SILÊNCIO!

Sabemos interjeições e gestos trazendo a sugestão impositiva do Silêncio. É a mesma mímica que detém, para, termina o movimento. Dante Alighieri cita um dos mais antigos: – Mi pose il dito su dal mento al naso.179 Dois tradutores brasileiros, Barão da Vila da Barra e Xavier Pinheiro, escreveram: “Sobre os lábios pus os dedos” e “Dedo nos lábios fiz nesse momento”. Evidentemente Dal mento al naso não corresponde ao “dedo nos lábios”, como os dois brasileiros entenderam. Dante repetira a posição clássica de Muta, a deusa do Silêncio, Lara ou Tácita, festejada em 18 de fevereiro, XII das calendas de março. Não era apenas uma cerimônia dedicada aos Mortos ou aos Lares, mas à entidade personalizadora do elemento indispensável aos ritos sagrados de todas as religiões do Mundo. Não teria sido a forma inicial da Oração, o Silêncio do homem primitivo, olhando o firmamento estrelado ou a lua cheia, de luz recordadora e suave? Num livro de outrora180 estudei a tradição do Silêncio na Cultura Popular. O assunto é diverso, but that is another story, como diria Rudyard Kipling. O dedo nos lábios não teria a mesma significação ritual que Dante repetiu, dispondo­-o da fronte ao nariz. O dedo nos lábios é a proibição da voz. Da fronte ao nariz alcança símbolo mais vasto e mais antigo. É advertência para o pensamento e para a respiração, apelo instintivo para a concentração, a mobilização mental ao derredor de uma imagem sagrada. Seria o signo de Muta na hora grave da Iniciação, o primeiro passo para a lenta e gradual revelação dos Mistérios. O sinal de Atenção! ainda é dado com o indicador vertical na altura da testa. Sem que ninguém aprenda ou tenha lido, é surpresa quando verificamos sua ancianidade veneranda e aplicação litúrgica. As mais velhas estátuas de Muta têm aquela posição que Dante tomou para avisar a Virgílio. Nos séculos XIII­-XIV ainda a linguagem dos gestos, ou os gestos mais próximos ao cerimonial religioso, ia morrendo devagar, resistindo nas memórias numa projeção inconsciente que denunciava o processo milenar da fixação. Depois é que Muta, Lara ou Tácita guarda o movimento dos lábios prendendo­-os sob o indicador, gesto esotérico, entregue à divulgação dos profanos e ao uso popular indiscriminado. Como o Horus infante do Museu do Cairo. A sede clássica do fôlego é o nariz. No Gênesis, descrevendo o Dilúvio, informa o redator: “Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em seus narizes, tudo o que havia no seco, morreu!” (VII, 22). Era pela Aspiração que se recebia a Vida e Iavé as homenagens do povo fiel.181 Em forma olorosa subiam os sacrifícios aos Deuses olímpicos, sugerindo a Aristófanes a incomparável sátira do Pássaros, 414 anos antes de Cristo. Os árabes do deserto, ciosos do hálito puro e tentando evitar a contaminação com os infiéis, cobrem os narizes, os tuaregues velados, Mulattamin, a gente do véu, Ahl elliam. Entre os indígenas do Brasil vergonha e nariz têm o mesmo vocábulo, tin ou ti, segundo o conde de Stradelli. Dizemos no Brasil: – Não tem vergonha nas ventas! correspondendo às faces. Venta, Ventas, não é a fossa nasal mas o nariz inteiro. Dar, bater nas ventas, é injúria tão alta como esbofetear. “Senhor do seu nariz” é sinônimo do indivíduo integral, livre, autônomo. Ainda no século XVII cortar o nariz era penalidade regular para os assaltantes de caravanas comerciais ou aos viajantes isolados. Ao ladrão vulgar é que decepavam a orelha. Diodoro da Sicília (I, LX) regista que o etíope Actisanés, faraó do Egito, fundou na fronteira da Síria uma colônia penal constituída pelos bandoleiros desnarigados. Denominou­-a Rinkoloyros ou Rhinocolure, nariz­-cortado. A integridade nasal denunciava a independência física. Não se diz “Senhor de sua cabeça”. Dizer verdades no nariz ou nas ventas, de qualquer um, é atitude decisiva de coragem destemerosa. Levar pelo nariz era uma das conduções de escravos, furados pela cartilagem nasal como os bois de carro. O dedo na fronte era imagem da Meditação. Fixava o pensamento. Tocar na testa é invocar a primeira pessoa da Santíssima Trindade na persignação católica. Saúda­-se, militarmente, elevando a lâmina na altura da cabeça, na cerimônia de “abater espada”. Nas frontes passava­-se o óleo sagrado consagrador para os Soberanos e sacerdotes, os “ungidos do Senhor”. O gesto de Muta, da fronte ao nariz, possuía esse conteúdo simbólico, compreendendo a vida espiritual e material, atividades respiratórias e mental. Sugeria, em sua simples presença mímica, a decisão do Silêncio para os mistérios compreensivos do Entendimento. O gesto ainda universal para obter a mudez atenciosa nas reuniões é estender o braço, a mão espalmada ou agitante.182 Mímica para deter o movimento exterior. Na sua “Epístola ao Conde­-Duque de Olivares”, Quevedo (1580­-1645) alude à mímica do Silêncio: “Não me calo, por mais que, com o dedo/Tocando a boca ou fronte levemente,/Silêncio avises ou ameaces medo”.

179 “Inferno”, XV, 45.

180 Anubis e Outros Ensaios, XXXI, 1951.

181 Gênesis, VIII, 21.

182 Atos dos apóstolos, 12, 17; 13, 16; 21, 40; 26, 1.