O gesto é anterior ao amuleto, ambos vivos no Brasil contemporâneo. Vieram nas mãos portuguesas do século XVI. O continente americano ignorava-se antes do espanhol. Creio que a curta difusão pela África não data de Romanos e Bizantinos e sim do contato navegador subsequente. Não constitui elemento visivelmente popular entre pretos e mouros, talqualmente ocorre em uso nos Povos de maior influência recebida de Roma, clássico centro irradiante. Originou-se nos cultos orgiásticos da Ásia Menor, de Lampsaco para as ilhas Jônicas, derramando-se no Mediterrâneo de leste para oeste. Não conheço sua presença na Grécia. O clima de simpatia foi no mundo latino de Roma, republicana e imperial. Espalhou-se pela Europa onde continua pertencendo ao patrimônio mímico e aos adornos da profilaxia sobrenatural. Símbolo-síntese da devoção priápica, a Figa representa a união carnal: o órgão masculino no polegar e o triângulo feminino pelo indicador e médio. Afastava as forças negativas da esterilidade porque materializava o ato criador da Vida. Desenhá-la era augurar a vitalidade, a sequência, a continuidade da espécie e da fortuna. Daí inspirar o amuleto, reproduzindo o gesto auspicioso. Decorava quase todos os objetos de uso doméstico, e também túmulos, tronos, poltronas, compreendendo a parafernália familiar das residências privadas. Equivalia ao Gorgoneion dos gregos, os olhos da Górgona, afugentadores dos males, matadores da Inveja. Não teve a Figa, inicialmente, a intenção agressiva e vulgar possuída durante o Império Romano onde sua expansão é incontável e aparece nas sátiras e poemas, prestando-se aos trocadilhos entre a fruta Figo e Fica (vulva feminina).196 Viera da Ásia Menor quando da conquista dominadora de Roma. Joia-amuleto, acompanhou a Civilização romana, aculturando-se nas superstições locais. Continua de fácil encontro, em todos os tamanhos e substâncias, usada como preservativo da Má Sorte ou simples enfeite quando perdida sua vocação apotropaica. A Figa era tão popular na Itália medieval quanto fora na imperial. Símbolo de desprezo, pouco caso, humilhante repulsa. Os homens de Pistoia puseram na torre alta de Carmignano dois grandes braços de mármore, findando em Figas, apontadas para o lado de Florença, cidade inimiga. Esse desafio agressivo motivou uma guerra violenta e as duas Figas de Pistoia foram destruídas pelos florentinos em 1228. Dante Alighieri na Divina Comédia197 evoca Vanni Fucci, de Pistoia, enleado de serpentes, atirando Figas para Deus: Togli, Dio ch’a te le squadro! “Olha, Deus, para ti o estou fazendo!” traduziu Machado de Assis. Dizer, uma Figa! é fórmula defensiva, ou fazer o gesto para determinada pessoa é agressão motejadora, gesto de menoscabo, repulsa, enjoo. Assim Shakespeare (1602) a faz pronunciar pelo “honesto” Iago:198 Virtue? A fig’tis in our selves! É o Conselho de Sancho Panza ao Don Quijote, “marrido, triste, pensativo y malacondionado” (1605): Vuesa Merced, dé una hija al medico! (II, LXV). Dizer-se Figa de Guiné, sugerindo a mentirosa origem na África ocidental, é simples e confusa referência às Figas esculpidas pelos escravos com madeira africana. As mais famosas eram feitas com arruda,199 planta popularizada em Roma, citada por Jesus Cristo200 e que os negros preferiam pelo odor julgado mágico. No Brasil do século XVI já as Figas cumpriam a missão desdenhosa, atrevida e mesmo sacrílega. Nas Denunciações da Bahia, 1591-1592, referindo-se a episódios 20 a 30 anos anteriores à Visitação do Santo Ofício, há documentos saborosos. Álvaro Lopes Antunes em 1586, fazia repetidas Figas para o Crucifixo. Salvador de Maia, por essa época, quando lhe apresentavam a salva para esmolas, fazia Figas em vez de depositar uma moeda. Filipe de Guillem, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Provedor da Real Fazenda em Porto Seguro, em 1571, pretextando ter o polegar demasiado longo, quando se benzia se benzia com uma figa, informa o denunciante. É o mais abundante e predileto dos amuletos, de tosco meio metro, amparando portas, às miniaturas preciosas em colares, braceletes, brincos, pendentes nos ombros e bustos. Possuo dois documentos expressivos dessa preferência: corrente prendendo medalha do Senhor do Bonfim, uma Figa amarela e uma pata de coelho, Rabitt-foot, dos negros sudaneses, divulgado pelos norte-americanos no Brasil (1942-1945), e uma cruz de madeira cujos braços terminam por Figas, possível cópia de modelo em marfim existente num museu na Suíça. Desapareceu o caráter obsceno. É um gesto desrespeitoso. Na expansão geográfica, a maior surpresa foi constituir um gesto mágico de maldição, entre os Ovahereros da África do Sul. Na Lemúria, dia oblacional de 9 de maio em que os romanos celebravam um longo cerimonial tranquilizando os Lêmures, espíritos dos Mortos, atormentadores dos Vivos, a Figa, nas altas horas da noite, impedia que o espectro fizesse a aparição espantosa. Força mágica operante e benéfica.