém-chegado de Lorraine aluga, com a esposa e dois filhos, dois quartos minúsculos em Belleville, região próxima à periferia de Paris. Ele sai todas as manhãs às cinco horas, munido de uma crosta de pão, e caminha 6,5 quilômetros até o centro, onde trabalha quatorze horas por dia em uma fábrica de botões. Após o pagamento do aluguel, seu salário lhe deixa 1 franco por dia (o quilo do pão custa 37 cêntimos), por isso ele traz para casa algum trabalho domiciliar para a esposa, que realiza a atividade durante longas horas em troca de quase nada. “Viver, para um trabalhador, é não morrer”, era o ditado da época[24].
Foram descrições desse tipo que Zola usou, causando grande efeito dramático em L’assommoir [A taberna]* (ao que parece, ele estudou muito atentamente o texto de Poulot na preparação desse romance). Coupeau e Gervaise visitam Lorilleux e sua esposa no quarto minúsculo, bagunçado e sufocantemente quente que lhes serve de oficina domiciliar. O casal está trabalhando junto, moldando fios de ouro para a fabricação de correntes grumet. “Tem corrente de elo pequeno, corrente pesada, corrente de relógio e corrente de corda torcida”, explica Coupeau, mas Lorilleux (que calcula ter fiado 8 mil metros de correntes desde os doze anos de idade e espera algum dia “ir de Paris a Versalhes”) faz apenas correntes grumet. “Os empregadores forneciam o ouro em forma de arame e já na liga correta, e os trabalhadores começavam a puxá-lo na fieira para colocá-lo no calibre adequado, tomando o cuidado de reaquecê-lo cinco ou seis vezes durante a operação para impedir que se rompesse.” Esse trabalho, embora necessite de grande força, é realizado pela esposa, pois também requer uma mão firme e Lorilleux tem terríveis acessos de tosse. Ainda relativamente jovens, os dois parecem prestes a desmoronar pelo regime de trabalho exaustivo e exigente. Lorilleux demonstra como o arame é torcido, cortado e soldado em minúsculos elos, operação “realizada com uma regularidade ininterrupta, elo após elo, tão rapidamente que a corrente pouco a pouco cresce diante dos olhos de Gervaise sem ela perceber muito bem como foi feita”.
A ironia da produção desses componentes de produtos de luxo tão especializados em circunstâncias assim deploráveis e empobrecidas não passou despercebida na obra de Zola. E era só mediante a estrita supervisão dos organizadores da produção que tal sistema poderia prevalecer. Pouco espanta que a delegação de trabalhadores de ourivesaria, do contrário muito moderada, que compareceu à Exposição de 1867 tenha se queixado em seu relatório de “um capitalismo insaciável”, que os deixava indefesos e incapazes de protestar contra o “mal óbvio e destrutivo” que ocorria “nos grandes centros de manufatura onde o capital acumulado, desfrutando de toda liberdade, tornava-se uma espécie de opressão legalizada, regulamentando a mão de obra e distribuindo trabalhos para criar empregos mais especializados”[25]. É interessante notar que isso foi escrito no ano da publicação do Livro I de O capital, de Marx, em Leipzig.
Gervaise mais tarde encontra um processo de produção muito diferente quando visita Goujet, o metalúrgico, após uma viagem apavorante pelo segmento industrial do nordeste de Paris; zona deveras impressionante, segundo todos os relatos. Lejeune, em suas lembranças do período, a descreve da seguinte maneira:
Havia fábricas e estabelecimentos de produção nos cantos mais distantes dos pátios e vielas fechadas, havia oficinas desde o térreo até os andares mais altos das casas e uma incrível densidade de trabalhadores que conferiam ao bairro uma atmosfera animada e barulhenta.
No relato de Zola, Goujet mostra a Gervaise como se fazem rebites hexagonais a partir de metal quente, produzindo trezentos rebites de 20 milímetros por dia com as delicadas pancadas de um martelo de 2,3 quilos. Mas tal ofício está sob ameaça, pois o chefe está instalando uma nova aparelhagem:
O motor a vapor estava em um canto, oculto atrás de uma baixa parede de tijolos [...]. Ele elevou a voz para gritar explicações, depois se dirigiu às máquinas; cisalhadoras mecânicas que devoravam barras de ferro, tirando um segmento a cada corte e soltando um após o outro; máquinas para a produção de parafuso e rebite, imponentes e complicadas, faziam uma cabeça de parafuso com um giro de seus poderosos pinos; máquinas de corte com volantes de ferro fundido e uma bola de ferro que golpeava o ar furiosamente a cada peça cortada pela máquina; as rosqueadeiras operadas por mulheres, que faziam roscas em parafusos e porcas, tinham manivelas que emitiam cliques sucessivos e brilhavam com o óleo [...]. A máquina estava produzindo rebites de 44 milímetros com o desembaraço de um calmo gigante [...]. Em 12 horas essa maldita maquinaria podia produzir centenas de quilos deles. Goujet não era um homem vingativo, mas em alguns momentos teria com satisfação [...] esmagado toda essa ferragem em seu ressentimento porque os braços da máquina eram mais fortes que os dele. Isso o perturbava, embora ele soubesse que a carne não poderia competir com o ferro. Chegaria o dia, é claro, que as máquinas iriam acabar com o trabalhador manual; seus ganhos diários já haviam caído de 12 francos para 9, e se falava que ainda mais reduções viriam. Não havia nada de engraçado nessas grandes aparelhagens que produziam rebites e parafusos como se fossem salsichas [...]. Ele se virou para Gervaise, que continuava muito perto, e disse com um sorriso triste [...] “Quem sabe algum dia isso trabalhe em prol da felicidade universal.”[26]
É assim que as forças abstratas do capitalismo foram aplicadas à experiência concreta da mão de obra durante o Segundo Império.
[1]* O capital, Livro I, cit., p. 533. (N. E.)
Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit.; William H. Sewell, Work and Revolution in France, cit.
[2] Jacques Rancière, The Nights of Labor, cit.
[3] Louis Chevalier, La formation de la population parisienne au XIXe siècle (Paris, Presses Universitaires de France, 1950), p. 75.
[4] Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History, cit., capítulo 6; William H. Sewell, Work and Revolution in France, cit.
[5] Maurice Daumas e Jacques Payen (orgs.), Évolution de la géographie industrielle de Paris et sa proche banlieue au XIXe siècle, 2 v. (Paris, Conservatoire des Arts et Métiers/École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1976); Louis Chevalier, Laboring Classes and Dangerous Classes in Paris during the First Half of the Nineteenth Century, cit.; Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit.; Jacques Retel, Éléments pour une histoire du peuple de Paris au 19e siècle, cit.; Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History, cit.
[6] Alain Cottereau, “Étude Préalable”, em Denis Poulot, Le sublime (Paris, Maspero, 1980); Louis Girard, Nouvelle histoire de Paris, cit., p. 215-6; Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit., p. 390; Georges Duveau, La vie ouvrière en France sous le Second Empire, cit., p. 252-69.
[7] Alain Cottereau, “Denis Poulot’s Le sublime – a Preliminary Study”, em Adrian Rifkin e Roger Thomas (orgs.), Voices of the People, cit., p. 121.
[8] Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit., p. 380-91.
[9] Louis Chevalier, La formation de la population parisienne au XIXe siècle, cit., p. 96; Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit., p. 443.
[10] Georges Duchêne, L’empire industriel, cit.
[11] Alain Plessis, La Banque de France et ses deux cents actionnaires sous le Second Empire, cit.
[12] Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit., p. 286.
[13] Karl Marx, Capital, cit., v. 1, p. 342; Alain Cottereau, “Denis Poulot’s Le sublime – a Preliminary Study”, cit., p. 146-8.
[14] Maxime Du Camp, Paris: ses organes, ses fonctions et sa vie dans la seconde moitié du XIXème siècle (Paris, Hachette, 1875), v. 6, p. 235.
[15] Jeanne Gaillard, Paris: la ville, cit., p. 378, 446.
[16] Michael Miller, The Bon Marché, cit.
[17] Maurice Daumas e Jacques Payen (orgs.), Évolution de la géographie industrielle de Paris et sa proche banlieue au XlXe siècle, cit., p. 147.
[18] Ibidem, p. 135; Theodore Zeldin, The Political System of Napoleon III, cit., p. 76.
[19] Em Philadelphia: Work, Space, Family, and the Group Experience in the Nineteenth Century (Oxford, Oxford University Press, 1981), Theodore Hershberg enfatiza extremamente esse ponto mediante uma análise detalhada de dados sobre a Filadélfia no século XIX.
[20] Claude Anthime Corbon, La secret du peuple de Paris, cit.
[21] Eugène Foulon, Eugène Varlin: relieur et membre de la Commune (Clermont-Ferrand, Éditions Mont-Louis, 1934); Paule Lejeune, Eugène Varlin: pratique militante et écrits d’un ouvrier communard (Paris, Maspero, 1977).
[22] Alain Cottereau, “Denis Poulot’s Le sublime – a Preliminary Study”, cit., p. 130.
[23] Michel Lejeune e Philippe Lejeune, Calicot: Xavier-Edouard Lejeune (Paris, Montalba, 1984).
[24] Clément Lepidis e Emmanuel Jacomin, Belleville (Paris, H. Veyrier, 1975), p. 230.
* São Paulo, Cia. Brasil, 1956. (N. E.)
[25] Alain Cottereau, “Denis Poulot’s Le sublime – a Preliminary Study”, cit., p. 144.
[26] Michel Lejeune e Philippe Lejeune, Calicot, cit., p. 102-3; Émile Zola, L’assommoir (Harmondsworth, Penguin, 1970), p. 176-7.