A PORTA DO DEVEDOR

Na manhã de 9 de agosto de 1951, o pedreiro Mariano dos Santos foi detido pela Polícia por haver arrancado a porta da casa de um seu inquilino no Carrasco, bairro do Alecrim na cidade de Natal. Lembrei­-me que em princípios de 1912 numa povoação no município de Augusto Severo, no Rio Grande do Norte, Ubaeira ou Goiana, um credor, esgotados os pedidos de pagamento, veio à residência do devedor e arrancou­-lhe a porta da entrada, levando­-a. Vivia eu na fazenda Logradouro, vizinha, e recordo os comentários deliciados do meu tio e primos, não no sentido da anormalidade da decisão mas no acordo da justiça que esse singular ato de cobrança pessoal significava. Não sabia tratar­-se de um uso jurídico que os velhos forais do século XIII autorizavam. No foral de Balneo, terra de Alafões, concedido em 1152 pelo Rei D. Afonso Henrique, lê­-se: – “Quando algum dos ditos moradores for chamado para fazer emenda e não quiser comparecer, tirem­-lhe a porta da casa”.33 Curioso é que esse direito consuetudinário tenha resistido na memória popular, não no imperativo legal mas expressão reivindicadora de posse, revivido num gesto de homem brasileiro no alto Sertão do Rio Grande do Norte e na capital do Estado nordestino, numa distância de oitocentos anos. Os usos e costumes sobrevivem no espírito popular indelevelmente. Vivem em ação instintiva ou reaparecem nas frases denunciadoras do velho conhecimento secular.34 Uma casa sem porta incaracteriza o domínio. A porta limita o trânsito, fazendo­-o dependente do arbítrio possessório. Estudei a sagrada tradição da porta em Roma, sob a custódia de Janus.35 A jurisdição doméstica começa nessa entrada, da porta para dentro. Arrancá­-la será extinguir a potestade jurídica, ilimitando o acesso. O mistério consta na eleição da fórmula executiva obsoleta numa imprevista revalidação funcional. Atualização inexplicável, recordando o reparo de Gilberto Amado:36 – “A consciência sabe muito pouco de nós mesmos, do que está escondido e ligado por múltiplos fios às mil origens milenárias da nossa personalidade e dos substratos que a estruturam”.

33 Alexandre Herculano, História de Portugal, VII, ed. 1916.

34 Leges et consuetidines nos Costumes do Brasil, minha colaboração à Miscelanea de estudios dedicados al Dr. Fernando Ortiz por sus discipulos, colegas y amigos, I, La Habana, 1955.

35 Anubis e Outros Ensaios, XIII, 1951.

36 33 Depois da Política, 1960.